Ela freia e acelera tudo na vida, desde o automóvel à conversa. No momento, está numa fase de impulso: quer toda a música das Américas em sua voz. (E, se possível, um pouco de tranquilidade em sua vida.)
©Cristiano Mascaro
… as portas se abrem, os gases escapam, os amigos morrem, as Leilas vão, os Agostinhos somem… Não gosto mais disso não…
A voz de Elis Regina se torna então grave, pausada, vencida. Faz apenas quinze minutos que começamos a conversar, numa ensolarada manhã em São Paulo, e eu ligo o gravador no momento em que ela está falando do seu crescente pavor em andar de avião. Elis está sentada com os cotovelos apoiados na mesa, trancada numa sala de escritório do seu empresário, e me olha fixamente por trás dos seus grandes óculos escuros. O cenário é desoladamente comercial: máquina de escrever, memorandos, avisos pregados na parede, papéis, a mesa de reunião que dividimos em torno de um gravador. Ideal para uma transação de negócios. Ruim para qualquer outra coisa, especialmente conversar com uma artista da qual se sabe rigorosamente tudo.
Elis Regina é o enigma mais decifrado do show business brasileiro. Tem 29 anos e é gaúcha. Seus saltos costumam ter de três a sete centímetros. Mede 1,53 metro e pesa 46 quilos. Sabe-se que gravou dezesseis LPs e que chegou a ganhar por mês, em 1967, cerca de 150 mil cruzeiros. Que seu véu de noiva — de dez metros de comprimento — era maior que a capela onde se casou, em 1967. Que sua casa na avenida Niemeyer, no Rio, era nessa época “a mais bonita do Brasil”. Sabem-se também outras coisas, menos estatísticas. Que ela teria um caráter explosivo, desbocado e egocêntrico. Que andava “mal da cabeça”. Que por causa do fracasso do seu casamento com o jornalista Ronaldo Bôscoli ela cantaria tão bem Atrás da porta, de Chico Buarque de Hollanda. Acima de tudo, nos últimos seis meses, uma nova Elis Regina teria renascido em São Paulo, para onde ela se mudou com o novo marido, o pianista e arranjador César Camargo Mariano, e o filho João Marcelo (com Ronaldo Bôscoli), de quatro anos de idade.
Por causa da realidade e das lendas, a nossa conversa fora antecedida de alguns receios e mal-entendidos. Elis, a artista, sempre foi também Elis, a tagarela. E o que poderia ser pior para a firma que agora cuida da sua carreira? O que seria daqueles quadros com ordens e instruções, do grande mapa do estado de São Paulo em que alfinetinhos coloridos marcam as praças conquistadas e a conquistar?
Trancado na sala com ela, tive a súbita impressão de que estava prestes a entrevistar um conglomerado financeiro. Sugeri que saíssemos para almoçar. Ela concordou e, depois de mais 45 minutos de negociações com seu empresário, fomos para a rua. Saia comprida, blusa de malha verde, um blusão nas mãos, escondida atrás dos óculos escuros, Elis foi comigo a um posto de gasolina, pegou seu Corcel azul-marinho e começamos a correr.
— Das coisas que se locomovem, carro é ainda a que me dá menos medo. Eu vou freando, acelerando, vou ligada, não consigo dormir.
Do centro até sua casa, no bairro do Brooklin, provou tudo o que eu disse. Ela guia rápido e firme, enquanto freia e acelera tudo na vida — inclusive sua conversa. Mexe com os motoristas e entra em casa chamando a atenção para o “caos” que nos espera. A casa tem dois andares, uma cozinha imensa, uma sala espaçosa e despretensiosa onde o marido e outros músicos costumam passar horas, contritamente, ouvindo discos. Pega um estojo de maquiagem, senta-se no chão, junto a um jardim, e manda trazer dois copinhos de pinga. Então começa a falar sobre os seus novos projetos!
— Eu agora estou a fim de fazer um trabalho conjunto, de música latino-americana. Pegar os Ruy Guerra, os Vinicius de Moraes, alguns dos nomes de maior peso da América Latina e fazer um disco.
João Marcelo dependura-se no seu ombro e anuncia que não vai almoçar. Ela toma um pequeno gole no copo e explica para o filho que poderá comer arroz, bife e ketchup.
