A serenidade de um poeta de alma simples: "Não tive tempo de enriquecer" @Arquivo AE
As estrofes e lombadas do editor paulistano que já lançou mais de 800 livros
Perguntem a toda uma geração de poetas que já foram jovens quem é Massao Ohno e eles dirão: “Era Deus, no tempo em que éramos pequenos”. É uma licença poética exaltada e as coisas não são bem assim. Aos 68 anos, o paulistano que já editou mais de oitocentos livros está completando 45 nessa atividade. Tem mais de guru zen do que de divindade. E não é popular. “É um samurai da sombra”, diz o poeta Antonio Fernando De Franceschi. “Trabalhador do invisível, luminoso nissei, esbelto que, nas horas vagas, seduzia as poetas da nossa juventude, bebedor de uísque e filósofo oriental”, escreve Renata Pallottini.
Outro poeta, Carlos Vogt, usa a palavra “mítica” para se referir a ele. “É talvez o maior editor desorganizado que melhor contribuiu para organizar a poesia brasileira jovem durante pelo menos três décadas”, diz. “Só publiquei o meu livro Cantografia em 1982, aos 39 anos. Fui à casa dele, que também era a editora, e tivemos encontros na padaria da esquina. O envolvimento distante sempre foi sua marca de fascínio e distinção.” Enfim, José Mindlin – este, sim, mítico caçador e colecionador de livros – assina e dá fé, com sua experiência de empresário: “Ele terá sido um dos poucos que, ao decidirem uma edição, não levavam em conta se ela seria vendável ou não. Não creio que tenha enriquecido com suas edições. Tenho algumas dezenas delas e é até possível que sua resolução de interrompê-las tenha sido por cansaço de perder dinheiro. Sua obra editorial, no entanto, permanecerá”. Massao comenta, na sua prosa breve: “Não tive tempo de enriquecer”. E não interrompeu suas edições.
Agora as produz “em câmara lenta” e até o fim de 2004 lançará mais seis ou sete títulos, de autores cujos nomes não revela mas que “surpreenderão muita gente”. Assim não estava escrito. Filho de pais japoneses, ele militar de Tóquio, ela uma daquelas rosas de Hiroshima que um poeta brasileiro celebrou em versos, é dentista formado numa família de nove irmãos (hoje cinco), todos engenheiros. Diferente deles, gostava de filosofia e letras, mas foi impedido de cursá-las pelos pais, que não queriam vê-lo em uma carreira tão imaterial. “Me submeti à família”, conformou-se. Mas por pouco tempo. Então tornou-se editor, com um comentário fatalista: “Minha primeira gráfica foi também a última”. Editava autores desconhecidos, na grande maioria poetas, e seu nome, para muitos deles, transformou-se numa tábua de salvação. “Minha última esperança é o Massao”, costumavam dizer. E o poeta Claudio Willer diz mesmo, até hoje: “Não sei como teria saído o meu livro Anotações para um apocalipse, em 1964, se não fosse a iniciativa dele”.
São Paulo, no começo dos anos 1960, era uma cidade muito menor, onde todo mundo se conhecia. E entre os conhecidos de Massao estavam artistas como Manabu Mabe, Ciro del Nero e Tide Hellmeister, logo incorporados aos projetos gráficos dos livros. Ele tinha impressoras e desde 1959 fazia apostilas para cursinhos, ganhando algum dinheiro, e não era difícil editar aqueles menestréis aflitos. Difícil era sobreviver e ter algum reconhecimento pelo trabalho. Ganhou a fama ambígua de publicar tudo e não distribuir nada. O poeta e romancista Álvaro Alves de Faria analisa: “Falar de Massao só será possível na linguagem da poesia. É um poeta dos livros, um monge que dedicou sua vida a isso. Publicou a Antologia dos novíssimos, em 1961, na velha prensa da rua Vergueiro.
