Nelson em ação: um antidiretor que jamais grita “corta!” ou “câme­ra!” e prefere falar diretamente com as pessoas ©Arquivo Nacional

Nelson, a fome de cinema

Um sol de 40 graus brilhava sobre uma velha câmera no dia em que o novo cinema brasileiro nasceu. O pai, Nelson Pereira dos Santos, é agora o seu papa

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No princípio era o caos: a chanchada representava todo o cinema brasileiro, os produtores independentes faliam, a produtora Vera Cruz fechava suas portas depois do curto e louco sonho de ser a Hollywood brasileira. Nesse confuso princípio, em 1955, um grupo de estreantes liderados por um paulista recém-chegado ao Rio, Nelson Pereira dos Santos, lançava a pedra fundamental do moderno cinema brasileiro, com Rio, 40 graus.

Era uma revolução – nas filmagens de rua, na espontaneidade dos atores e do argumento, na produção financiada por cotas entre amigos –, mas o caos persistia: o país vivia dias agitados e o chefe de polícia do então Distrito Federal proibiu o filme por motivos políticos e meteorológicos (dizia ele que a temperatura do Rio nunca subiu a 40 graus). O verão de 1969 é bem mais claro. O Rio suou a 41 graus à sombra, o estreante é hoje um homem consagrado com o Prêmio Golfinho, do Museu da Imagem e do Som, como melhor cineasta de 1968, e Rio, 40 graus entrou para a História como um exemplo cheio de profecias confirmadas.

Boas notícias

Aos quarenta anos, Nelson Pereira dos Santos não tem o aspecto de um sobrevivente dos dias difíceis. Sua fala mansa e medida trai o revolucionário que prefere mudar as coisas com paciência e método. Ele conseguiu se transformar, nestes catorze anos, na ponte aparentemente impossível entre os “sérios” e os “práticos”: artistas e comerciantes o admiram com a mesma intensidade. “É muito chato escrever alguma coisa sobre Nelson”, diz o cineasta Roberto Santos (A hora e a vez de Augusto Matraga, O homem nu), “pois tudo o que se diz dele é igual, sempre elogioso.”

Roberto, que deve a Nelson a produção do seu primeiro filme (O grande momento, de 1958), é um dos “sérios” cujas palavras coincidem com as de Jean Manzon, um dos “práticos” (produtor de 520 documentários publicitários). Manzon, quando não pode supervisionar pessoalmente seus filmes, chama outro diretor, e Nelson, além de dirigir, já montou vários filmes para ele. “Em jornal a gente também faz uma porção de coisas com que não concorda”, diz Nelson, “só que não assina. No cinema, a coisa é tão pública que todo mundo descobre logo. Eu prefiro assinar de uma vez.”

Quando fala de jornal e de cinema, Nelson está citando as suas duas profissões. Ele foi redator do extinto Diário Carioca (o único jornal que defendeu Rio, 40 graus na época) e do Jornal do Brasil até 1965. “Meu trabalho de jornalista foi muito importante para mim. Foi lá que eu aprendi a trabalhar os fatos, a sentir que coisas aparentemente sem importância podem ser uma boa notícia.”

Profundamente ligeiro

Um cinema de coisas aparentemente sem importância, como na comédia El Justicero, é também o que Nelson costuma praticar. O crítico Maurício Gomes Leite escreveu que, “lido nas entrelinhas, esse filme acusado de ligeiro revela-se um profundo documento sobre a chamada vida amena da Zona Sul carioca”.

De 1955 para cá, além de vários filmes curtos, ele montou Barravento, o primeiro filme de Glauber Rocha, e fez sete longas-metragens, alternando seus temas entre a paisagem urbana (Rio, 40 graus, Rio, Zona Norte, de 1957, Boca de Ouro, de 1963, e El Justicero, de 1967) e a rural (Mandacaru vermelho, de 1961, e Vidas secas, seu filme mais famoso, em 1963). O sétimo filme dessa lista, e que não cabe em nenhuma categoria, é Fome de amor (1968), que dividiu violentamente a crítica e mostra pela primeira vez o tranquilo Nelson tomado pela fúria de filmar.

Um crítico o acusou de “querer entrar na moda de Godard e Glauber Rocha”. Outro, ao contrário, achava que Nelson, “pela primeira vez, deixava a forma determinar o sentido do seu filme. Toda a sua força está concentrada no claro-escuro, na montagem fora de ordem, na música e nos ruídos”. Quanto a Nelson, ele não fala de Fome de amor – uma história de dois casais que moram numa ilha e afogam suas frustrações pessoais em álcool, sexo e gritos abafados clamando pela revolução. “Essa é uma obra aberta, basta abrir os olhos. Se falo, imponho um ponto de vista autoritário e limito o filme. Eu também sou um espectador.”