— O que existe no mercado latino-americano é descolado do mercado. Pega-se uma música que faz sucesso aqui, arruma-se uma versão às pressas e depois exporta-se. Ninguém sabe o que acontece. Eu não estou a fim disso. Quero é uma unificação mesmo, e com o aval dos autores, que eu também não quero sair por aí fazendo tudo sozinha…
João Marcelo, satisfeito com o cardápio, vai para a mesa. O marido e os músicos parecem ter descoberto novos e insuspeitados sons em dois velhos discos do Blood, Sweat & Tears: cochicham, fazem gestos, notam sutilezas até então imperceptíveis. Elis levanta-se, olha a cena.
— A gente vive muito aqui nesta sala. Ontem passou na televisão um especial com o Milton Nascimento e começamos todos a chorar. Eu sou uma chorona, meu Deus!
Elis dá a letra nas páginas da Nova, em 1974 @Cristiano Mascaro
Ela está encantada com a casa. Vendeu a outra, “a mais linda do Brasil”, comprou um apartamento no Rio e o sobrado no Brooklin, onde montou na garagem um salão para ensaios. Concentrou ali também as suas esperanças de uma vida profissional muito tranquila. Acha São Paulo “um desbunde” e “vai logo agredindo” quem fala mal. Mas São Paulo, pra Elis, não é apenas a capital; é como se fosse uma espécie de país que ela adotou e que nesses últimos tempos a tem recompensado, generosamente, pela sua escolha.
— Ah, as estradas são um barato… É um negócio muito esquisito… A gente vai andando e vê tudo plantado, as pessoas fazendo coisas, todas ocupadas, eu fico até arrepiada… São cidades de que a gente guarda o nome e fica a fim de voltar… Araraquara, Ribeirão Preto, Jaú… Eles sabem de tudo… Até o espirro que você deu fora de hora.
Certamente, Elis jamais teve público tão ardente nesses seus dez anos de viagens — de Paris a Angola, da Alemanha à Venezuela. Nem mesmo no Rio de Janeiro, de onde saiu sem levar remorsos:
— O Rio é uma cidade muito pequena. A gente se dedica a uma temporada de teatro por ano e depois não tem mais o que fazer.
João Marcelo está mergulhado no seu manjar vermelho. Esbarra num dos músicos, agita-se, fala com a boca cheia. Elis diz que João Marcelo costuma ficar “um demônio” diante de visitas. Em Bauru, ele pediu um sanduíche para a mãe pelo telefone e ouviu do outro lado do fio uma voz dizendo que ia mandar buscar no “báur” (bar).
Riu, riu como um capeta. “Morta de vergonha”, Elis foi se desculpar com o provavelmente bauruense. E deu um pito em João Marcelo: “Eu, que sou do Sul, falo ba-r-r-r; você, que é do Rio, barrr; e eles falam báur. Que que você tem com isso?”. João Marcelo, a boca escorrendo ketchup, retruca, insistindo:
— Mas por que eles falam báur?
O diálogo torna-se impossível. Os músicos riem, Elis dá uma olhada para João Marcelo e completa:
— É, no Rio a gente não tem nada o que fazer. Nem à praia eu ia porque ficava com complexo de culpa por estar perdendo tempo lá. Então, se não tem TV, a gente fica parada, viajando para outros lugares. É muita ansiedade para o menino porque ele sempre quer ir junto, mas não vale a pena… Então a gente acabou escolhendo a vida um pouco mais tranquila, um pouco mais em casa por aqui e pelos interiores.
Mas como Elis Regina, cujo mitológico O fino da bossa foi o programa mais popular do seu tempo, riscou de maneira tão drástica a televisão dos seus planos? Elis Regina diz que a TV “a machucou muito” e que gostaria de tentar de novo, mas do seu jeito.
— Eu quero vender as minhas coisas, e não as coisas deles. Eu passei seis anos, de 1965 a 1971, na televisão, e era equívoco em cima de equívoco. Veja: botam a Nara Leão cantando uma música portuguesa e logo a cara dela some, ela vira uma mosca porque aparecem galeras em cena. Na Alemanha, eu cantava “Upa neguinho” (com legendas em alemão) e como a música falava de negros mandaram buscar dez crioulinhos na base americana, tudo black power, crianças lindas, mas qual é? Eu cantava uma coisa — “alô, alô Carmen Miranda” — e botaram um baile de Carnaval e uma mulher fantasiada dançando com umas bananas na cabeça, feito louca. Você vai cantar “Atrás da porta” e eles põem você atrás da porta. Não dá. É muita falta de nível. Enfim, tem gente que topa.
