Raízes do Brasil

A cordialidade, a malandragem e a conciliação a partir de uma profunda crise nacional: a de saber que cara temos

"Postcards from nowhere – Rio de Janeiro" © Vik Muniz / Reprodução

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“O brasileiro não existe”, disse o cacique Mário Juruna, com a autoridade de quem é descendente de brasileiros há muito mais tempo que os demais habitantes do Brasil. Essa inexistência pode ser identificada com uma profunda crise nacional: a de saber que cara temos. “Que país é este?”, perguntou uma vez, sem obter resposta, o deputado e ex-governador mineiro Francelino Pereira, ao cunhar a frase que se tornou um emblema, o mais bem-acabado de sua carreira política e filosófica. Não precisava ter perguntado porque respostas estavam em toda parte, como se verá nas próximas linhas. A disparidade de identidades criou naturalmente uma angústia tão grave que uma pesquisa feita pela agência DPZ, em São Paulo, nos anos 1980, revelou que 92% dos entrevistados achavam que a situação do país era desesperadora. A autoestima do brasileiro estava estilhaçada. Tom Jobim vivia dizendo que os brasileiros não suportam o sucesso de ninguém.

Nem sempre foi assim. O caráter nacional é conhecido há várias gerações na versão de um conde, Affonso Celso, e esse caráter, segundo o conde, era muito bom. Em 1900, nos papéis de político e historiador, Affonso Celso ensinou aos meninos que eles não veriam um país como este. No seu livro famoso, Por que me ufano do meu país, descreveu os conterrâneos como doces, honrados, hospitaleiros e felizes porque viviam numa terra notável pelos seus recursos naturais, “especialmente os hídricos”. Ninguém protestou contra a fartura natural descrita pelo conde, mas reclamou-se que os brasileiros não teriam aquela beleza toda. “Seria engano supor que as virtudes (apontadas no livro do conde) possam significar boas maneiras e civilidade”, acrescentou o historiador Sérgio Buarque de Holanda em 1936, no seu clássico Raízes do Brasil, apontado como a melhor obra de não ficção escrita no país no século XX, empatado com Casa-grande & senzala, de Gilberto Freyre.

O pai de Chico Buarque traçou um perfil do homem brasileiro, ao qual chamou de “cordial”, foi mal lido e pior ainda entendido. A tese da cordialidade grudou-se à sua biografia e ele precisou, pelo resto da vida, repudiá-la com veemência. “Numa terra radiosa vive um povo triste”, escrevera antes (em 1928) o aristocrata paulista Paulo Prado no seu livro Retrato do Brasil. Triste por ser indolente por natureza e sempre aberto a uma “sensualidade exagerada”, entre outros motivos. Era só o que faltava! Esses são todos livros clássicos, mas não se entendem. O povo tinha sua própria versão depreciativa sobre ele mesmo, e ela não era nem um pouco sensual nem exagerada. Nos anos 1920, uma quadrinha corria de boca em boca”

“São desgraças do país

Um patriotismo fofo

Leis com parola, preguiça,

Ferrugem, formiga e mofo”.

Esse nosso Narciso às avessas tem muitas caras. Uma delas é a de Jeca Tatu, criado por Monteiro Lobato. Ele era feio, esquálido, amarelado, indolente, comido pelos vermes, roubado pelo patrão e mesmo assim se tornou um herói da brasilidade, com sua sabedoria doentia mas sutil sobre os fatos da vida que o rodeava. Jeca era fruto de um libelo zangado do autor contra as injustiças que assolavam o homem do campo. Em outros países, os libelos a favor do homem do povo criaram uma hiper-realidade, personagens pobres mas absurdamente robustos como o Super-Homem e o Capitão Marvel.

Aqui, não. Escolhemos como símbolos malandros e valentões sem-vergonha. Um dos mais notáveis desses espécimes brasileiros veio ao mundo em 1928. Era um pirralho que saltou do ventre da mãe e espreguiçou-se escancarando a boca: “Ai, que preguiça!”. Era o começo de Macunaíma, um dos clássicos do moderno romance brasileiro, filmado nos anos 1960 por Joaquim Pedro de Andrade com Grande Otelo no papel do “herói sem nenhum caráter”, como era definido no romance de Mário de Andrade. Ao contrário de Jeca Tatu, Macunaíma era malandro. Esse era seu caráter, apresentado como inexistente. Sua preguiça e a de seus seguidores mais modernos, como Zé Carioca nos quadrinhos, nunca foram defeito. Brigão, matreiro e metido, ele se fazia de indolente por pura astúcia.

A malandragem, recurso clássico do fraco contra o forte, é um espectro que ronda nosso passado e invade sem pedir licença o nosso presente. “Somos todos corruptos”, disse Mario Amato, ex-presidente da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo, Fiesp. O falecido banqueiro Amador Aguiar, criador e dono do Bradesco, o maior banco privado brasileiro, disse que jamais tomou empréstimo em banco porque achava aquilo caro demais. E afirmou: “Nunca recebi um níquel de juros. Nunca emprestei dinheiro a ninguém para receber juros. Como eu não gasto nada, todo mundo acha que sou miserável. Não sou. Mas não gasto dinheiro, de fato. Sou velho. Tenho que ter algum pé-de-meia”. Mais recentemente, Luiz Carlos Mendonça de Barros, o ex-ministro das Comunicações, que perdeu o emprego por falar demais e ter seu telefone grampeado, declarou em pleno Congresso: “Às vezes todo mundo mente, até eu”.

