Agora estão dando carvão vegetal às galinhas. Era só o que faltava para coroar sua vida de martírios. Já eram obrigadas a comer, além de outras porcarias, milho cru, farelo de soja, farinha de milho, até alpiste. Depois, com a evolução da ciência, calcário, fosfato bicálcico (seja lá o que isso for), bom para os músculos delas, melhorando suas carnes. Minhoca — sua grande alegria à mesa ou à caça no quintal —, nem pensar. Formigas e lesmas também não. As prisioneiras passaram a se espremer em gaiolas de segurança máxima nas mais de 2 mil granjas brasileiras. Um Carandiru de galinhas é de estarrecer. Elas nascem, crescem e morrem sem sair de lá. Engordam e botam ovos. Velhas, são jogadas fora ou cozidas em sopas.

Nunca houve uma voz de protesto contra isso. Porque, para sua infelicidade, a galinha não está ameaçada de extinção no mundo. Pelo contrário, condenada a se multiplicar cada vez mais. Por isso, a notável Brigitte Bardot fez escândalos sensacionais, usando todos os jornais e revistas, em defesa dos bebês focas, de pele cobiçada pelas madames.

Sobre a galinha, nada.

Araras, saguis, micos-leões-dourados, jiboias, baleias, até papagaios e canários são protegidos por leis ambientais severas.

Sobre a galinha, nada.

Até a deslumbrante, espetacular, admirável e tudo o mais que merece Gisele Bündchen anda sendo insultada em público por usar peles animais, das quais faz anúncios.

— Mas sou a maior amante de bichos. Só faço anúncio, não uso as peles tiradas da natureza — justificou num lance de enorme repercussão na mídia mundial.

Sobre a galinha, nada.

É que a galinha não tem porta-vozes que apresentem e expliquem seus direitos. Por isso, a novidade no cardápio à base de carvão anunciada com grande orgulho científico pela Universidade Estadual Paulista na revista Pesquisa Fapesp passou despercebida pela imprensa. Ninguém dá atenção às galinhas, a não ser pesquisadores acadêmicos. Eles descobriram: com seus papos cheios de cinzas, elas passaram a botar ovos com 22% menos colesterol. As galinhas não leram a novidade, pois são analfabetas. Nenhuma jamais ouviu falar de colesterol, nem de estatísticas. E passaram a comer, sem reclamar, o que empurravam nos seus papos. Carvão.

A notícia sobre essa dieta deve ser mais um fato científico notável, menos para as galinhas. Trata-se apenas, embora elas não saibam disso, ignorantes que são, de outro capítulo da eterna luta do homem contra o ovo. Ilustra de forma trágica os versos de João Cabral de Melo Neto, em O ovo de galinha, que apontam para um mapa de vida:

No entretanto, o ovo, e apesar
Da pura forma concluída,
Não se situa no final:
Está no ponto de partida.

Cientistas e charlatões vêm botando o ovo no ponto final e as galinhas, suas produtoras, no corredor da morte. Mandaram também para o cadafalso carne vermelha, manteiga, pele de frango, coco, amendoim, abacate, doces e sorvetes. Seriam todos encarnações do Grande Satã das coronárias. Não há um único dia do ano em que os jornais e revistas deixem de publicar as ameaças de médicos contra o ato antigamente tão natural de comer e beber. Comidas e bebidas não têm como se defender, e desconfia-se que também as galinhas sejam vítimas de uma conspiração malévola e vítimas de difamação, à espera de reparações. O ovo da galinha situa-se no centro de humores cíclicos.

Se soubessem ler, as galinhas saberiam que, num dia, a revista Time ouviu médicos sustentarem que “os ovos não são tão ruins para a saúde como se acreditava, pois têm substâncias necessárias à dieta das pessoas normais”. No dia seguinte, a fatwa da saúde ordenou: coma um ovo e depois mais nada de origem animal.

Diante dessas notícias, e pensando numa omelete imaginária nos seus desejos, o escritor Luis Fernando Verissimo se revoltou. Sentiu-se enganado e escreveu: “Ovos eram bombas de colesterol. Você podia calcular em dias o tempo de vida perdido cada vez que comia uma gema. E agora estão nos dizendo que foi tudo um engano. O ovo é incapaz de matar uma mosca. A próxima notícia será de que bacon limpa artérias. Sei não, mas me devem algum tipo de indenização. Não se renuncia a pouca coisa quando se renuncia a um ovo frito. Quero ser ressarcido de todos os ovos fritos que não comi nesses anos de medo inútil”.

As galinhas eram, sem que fossem, as culpadas desse mal-entendido. Mas a infelicidade original da galinha, como se viu, é que ela bota ovos, formando sua glória e sina. Só que seu ovo vale quanto pesa, e não pesa nada — cerca de cinquenta gramas — no concerto das nações. É a comida mais barata que existe. Pelo preço de meia dúzia de ovos, compra-se um picolé. Trata-se de algo insuportável para a saúde econômica. Como se comem oitocentos bilhões de ovos por ano no mundo, exigiram-se providências. Assim surgiram os ovos light, que custam o dobro. Prometem quarenta por cento menos de colesterol mas só fornecem seis por cento. A falcatrua é uma manobra de marketing que lembra a da falsificação do corpo, na venda de peitos de silicone como se fossem peças originais. Os ovos são um negócio, só no Brasil, de um bilhão e meio de reais por ano. E as pessoas não querem fazer dieta.

Então, que alguém faça por elas. Escolheram as galinhas.

E ninguém as defendeu.

As poedeiras passam seus dias paralisadas para botarem a coisa certa. Engordam além da conta. São privadas até de direito animal básico, o de sair pelos quintais cacarejando e ciscando. Injustamente, continuam a emprestar seu castíssimo nome para designar mulheres assanhadas, que o desonram. Dizem até que são abusadas sexualmente por meninos audaciosos. As galinhas valem tão pouco que coisas compradas por preço infame são chamadas de galinhas-mortas.

Agora têm que engolir carvão, como se fossem pobres operárias inglesas nas minas do século XIX e não as arquitetas de um dos mais perfeitos designs de todos os tempos — as geniais criadoras do ovo.
Se vivessem no tempo em que os bichos falavam, as galinhas iriam cocorocar:

— Assim não dá!

Mas os jornais não as ouviriam, porque são iletradas. Por isso, deveriam estampar todo dia nas suas páginas de economia: “Cresce o consumo de carne inocente”.
As galinhas precisam de um porta-voz qualificado que as defenda deste insensato mundo.

_{Publicado na coletânea “Boa companhia”, Companhia das Letras, 2005}