As exigências de Elis se explicam. Em outros tempos, ela se tornou célebre pela sua desvairada coreografia no palco, que lhe rendeu os apelidos de Hélice Regina e Eliscóptero. Depois, cheia de dores no corpo, pulou para o outro extremo e passou a ficar dura em cena. Depois, passou a representar papéis e se vestiu de Carlitos num show. Agora sonha com um curso de expressão corporal. De seis meses para cá, especialmente, convenceu-se de que o mais importante é cantar. No seu último show, em maio, ela disse: “Estar aqui (Teatro Maria Della Costa, São Paulo) novamente entre as luzes e as sombras deste teatro, é como caminhar num fio estendido sobre um abismo: um desafio”. E a crítica tem sido calorosa para com sua nova postura.
— Botar um cenário para Maria Bethânia para quê? Bethânia é um cenário. Ela tem é que cantar feito louca, mexer a mão. Cantar bem é o que eu gosto e o que sei fazer… Um bom repertório, um cenário limpo. Não gosto de texto. Eu não sei falar. Tem uma hora que começo a falar que nem um papagaio.
Em busca de sossego na casa nova, em São Paulo @Cristiano Mascaro
Na televisão, esse desafio da volta serviu para mostrar que Elis sabe transpor o abismo com o autocontrole de um equilibrista experimentado. Foi na segunda semana de agosto, em São Paulo, quando a TV Bandeirantes promoveu a reabertura de seu antigo auditório, transformando o velho Cine Arlequim no novo Teatro Bandeirantes. Enquanto Rita Lee, no palco, tentava esquentar o público, evoluindo em meio ao jogo de luzes do equipamento deixado no Brasil por Alice Cooper, na penumbra dos bastidores, Elis parecia contrair-se, tensa.
— Parece um parto.
Mas quando chegou sua vez os aplausos mostraram que é sobre um fio estendido que ela gosta de cantar.
O almoço acabou e estão todos atrasados. Elis pega suas coisas, manda a empregada fazer galinha recheada (com arroz e salada) para o jantar, e me informa, rindo, que vou participar de um momento histórico: a gravação da primeira faixa do seu novo LP, o de número 17, a ser lançado em novembro e que deverá se chamar, como muitos outros antes, simplesmente Elis. Ela entoa “Conversando no bar”, de Milton Nascimento: “Lá vinha o bonde/ No sobe e desce ladeira/ E o motorneiro parava a orquestra um minuto/ Para me contar casos da campanha da Itália/ E do tiro que ele não levou/ Levei um susto imenso/ Nas asas da Panair”.
A emoção que ela tivera na véspera diante do programa de televisão com Milton Nascimento renasce no seu rosto. Voltamos para o carro e enquanto César guia ela procura os óculos. Não acha.
— É esquisito porque de manhã eu acordo e se alguém acende a luz eu grito de dor. Aaaiiiiii! Eu não enxergo nada de óculos escuros. Hoje aconteceu uma coisa incrível. Fui à feira comprar laranjas num japonês. Não, eu não sou míope. É cabeça pobre mesmo. Aí tirei os óculos e baixei a cabeça para contar as moedinhas e paguei 7,50. O japonês disse: “Não”. Aí contei de novo e disse: “Não? Então são 8 cruzeiros?”. O japonês disse: “Não”. Eu já ia tirar os óculos outra vez quando ele disse: “Não, moça, não é possível que seja quem eu estou pensando!”. Aí a moça que estava do meu lado disse: “É ela mesma, Elis Regina, nossa vizinha”. Aí o japonês perguntou se eu era eu mesma, eu disse que sim. Nossa Senhora!
Ela continua nervosa até hoje diante do público. No estúdio, para a “cena histórica”, os preparativos são precisos e demorados. Elis diminui o tempo entre uma dose de café e outra, rói as unhas — o esmalte das unhas —, senta-se na mesa de controle de som, enquanto César e os músicos colocam fones de ouvido e partem para uma improvisação.