Todos então seriam malandros, especialmente o maior malandro de todos, Gerson Nunes de Oliveira, cidadão fluminense de 59 anos. Atleta notável e campeão mundial de futebol, ele se tornou notório por outras razões. Em 1976, já fora dos campos, Gerson fumava. Por isso foi chamado para apresentar um comercial de cigarros. Precisava apenas dizer: “Leve vantagem”, referindo-se ao fato de que era possível comprar um cigarro de 100 milímetros, o Vila Rica, por 3 cruzeiros, enquanto os similares custavam 5. Os atores Felipe Carone, Maria Lúcia Dahl e Carlos Eduardo Dolabella fizeram o mesmo anúncio. Mas foi Gerson quem o transformou num lance de craque: pela primeira vez uma marca concorrente entrou na lista dos cigarros mais vendidos, monopolizada pela Souza Cruz.

Ninguém se tocou com os anúncios dos outros atores, mas o de Gerson grudou-se na sua biografia como uma craca que não a abandona jamais. Ele nem fuma há muitos anos, mas a norma que adotou seu nome, a Lei de Gerson, a de que é preciso levar vantagem em tudo, continua aí. Considera-se um mártir e não tem esperança de que a pecha vá abandoná-lo um dia. A malandragem, que consagrou e fez a má fama de Gerson, e a cordialidade, que o anistiaria, ficavam duramente arranhadas. E eram dois pilares da nacionalidade.

A cordialidade nacional estava em crise. “Anistia é coisa de britânicos, búlgaros, belgas, gente que não tem o que fazer”, disse o ex-governador do Pará Hélio Gueiros. Em 1970, por exemplo, época áurea da ditadura militar, o general Emílio Garrastazu Médici foi eleito “o esportista do ano” pelo Museu da Imagem e do Som de São Paulo. Naquele mesmo período os comerciantes da rua Augusta, em São Paulo, estenderam tapetes para saudar os passageiros dos carros que passassem por lá para fazer suas compras. Era o momento do “milagre econômico”, e os episódios da eleição do general-presidente e do desenrolar de tapetes, os dois bajulatórios, davam algumas respostas à pergunta de Francelino Pereira a respeito do caráter nacional.

Mas ouviu-se, tempos depois, a voz da experiência: “A malandragem no duro acabou. O que existe hoje é banditismo, assaltos, corrupção, coisas incríveis”, reclamava o lendário Moreira da Silva, malandro e sambista, numa sabedoria hoje quase centenária. “A cordialidade e a malandragem estão agora aplicadas no mais empolgante esporte nacional: o saque aos supermercados”, dizia o falecido cineasta Joaquim Pedro de Andrade, que imortalizara Grande Otelo em Macunaíma. Quanto a Chico Buarque, contou em versos que quis fazer um samba em homenagem à malandragem, que conhecia de outros carnavais. Foi à Lapa e perdeu a viagem, pois a velha malandragem não existe mais. Pior: “Dizem as más-línguas que ele (o malandro) até trabalha, mora lá longe e chacoalha num trem da Central”. Muito antes de Amador Aguiar e Mendonça de Barros, em 1990, o ex-ministro da Fazenda, Delfim Netto, passou o atestado do poder às palavras de Moreira da Silva. Ele foi perguntado sobre o endividamento brasileiro, cada vez maior, e que teria crescido durante suas gestões como tsar da economia. Disse: “Pedimos 100 milhões de dólares emprestados e deveríamos ter pedido mais. Pô, era para não pagar mesmo!”.

Até pouco tempo antes a polícia pedia nossos documentos, revistava nossos bolsos e mochilas em aeroportos, estações rodoviárias e de trens. Às vezes, no meio da rua, ou a qualquer hora em nossas casas. Prendia, interrogava e batia. Quase sempre soltava e, às vezes, torturava e matava. Mas só às vezes. Quando a ditadura acabou na prática da vida cotidiana, com a lei de anistia de 1979, houve uma surpresa: o ânimo dos brasileiros não deu sinais de melhora. Num país repleto de jovens, muita gente parecia sentir saudade de um outro tempo, que a maioria só conhecia de ouvir falar. Eles se orgulhavam, estranhamente, de uma extravagância de sua língua: a de que a palavra “saudade” só existiria em português. Mostravam-se interessados mais no passado do que no presente ou no futuro. Enfim, confirmavam que nada é melhor para trazer de volta os velhos bons tempos do que uma memória fraca.

A conclusão de tudo isso é simples e dramática. Naquela época, 64% dos cariocas e 70% dos paulistas iriam embora do país, se pudessem. Para confundir um pouco mais esses dados, é preciso fazer um adendo à pesquisa da agência DPZ que mostrou 92% dos entrevistados em São Paulo certos de que a situação do país como um todo era “desesperadora”. E que 65% deles consideravam também como “razoável” sua situação individual. O desespero era coletivo, não particular. É difícil entender essa ambiguidade. O homem brasileiro é cordial ou apenas oportunista? E precisa mesmo levar vantagem em tudo, embora quase nunca leve?

Naquele tempo, havia uma expressão para mostrar o desgosto com a situação: as pessoas pegavam o boné e davam no pé. Hoje, esse quadro parece ter mudado. Os brasileiros já têm orgulho de ser brasileiros. O que terá acontecido?

Texto revisto e ampliado pelo autor em 2000.