O primeiro ninguém esquece

As aventuras do repórter que estava no primeiro voo supersônico de Paris ao Rio, com revistas de mulheres nuas nas mãos e dois colossos da imprensa à volta

A aguardada aterrisagem do Concorde no Galeão, em 1976 ©Sebastião Marinho / O Globo

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O primeiro ninguém esquece, na mensagem que depois ficou famosa sobre lingerie, e assim tudo corria muito bem para compor minhas futuras memórias. Era o que eu havia planejado. O meu primeiro, no caso, era o Concorde – para quem não sabe, até com alguma razão, é um avião, não um sutiã. Por isso estava na sala VIP do Aeroporto Charles de Gaulle, numa manhã de domingo de julho de 1976, para viver minha experiência inesquecível.

Com quase quatro horas de antecedência, eu esperava ser o primeiro passageiro a chegar para aproveitar ao máximo toda aquela modernidade. Anotar o que me impressionasse – e tudo ali era impressionante! – para depois sair contando para a mulher, filhos e amigos, pelo resto dos meus dias. Aquilo não se repetiria e tratei de aproveitar minha solidão de passageiro original para me extasiar sem testemunhas nem ter que dar explicações.

Só que alguém fora mais rápido do que eu. Estava sentado lá, no salão aeroespacial gelado, lendo alguma coisa. Era Victor Civita, dono da Editora Abril. Ele sempre fora, ao longo da vida, mais rápido do que eu e de muitos outros. Era um potentado, mas eu não esperava que chegasse a tanto em aeroportos. “Isso não pode estar acontecendo comigo”, pensei, com um certo desgosto e resignação de que estava acontecendo mesmo.

O seu Victor era meu patrão na época e a visão dele me provocou um misto de surpresa, apreensão e medo. Fazer sala num aeroporto VIP para patrão não era para qualquer um, e eu mal sabia o que me esperava. Ele me reconheceu, meio em dúvida, mas se eu estava ali ao lado dele, na antecâmara do futuro, deveria ser Alguém. E me saudou com aquele sorriso que desarmava qualquer um.

Caro, como estai?

Eu respondi que molto bene, sem muita convicção, sentei-me ao lado dele por alguns instantes e procurei dar um jeito de sair dali. Não tinha assunto para manter alto o nível com o fundador do império do Tio Patinhas. Não que quisesse me livrar da encantadora companhia dele. É que tinha intenções piores: comprar bugigangas no free shop, bebidas, lembrancinhas para as crianças, essas coisas de pobre metido de repente num aeroporto de cinema.

Tinha que aproveitar, e não seria ao lado do seu Victor, que continuava lendo alguma coisa, distraído. Como se não bastasse, eu perseguia também revistas de mulheres peladas, e não apenas Playboy. Chamavam-se Penthouse e Hustler, explicitíssimas e que eram todas proibidas no Brasil daquele tempo. Mesmo sendo antes das dez horas da manhã, faltando três para a decolagem, pedi licença alegando “coisas a fazer” e fui dar minha caminhada perdulária e lúbrica pelo aeroporto.

Seu Victor, entretido na leitura, nem notou minha ausência. Quando voltei, carregado de pacotes adocicados, alcoolizados e obscenos, a situação na sala VIP havia se tornado pior – pelo menos para o meu lado. Seu Victor tinha arrumado companhia, essa sim à altura.

Era o doutor Roberto Marinho. Elegantíssimos, os dois em seus ternos parecidos, na cor azul-cinzento, e eloquentes cada um mais que o outro, comentando seus trunfos empresariais. Eu me aproximei, com meu blazer lilás escuro, novo em folha, comprado especialmente para a ocasião, e com os braços lotados de troféus ordinários. Sentei-me, fatalmente, ao lado deles. Além de mim, eles eram os dois únicos da sala ainda quase deserta. Seu Victor levantou-se e me apresentou a seu par como um “colaborador”.

O doutor Roberto também se levantou e apertou minha mão. Pode ter me reconhecido, vagamente, como o seu Victor havia feito, porque anos antes eu havia trabalhado em O Globo. Uma vez fiquei quatro ou cinco minutos na sala dele, único lugar do prédio onde o ar-condicionado nunca era desligado, e falamos de cinema. Ele não poderia saber com certeza se me conhecia ou não. Mas, se estava com seu Victor, pode ter pensado, eu deveria ser Alguém. Dirigiu-me duas palavras:

– Como vai?

Dessa vez não precisei responder porque os dois colossos logo em seguida se sentaram e começaram a falar sobre os rumos da economia brasileira. A misericórdia divina trouxe ao salão mais pessoas ilustres, que lhes distribuíam abraços e cumprimentos, enquanto eu ia fumando um cigarro atrás do outro, em silêncio. Um pouco antes da uma hora da tarde fomos chamados a embarcar.