— Já toquei piano alguns anos atrás, mas agora… com marido pianista… Sinto falta de estudar música. Leio pauta, mas muito devagar. Me assustam um pouco os métodos de ensino nas escolas de hoje, os meninos na transa de matemática, quadrado, círculo, retângulo… Eu me lembro no ginásio do sacrifício que era aprender aquela porcaria de… como se chama?… teorema. Teorema! Matemática eu conto nos dedos da mão, graças a Deus…
Recentemente, Elis reconheceu humildemente os erros que cometeu por falta de “estrutura cultural”. Lembrou os nomes de Chico Buarque de Hollanda, “que sempre poderia ser arquiteto”, e de Gilberto Gil, “um próspero empresário”, caso fracassassem na música. Ela era apenas a “gauchinha” que mal havia terminado o curso de formação.
— Eu só gostava de história. Agora li um livro de contos de Gabriel García Márquez, tem a história de um anjo, um anjo que cai do céu, um anjo velho, sem dentes, então não se sabe se é um anjo ou uma galinha e colocam ele no galinheiro, exposto à visitação pública. Eu ri, de triste. Depois… Tem umas coisas do Graciliano Ramos, Vidas secas, aquela cena em que o cara chega e diz: “O céu está cheio de estrelas”, e então começa a contar, tem uma, duas, três, quatro estrelas. O cara só sabia contar até quatro. Eu não consigo segurar. Sou uma idiota, passo a vida chorando à toa.
Elis entra no estúdio e se tranca no cubículo reservado aos cantores. Ri, emite alguns sons, diz estar cada vez mais nervosa com a música de Milton Nascimento. Ri e canta:
“Aonde a vaca vai/ o boi vai atrás”.
O equipamento está pronto e a gravação vai começar. No carro, ela havia dito ao marido:
— Não fique com essa cara de pessimismo, porque eu estou pensado que esta gravação vai ter que sair boa e vai sair mesmo.
Após três desacertos iniciais, a voz de Elis salta nos alto-falantes:
“Descobri que as coisas mudam/ E que tudo é pequeno nas asas da Panair”. De repente para.
A primeira gravação não saiu boa, por motivos que os técnicos discutem. Elis toma mais um café:
— Eu queria ser advogada… É esquisito, tenho atração por um certo tipo de direito, o direito da família… assim, para a gente se defender… Quem sabe, por esses caminhos tortuosos do direito, eu consiga me defender e às pessoas de quem eu gosto. Ah, é uma transação muito suja! O direito é uma…
De novo trancada, a voz de Elis não chega ao fim da música. É preciso voltar, repetir, refazer tudo — e então ela ri, roendo o esmalte das unhas, o lábio repuxado:
“E lá vai menino xingando padre e pedra/ […] E lá vai menino senhor de todo o fruto/ Sem nenhum pecado, sem pavor/ O medo em minha vida/ Nasceu muito depois”.
Desta vez, saiu quase boa. Estamos no estúdio há quase três horas e começa a anoitecer. Despeço-me de Elis, que leva um susto:
— Mas, como? E a entrevista? A gente quase não falou…
Os técnicos pedem silêncio e a gravação quase boa começa a tocar. Elis olha, vagamente, um ponto qualquer no painel de controle. Continua com a mesma blusa verde e a mesma saia da manhã. Da maquiagem tentada em casa não há vestígios, porque ela parou ao depilar as sobrancelhas.
“E aquele tango e aquela dama da noite/ E aquela mancha e a fala oculta/ Que no fundo do quintal morreu/ Morria a cada dia/ Dos dias que eu vivi”.
Piano, guitarra, baixo, bateria e a voz de Elis parecem agora claros e harmoniosos. Os músicos estão em pé, imóveis. Elis não se mexeu.
“Cerveja que eu tomo hoje/ É apenas em memória/ Dos tempos da Panair/ A primeira Coca-Cola/ Foi/ Me lembro bem/ Agora/ Nas asas da Panair/ A maior das maravilhas/ Foi/ Voando sobre o mundo/ Nas asas da Panair”.
A gravação acaba e Elis continua olhando parada os painéis, roendo as unhas. Chora um pouco, silenciosamente. De repente, levanta-se e se joga nos braços do marido. A gravação ficou boa. Todos respiram.