Enquadramento: Polanski e Mia Farrow no set de O bebê de Rosemary, 1968 @mptv images

Polanski, o diabo está solto

Um jovem domador de fantasmas abre as grades do purgatório

COMPARTILHE

Os demônios que durante séculos aterrorizaram a humanidade estão soltos. Um homem baixinho, que lembra um gnomo de contos de fada, com uma cara que é uma caricatura de Pinóquio, abriu as grades que prendiam esses demônios e, alegremente, vem despejando em cima das plateias de cinema em todo o mundo os mais variados tipos de horror: o medo de ficar velho em A faca na água, o nojo do próprio corpo em Repulsa ao sexo, a morbidez da solidão em Armadilha do destino, a ressurreição dos chupadores de sangue em A dança dos vampiros, o nascimento do diabo em O bebê de Rosemary. Para Roman Polanski, o jovem domador de fantasmas, essa lista tem funcionado como uma varinha de condão: A faca na água e Repulsa ao sexo ganharam muitos prêmios; Armadilha do destino foi considerado o melhor filme do Festival de Berlim, em 1966; e O bebê de Rosemary está entre os cinco filmes de maior bilheteria no ano passado em Nova York.

O sobrevivente

De A faca na água (1962), rodado na Polônia, a O bebê de Rosemary (1968), rodado nos Estados Unidos, o pequenino Polanski fez uma verdadeira escalada do terror e foi se tornando mais cruel de filme para filme. Aprendeu, também, a lidar com os produtores capitalistas e pôs um ponto final nas suas relações com o produtor americano Martin Ransohoff (que cortou dezenove minutos de A dança dos vampiros) chamando-o de “canalha cavador de ouro”. Depois de filmar na Polônia, Inglaterra, França e Estados Unidos, ele adquiriu o que chama de “senso exato do humor negro”. Filho de judeus poloneses, Polanski nasceu em Paris em 1933 e, três anos depois, estava na terra natal dos seus pais. Ele se considera um sobrevivente: a mãe morreu num campo de concentração, o pai voltou mutilado das torturas nazistas e jamais pôde cuidar do filho. Passou a infância de casa em casa e aos 14 anos entrou para uma escola de teatro, de onde saiu quatro anos depois, amargurado com o teatro polonês, que considerava “a pior droga do mundo”. Sua primeira alegria, diz ele, foi ter entrado para a Escola de Cinema de Lodz – onde estudou cinco anos. Lá conheceu, como colegas ou professores, os grandes mestres do cinema polonês: Andrzej Wajda, Andrzej Munk, Jerzy Skolimóvski. Quando se formou, fez o seu primeiro curta-metragem, Dois homens e um armário, e apareceu como figurante em filmes dos seus colegas.

História de louco

Ao deixar a Polônia, em 1962, Polanski havia feito um dos melhores filmes modernos de seu país, A faca na água, com a ajuda de Skolimóvski, hoje considerado “o Godard polonês”. O sucesso do filme no exterior animou-o a ir para Paris, mas Polanski decepcionou-se: os “papas” da nouvelle vague, como Jean-Luc Godard e François Truffaut, não o receberam e ele passou três meses em Paris fazendo não se sabe bem o quê. Na Inglaterra teve mais sorte: encontrou um produtor, Gene Gutóvski, e um escritor, Gerard Brach, com quem rodou dois filmes, Repulsa ao sexo (Repulsion, 1965) e Armadilha do destino (Cul-de-sac, 1966). Pela primeira vez falava-se de um “estilo Polanski”. No primeiro, uma das mais macabras e mórbidas histórias já apresentadas no cinema, Catherine Deneuve é uma jovem manicure, vista na primeira cena escovando os dentes depois de receber o beijo de um homem. Conta Polanski que conheceu em Paris uma jovem do tipo de Catherine no filme: bonita, tímida, distante, calada. Um amigo lhe contou que “conhecia profundamente” os problemas da moça e, baseados nesse relato, Polanski e Gerard Brach escreveram o roteiro em uma semana. Submeteram o texto ao dr. Stephen Black, que foi o consultor técnico do filme Freud, porque Polanski queria saber o “como”, e não o “por que” da frieza da personagem. Repulsion se transformou num alucinado retrato da loucura: a repulsa de Catherine não é simplesmente ao sexo, mas ao próprio fato de estar viva. Na metade final ela se tranca dentro de um apartamento e vai enlouquecendo aos poucos. Três assassinatos completam o filme.

A maculada Conceição

Cul-de-sac, diz Polanski, é puro humor ácido. Um velho assaltante em fuga (Lionel Stander) esconde-se na casa de um ex-industrial (Donald Pleasence) e de sua jovem mulher (Françoise Dorléac). O terror do casal, temperado pelo fascínio que o velho assaltante desperta na mulher, cresce à medida que os papéis vão sendo invertidos e termina de maneira sangrenta. Até esse filme, Polanski libertara fantasmas psicológicos, mostrando gostar muito de sadismo e maldade, mas depois de A dança dos vampiros (1967) passou a apelar para o sobrenatural. O bebê de Rosemary vem sendo apontado como “espantosa demonstração de suspense e terror”, e seu autor já foi chamado de “novo Hitchcock”. Ira Levin, autor do livro em que se baseia o filme (no Brasil, A semente do diabo), conta a história de um jovem casal (John Cassavetes e Mia Farrow) que se instala num apartamento rodeado de estranhos vizinhos. Ela está grávida, o marido começa a se comportar de maneira estranha; Rosemary sente odores raros, ouve vozes abafadas e pressente que o marido compactuara com os vizinhos, a fim de roubar-lhe o filho que vai nascer. Tarde demais: eles lhe dizem que seu filho nasceu morto, mas de repente ela sente que havia sido a Eleita para trazer à Terra o Filho das Trevas. Loucura da personagem? Na última cena, ela se aproxima de um berço preto, ornado com uma cruz de cabeça para baixo, onde um bebê é adorado. Polanski descobriu o Natal macabro: num tom que vários críticos chamaram de “blasfematório”, ele acabava de parodiar a história do nascimento do “bebê de Maria”.