Mayrink entre seus ajudantes Victor Civita e Roberto Marinho ©Paulo Caruso

Seu Victor e o doutor Roberto levantaram-se. Naturalmente tinham os braços livres de encomendas. Eu carregava várias delas e me atrapalhei. Os dois grandes homens, ao meu lado, ficaram constrangidos e me socorreram naquele momento difícil. Seu Victor me ajudou carregando duas sacolas e o doutor Roberto mais uma. Malevolamente, pensei: “Tem que ter um fotógrafo aqui para registrar esta cena. Ninguém vai acreditar se eu contar”. Mas não havia nenhum e essa imagem, que seria inesquecível, se feita e depois impressa, o vento levou para sempre.

Quando seu Victor e o doutor Roberto partiam rumo ao supersônico, percebi que sobrara no sofá um dos meus embrulhos. Fui buscá-lo, mas achei algo mais: uma carteira perdida onde antes se sentara o doutor Roberto. Eu a peguei, pus no bolso e saí correndo rumo ao Concorde. Os meus ilustres carregadores já estavam instalados e ajeitando minhas sacolas nos compartimentos.

O destino, outra vez misericordioso, nos colocou em poltronas separadas. Eu não queria pensar na hipótese de viajar ao lado de um deles. Era minha estreia supersônica e planejava me embriagar e comer, sozinho com minhas fantasias mais delirantes, além do mais contemplando a Terra a 18 mil metros de altura. Nada que pudesse ser compartilhado com patrões ou ex-patrões, ou que eles pudessem entender.

Foi quando senti no bolso do meu blazer o volume da carteira que não era minha. Era preciso devolvê-la ao seu dono. Antes que o avião decolasse, o instinto vulgar de repórter me levou a abri-la. Era linda, de um couro escuro com uma leve aplicação de dourado. Dentro dela havia uma nota de 500 francos, um dinheirão na época. Fechei o tesouro, levantei-me e fui à poltrona do doutor Roberto para devolver-lhe seu pertence.

Ele se levantou ao me ver e remexia num bolso da calça à procura de algo. Quando lhe dei a carteira, explicando o que havia acontecido, ficou feliz. Estava mesmo afito com aquilo. Abriu, conferiu o conteúdo e me dirigiu mais duas palavras:

– Muito obrigado.

Foi assim que dei uma polpuda gorjeta ao doutor Roberto, talvez pelos bons serviços que me prestara em situação tão especial. “Isto não pode estar acontecendo”, pensei de novo. O doutor Roberto começou a folhear uma revista e, quando o avião finalmente subiu, botou máscara nos olhos para enfrentar o sol do voo diurno.

Lá embaixo sucediam-se imagens multicoloridas da campagne francesa e o comandante anunciou, solene, que estávamos sobrevoando a fabulosa catedral de Chartres. Eu tomava uma taça de champanhe Veuve Clicquot safra 1965 quando chegou o grande momento: iríamos ultrapassar a barreira do som.

As bolinhas do champanhe flutuavam na minha taça quando o Concorde (“Por Deus! Nós o faremos!”, havia jurado o general De Gaulle), em seis minutos, subiu de 10 mil para 18 mil metros e sua velocidade saltou de 900 para 2.100 quilômetros por hora.

Espetacular, levando-se em conta que nada tremeu, não se ouviu nenhum barulho a não ser o de gelo tilintando nos copos, e seu Victor e o doutor Roberto cochilavam. A curva da Terra apareceu além do horizonte da minha janela. Mas não na deles, onde as cortinas estavam abaixadas. Ambos tomavam água quando o almoço começou a ser servido, e o repas se estenderia pelo resto do dia.

Eu me regalava, entre outros pratos, com uma caille au gelée e sorvia um vinho Château Pichon Lalande, safra 1970. E a que delícias estariam se entregando meus ilustres colaboradores? Levantei e olhei pra trás, na sempre miserável compulsão de repórter em querer apurar. Eles tomavam sopa. Em seguida, recolocaram suas máscaras e dormiram.

Nunca mais vi o doutor Roberto, nem viajei outra vez com ele, desde que desceu na escala no Rio. Seu Victor continuou repousando de máscara num outro avião até São Paulo. Encontrei-o dias depois num corredor da Editora Abril, antes de entregar minha reportagem sobre o voo, e perguntei o que havia achado da experiência. Ele fez um ar de quem não se lembrava direito. Mas disse que ficaria calado:

– Não gosto de influenciar meus repórteres.

Lembro deles com carinho. Enquanto atravessava um oceano embriagando-me de vinho e visões, olhava minha bagagem de mão em segurança, graças a meus ajudantes, que dormiam o sono dos justos, com sua missão cumprida.

Pensei uma última vez: “Isto não pode estar acontecendo”. Mas aconteceu.

Foi num tempo em que patrões eram gentis com seus empregados, em que se podia fumar a bordo e em que se compravam quinquilharias e revistas escondidas.

Um tempo tão antigo e perdido em que, acreditem, até o Concorde voava de Paris para o Rio.