O diretor acha que seus filmes são entendidos pelo público. Se gostam ou não, é outra história ©Arquivo Nacional

Quem paga

Os protestos contra o último filme de Nelson podem ser explicados, em parte, pelo sucesso de Vidas secas, que ganhou vários prêmios internacionais, impressionou vivamente os admiradores do romance de Graciliano Ramos e fez um crítico carioca, célebre pela sua secura de estilo, escrever na época: “Todo o incenso, ouro e mirra aos pés de Nelson Pereira dos Santos!”. O “papa”, porém, jamais se perturbou com críticas ou elogios.

Jece Valadão, que trabalhou com Nelson em Rio, 40 graus, Rio, Zona Norte e Boca de Ouro, conta que em 1955 toda a equipe – dez pessoas – morava numa casa. Eles mesmos cozinhavam macarrão todos os dias e, como a filmagem durou quase um ano, “ninguém mais suportava ver a cara do outro”. Nelson foi o moderador. Jece diz que Nelson “não tem a menor ambição, não tem a menor noção do valor material das coisas”. Hélio Silva, fotógrafo que trabalhou com Nelson em vários filmes, resume as relações do cineasta com a crítica em dois episódios.

Os dois voltavam do Nordeste, sem um tostão, e no aeroporto do Rio tomaram dinheiro emprestado de um crítico, para a condução. Comentário de Nelson: “E ainda falam que a crítica não tem importância”. Mais tarde, um outro crítico convidou-os para um drinque. Deram a entender que não tinham dinheiro. O crítico pediu três uísques, depois mais três e, enquanto isso, ia arrasando os filmes de Nelson, que ouvia tudo silenciosamente. Quando o crítico foi embora, Nelson comentou sobre a conta, já paga: “A liberdade de expressão custa muito caro neste país”.

Um antidiretor

Ele dirige seus filmes assobiando, adora explicar as coisas que sabe. Arduíno Colasanti, um surfista carioca que Nelson transformou em ator em El Justicero e Fome de amor, chama-o de “mestre” e explica: “É impressionante a capacidade que ele tem de ensinar. Os atores acostumados a ordens rígidas do diretor ficam meio desorientados, pois Nelson os deixa inteiramente à vontade”.

Seus filmes, porém, não dão ideia de improvisação. Em 1961, quando já tinha pronto o roteiro de Vidas secas, Nelson arrumou as malas com a sua equipe e foi para a Bahia. Choveu forte durante vários dias e, quando passou a chuva (a primeira em muitos anos na região), tudo que era seco ficou florido e verde. Para aproveitar a viagem, ele escreveu rapidamente uma nova história – e fez Mandacaru vermelho. (No fim das filmagens, deviam 18 mil cruzeiros velhos aos armazéns de Juazeiro e tiveram que buscar o dinheiro no Rio, deixando dois membros da equipe como reféns). Luiz Carlos Barreto, produtor e fotógrafo de Vidas secas, acha que Nelson, durante o trabalho, procura ser “o antidiretor”.

Jamais grita “corta!” ou “câme­ra!”, prefere falar diretamente com as pessoas. Pode surpreender o fotógrafo com uma ordem súbita para captar um detalhe: “Filma isso aí!”. O resultado desse sistema de trabalhar são filmes preciosos, coerentes ou, para usar a linguagem dos críticos, “despojados”. Barreto pensa que “todo mundo pôs um rótulo no Nelson, e por isso as pessoas ficaram surpresas com Fome de amor. Quem o conhece sabe que ele é uma pessoa muito rica interiormente, mas que vive se policiando. Finalmente explodiu em Fome de amor”.

As palavras

Nelson acha que seus filmes são entendidos pelo público. Se o público gosta ou não, é outra história. Diz ele: “É bobagem dizer que o cinema brasileiro, distanciando-se do público, vai chegar a uma crise irreparável. Não conheço um único filme brasileiro que seja hermético”. Ele pensa que esse problema não é só do cinema brasileiro, mas do de todo o mundo: “Se contamos ao público uma história conhecida, de maneira diferente, o público não aceita. Está acostumado a comprar sempre as mesmas coisas”.

Falar com Nelson nem sempre é fácil (ele já chegou a forjar uma viagem a Salvador só para não dar uma entrevista), mas, quando dá aulas, explica minuciosamente todas as questões: é um dos seus grandes prazeres. Enquanto prepara os cursos de cinema da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Nelson termina o roteiro de seu próximo filme, Como era bom o meu francês, uma coprodução em cores a ser rodada este ano, parcialmente financiada por capitais franceses. Na rua em que mora, em Niterói, com mulher e três filhos, Nelson é muito popular. Ele foi para lá em 1955, pois no estado do Rio houve uma campanha a favor de Rio, 40 graus. “Fiquei em Niterói por opção. É facílimo morar aqui. Basta esquecer que o Rio, aqui em frente, existe.”