Chega mais: Rita e Mayrink na sala de música da cantora, em 1980 ©Arnaldo Klajn
Uma conversa franca com a cantora que esperou uma década para que o país descobrisse que ama suas músicas e que está apaixonado por ela
Faz pouco mais de um ano que Rita Lee dá água na boca dos brasileiros. Foi só depois que ela, “molhada de suor”, usou o leito para compor com o marido, Roberto de Carvalho, o grande hit de 1979-80, Mania de você, que as portas se escancararam e o país recebeu, de coração aberto, a sua nova frenética paixão – Rita Lee Jones, a velha roqueira, aquela mesma que tocava sininhos nos tempos dos Mutantes, no histórico 1968 do tropicalismo e do AI-5. Passaram-se desde então mais de dez anos de estrada, de curvas e precipícios. Hoje, Rita Lee é a darling de várias gerações.
Poucos artistas brasileiros enfrentaram tanta má vontade ou hostilidade quanto ela. Numa sucessão quase inacreditável de enganos, ela foi tida como a fada feliz do fim dos anos 1960, quando era uma mulher triste e inquieta; garantiam a sua nacionalidade americana, quando nasceu numa casa da Vila Mariana, bairro de classe média de São Paulo, neta de um imigrante americano, filha de um dentista de Santa Bárbara d’Oeste (SP), Carlos Fenley Jones, e de dona Romilda Padula, descendente de italianos; deveria chamar-se Bárbara, em homenagem à santa, mas na hora do batizado resolveram homenagear a avó materna, que se chamava Clorinda mas tinha o apelido de Rita; presa em 1976, com dez outros músicos, sob acusação de porte de maconha, imaginou que estava arrasada, quando a enxurrada de cartas de solidariedade deu o primeiro sinal de que sua vida de roqueira quase anônima iria mudar. Enfim, do seu primeiro LP, Atrás do porto tem uma cidade, de 1974, até o sexto, Rita Lee, lançado em outubro do ano passado com 130 mil cópias vendidas logo no primeiro mês, ela foi severamente castigada pelos críticos. Eles achavam sua música banal, frívola e pífia. Hoje, usam seu espaço impresso para pedir perdão.
A oposição é de certo modo compreensível, pois Rita sempre foi uma força estranha na música brasileira, que ela, aliás, mal ouvia, preferindo sintonizar suas antenas nas ondas eletrificadas do rock importado. “Sai da frente que eu quero é comer/ a música popular brasileira”, diz ela em Arrombou a festa II. Além disso, num mundo musical dominado por machos sofredores e autoritários, ora vertendo lágrimas pela perda de seus amores, ora tratando as mulheres como um complemento do fogão de quatro bocas instalado na cozinha, Rita era ainda mais estrangeira por causa de seu raro sendo de humor. Ela se formou como mulher e artista sem se integrar em nenhum dos vários movimentos da música brasileira, do protesto em diante. Escapou, milagrosamente, dos vários paredóns onde são justiçados os inimigos reais e imaginários da música brasileira. No seu Diário, de muitas páginas mas sem nenhum prazo para publicação, aparece esta observação: “Quando começo a pensar no que passou, nunca chego a uma conclusão se já fiz muitas coisas ou se simplesmente ainda não fiz nada. A música, por exemplo, sempre considerei uma espécie de passatempo, não propriamente um trabalho”.
O caráter singular da música de Rita Lee, bem como a alegria que sempre é para a plateia qualquer um dos seus shows, talvez explique por que o delírio que ela desperta seja hoje tão grande. É um roquinho simples, bom para ser ouvido em rádio de pilha, mas que o milagre eletrônico transforma em aveludadas peças de luxo, deliciosas como as sensações que suas letras prometem. Como intérprete, ela também é uma estrela solitária na nossa constelação de cantoras trágicas, firmes no gosto do público desde o dia em que Carcará, a ave vingadora, voou do sertão para Copacabana e soltou seu grito de guerra. O porta-estandarte de Rita é outro. São mulheres como a de Perigosa (“bonita e gostosa”), a de Mania de você (“vestindo fantasias, tirando a roupa”), ou a de Lança-perfume (“me dá o prazer de ter prazer comigo”).