Os 45 anos de atividade editorial renderam, em 2004, homenagem do Instituto Moreira Salles @Juan Esteves/IMS
Ele está aí nesse meio como um Dom Quixote a combater a miséria de um tempo feito quase só de angústias”. Havia, naturalmente, a questão política. Massao militou, “mais no plano das ideias do que no prático”, na AP (Ação Popular), foi muito vigiado, mas não chegou a ser preso. Havia a questão existencial também. Durante décadas ele se manteve inteiro fumando cinco maços de cigarro e bebendo uma garrafa de uísque por dia. Hoje chupa pastilhas. “Deixar de beber foi fácil”, ele avalia. “Fumar, não. Nossa Senhora! Admiro muito quem consegue parar, a gente sua frio, se sente mal.” E ainda precisava atender aos apelos do coração. Casou cinco vezes, teve quatro filhos e sete netos. Sua vida daria um ou dois romances, que ele não escreverá. Sua especialidade é editar versos dos outros, de retorno financeiro incerto ou nulo.
Tanto que o grande best-seller da Massao Ohno Editor foi um dicionário japonês-português (1989), que vendeu 50 mil exemplares e vende até hoje, em outra editora, num tempo em que não havia no Brasil composição em japonês, que era feita em Tóquio. Mas ele só ganhou “uma certa universalidade”, como diz, além das fronteiras paulistanas, quando se mudou para o Rio. Ficou quatro anos e trabalhou com o editor Ênio Silveira, da então poderosa Civilização Brasileira, com quem teve o que aprender. “Foi interessante”, ele diz, no seu jeito de falar pausado e sempre econômico. “Ele tinha a ‘máquina da distribuição’, que era o meu ponto fraco, e meus livros começaram a chegar às livrarias.”
Na volta para São Paulo constatou que precisava se modernizar tecnologicamente – ou se tornaria obsoleto. A modernização exigia um investimento muito grande. Trabalhou então em produtos mais em conta, como o cinema de baixo custo, e ajudou na finalização de filmes como Viagem ao fim do mundo (1968), de Fernando Coni Campos, e o celebrado cult de Rogério Sganzerla O bandido da luz vermelha (1968). Mas não deixou a edição de livros. E sua editada mais famosa, no restrito círculo da poesia, tornou-se Hilda Hilst, morta em fevereiro deste ano e autora de peças e livros como O verdugo (1969) e Cantares de perda e predileção (1983).
Revoltada com as pequenas vendas de seus livros, ela recolheu-se a um sítio perto de Campinas e dedicou-se à literatura pornográfica com O caderno rosa de Lori Lamby (1990) e Cartas de um sedutor (1991). Se estava à procura de um editor “das sombras”, escolheu o Ohno certo. Foram feitos um para o outro e ela lhe ofereceu parte do sítio e um anexo com biblioteca. “Além de grande amiga fraterna, era um talento desperdiçado, digamos assim. Acredito que seja feita justiça a seu trabalho maravilhoso. O tempo dirá”, acredita Massao.
Ao contrário da lenda, ele se considera muito rigoroso com os originais que chegam às suas mãos. O apreciador de João Cabral, Jorge de Lima e Cecília Meireles cultiva também os espanhóis do chamado século de ouro (passagem do XVI para o XVII), dominado por nomes como Cervantes, Lope de Vega e Góngora. É ouvinte devoto de Mozart, Bach e Beethoven, além de jazz, “que é o suprassumo da criação”. Por isso sabe do que está falando quando exige rigor dos seus editados, orientando-os no sentido de melhorar os textos. “Alguns deixei quase perfeitos”, orgulha-se.
Autor inédito, escreve “umas coisas”, que uma de suas filhas organiza para publicar. “Lavo minhas mãos”, ele vai avisando. Vive num flat na região dos Jardins, que chama de “estúdio íntimo”, e está certo de que uma sala de três por quatro metros é tudo de que precisa para trabalhar nas suas edições. “Gostaria de deixar bem claro que minha atividade é maravilhosa e faria tudo de novo”, acredita. “Alguma coisa deve restar de tudo isso.”