Rigor em cena: Godard, Belmondo e Jean Seberg em um café em Paris, 1959 ©Raymond Cauchetier

Acossado

A reinvenção do cinema através de um filme-manifesto

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Falar de Acossado é uma tarefa fascinante. Nenhum filme, com efeito, conseguiu dizer tanto até hoje, dizer coisas reais, cotidianas, numa tentativa desesperada de encontrar no próprio homem as raízes de sua alienação e de sua morte. Tarefa fascinante, sem dúvida, mas para a qual Acossado exige, de saída, duas bases: a primeira é a base, digamos, “cognoscitiva” do filme, os dados reais e biográficos segundo os quais poderemos medir melhor o método que orientou o trabalho do autor, Jean-Luc Godard, suíço de nascimento e de formação francesa, 30 anos, ex-crítico dos Cahiers du Cinéma, admirador de Kazan, Mankiewicz, Ford, Huston, Rossellini e, como todo francês que se preza, Jean Renoir. A segunda é de ordem principalmente crítica – referindo-se às relações entre Acossado e a produção francesa, a velha e a nova –, mas não somente crítica, surgindo aí o problema: o de se saber até que ponto será criticável uma obra tão extraordinariamente pessoal, na verdade um verdadeiro rosário de “confissões” e depoimentos.

De Godard, pode-se dizer quase tudo, menos que ele não seja um “autor de filmes”: Acossado, admiravelmente firmado a partir de dois personagens, é talvez a maior contribuição que a teoria crítica (a dos Cahiers) já deu à renovação do cinema. Renovação que pressupõe, inicialmente, o desmonte de uma das mais antigas tradições do cinema, especialmente do cinema francês: em substituição aos roteiros meticulosamente elaborados (e também, muitas vezes, com risíveis pretensões literárias), Godard nos oferece um cenário “de ideias”, vale dizer, um cenário onde só são válidos os personagens e suas relações. A participação de outro ex-crítico (hoje também autor de filmes e, como Godard, um renovador), François Truffaut, de modo algum autoriza a dúvida quanto à paternidade da fita: Acossado é fruto de uma imaginação, de uma concepção de cinema, de uma teoria estética e de uma visão de mundo. A tradicional fragmentação da obra cinematográfica cede lugar ao depoimento unitário, peça-confissão ao mesmo tempo que opinião sobre os homens e sobre as coisas.

Essa visão de mundo, na verdade, estrutura-se a partir desse cenário extremamente “antiliterário”, no sentido em que repele incidentes de ordem ficcional, mas firma-se como a observação de uma inteligência e de uma sensibilidade amadurecida na mise-en-scène, um modo de escrever com a câmera: ela é tão nervosa quanto os personagens, é capaz de segui-los, percebê-los na sua essência mais íntima, que é justamente aquela que se revela nos gestos de Michel Poiccard levantando a saia de Patricia Franchini ou no olhar de Patricia através de sua luneta de papelão. Renovação estilística, na forma e no fundo, Acossado diz tudo o que tem a dizer sem fazer coisa alguma de apocalíptico ou imortal: nada do irracionalismo de um Fellini em A doce vida, nem da angústia agonizante de Antonioni em A aventura ou A noite (excluindo, de propósito, Hiroshima, meu amor, que é um filme isolado no tempo e no espaço). As citações não são gratuitas, pois esses filmes são a parte mais importante do atual cinema – pela matéria comum a todos eles, o homem moderno –, e Acossado não é outra coisa senão uma crônica moderna: ligado assim ao cinema do momento, Godard consegue ainda superar as limitações dramáticas do cinema tradicional porque fez um filme que, pela primeira vez, não se alimenta apenas de fatos “reais”, mas é a própria realidade.

Conversas dirigidas: Godard e os personagens Poiccard e Patricia © Raymond Cauchetier

Realidade que nos diz respeito, principalmente: Acossado é um filme de crítico de cinema para críticos de cinema, de intelectual para intelectuais, mas principalmente de um homem sensível para homens sensíveis. Michel Poiccard vai ao cinema (como todos nós), é o seu hábito como o hábito do mundo inteiro: Poiccard é ainda Godard (na porta do cinema onde se exibe The Harder They Fall, de Mark Robson, e quando encara a foto de Humphrey Bogart; ouvindo Mozart; e dizendo que é em Genebra que se encontram as melhores mulheres). Poiccard é a síntese das ideias de Godard sobre o mundo – no seu anticonvencionalismo como na voracidade com que se entrega a uma vida livre e sem sentido (“entre o desgosto e o vazio, prefiro o vazio: o desgosto é uma estupidez e além do mais uma forma de compromisso”).

Mundo dominado pela velocidade, pelos foguetes e pelas manchetes de jornais: esse no cinema moderno, que elimina de uma vez, é o pano de fundo desse depoimento único, vez por todas o conceito obtuso de subserviência do cinema à literatura: o cinema é uma câmera, é tensão, ritmo, gestos – e olhares, principalmente. Os personagens Poiccard e Patricia (admiráveis composições de Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg) conversam como nós todos conversamos, mas é uma conversa “dirigida”: Patricia, na sua indecisão tipicamente americana, que a obriga a ser tudo para não ser nada (entre o desgosto e o vazio, prefere o desgosto: lê Faulkner, o de Wild Palms, conhece pintura e denuncia Michel à polícia, para salvá-lo), é a figura que Godard exatamente imagina: de óculos escuros e de blusa riscada (quando então a mulher é um encanto conforme as palavras de Jean-Pierre Melville no aeroporto, durante a entrevista, um dos pontos culminantes do filme), de chapéu na cama enquanto fuma um cigarro, ela não é outra coisa senão mulher. A paixão de Godard por Patricia, como de resto por toda essa humanidade agitada que povoa Acossado, faz com que ele “reinvente” o cinema. E, no entanto, Acossado não parece ter outra pretensão além de ser um depoimento extremamente pessoal.

Inútil tentar abordar nas três laudas de uma crônica todas as implicações e ressonâncias que Acossado traz, filme-manifesto de um grupo e filme-documento de um artista. É um filme de jovens para jovens, sem dúvida: E Lumière, em 1962, talvez seja também o que já se disse a respeito de Tristram Shandy, quando o espectador se espanta com a complexidade de sua forma: “É uma grande confusão, mas tem um plano”.