Casada desde 1976 com o guitarrista Roberto de Carvalho, coautor da maioria de seus sucessos recentes, Rita completou 35 anos no último réveillon. Vivem com os filhos, Roberto, de 5 anos, e João, de 2 anos e meio, num casarão branco cercado de vegetação no bairro do Pacaembu, em São Paulo, onde o editor Geraldo Mayrink foi encontrá-la para duas sessões de entrevista.
“Eu já conhecia Rita de uma conversa anterior, em 1979”, relata Mayrink, “e achava que não teria maiores dificuldades. Na verdade, a primeira entrevista demorou quase um mês para ser marcada por causa da agenda sobrecarregada dela. Quando cheguei, numa noite de segunda-feita, esperava praticamente ter que passar tudo a limpo, recomeçar do zero, pois afinal a importância de Rita cresceu tanto, desde a entrevista de 1979…”
“Conversamos na sala de música do casal, naquela segunda-feira e na seguinte, mas, antes que eu fizesse a primeira pergunta, Rita disse: ‘Já sei, você desta vez quer tudo’. Começou então a falar. Sua firmeza e rapidez de raciocínio permaneceram inalteradas do começo ao fim da entrevista, mesmo nos momentos em que a conversa mergulhava em assuntos sobrenaturais e extraterrestres. Meu trabalho foi tão mais fascinante quando se sabe que Rita tem várias personalidades e responde por elas quando baixam na conversa: Regina Célia, fisicamente parecida com o empresário Guilherme Araújo, solteirona preconceituosa e pedante; Gungum, órfã de 4 anos, carente e enjoada; Aníbal, malandro que está aguardando uma chance na gravadora Chantecler e que é louco ‘pelos coxões da Fafá de Belém, com todo o respeito’. Rita foi uma das raríssimas pessoas que entrevistei que não deixaram sem resposta uma única das perguntas, nem insinuaram depois que queriam rever ou alterar trecho do que haviam dito”.
Flagra: Mayrink e Rita olham as fotos da primeira das duas sessões de entrevistas para a Playboy, em dezembro de 1980 ©Arnaldo Klajn
MAYRINK | Como você se sente tendo um país inteiro apaixonado por você?
RITA | Ótima! As pessoas agora jogam lencinhos de lança-perfume no palco. Acabou a época do baseado: agora é lencinho de lança-perfume. Esses shows novos estão me dando uma porção de informações que eu não tinha com relação às minhas músicas. As pessoas estão mais atentas ao lance da gente.
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M | Que lance?
R | Coisas românticas, faladas de uma maneira leve, brincalhona, que não tenham peso de divã de analista no meio. O sexo sem Freud. Com Mania de você foi assim. A música pegou todas as idades porque todo mundo já tinha passado por aquilo. Nos shows eu não preciso mais abrir a boca; as pessoas cantam Mania de você sozinhas. Todo mundo querendo ser a gente, todo mundo sendo a gente. Porque, quando uma música atinge uma pessoa, é sinal de que está se passando com essa pessoa algum sonho, alguma alucinação. Mais ou menos assim: mirem-se no exemplo de nós mesmos.
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M | Que exemplo?
R | A gente, eu e o Roberto, tinha acabado de transar. Estávamos suados. O Roberto pegou um violão que estava ao lado da cama e eu ainda fiquei meio zoneando, feliz da vida, explodindo os corações todos. E aí ele começou a fazer aquele lance de melodia e de música. De repente eu falei assim: “Eu conheço essa música”. Eu estava um pouco no futuro, assim como aquela sensação de já conhecer uma música apesar de nunca ter ouvido. Foi uma coisa muito leve. Ninguém puxou nada. Mania de você foi um fundo musical para uma situação de profundo tesão, de amor às últimas consequências. Foi a mesma coisa que transar, ter transado. A gente ficou apaixonada pela gente mesma. Foi uma das poucas vezes em que perdi aquela autocrítica que eu tenho e que destrói tudo, completamente.
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M | O que há de errado com você?
R | Eu acho que não tenho voz, que não sou uma cantora. Não gosto da minha voz e sinceramente nunca parti para aprender a cantar. O máximo que fiz foi uma operação nas cordas vocais, para extrair uns calos que nasceram de tanto eu emitir sons errados. Eu não me proponho a ser uma Elis Regina, jamais! Tenho outras coisas para me compensar: faço letra, toco flauta… Eu não sou cantora. Eu sou uma pessoa.
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M | Quase todos os críticos vêm dizendo isso, há mais de dez anos: que você não é uma cantora, que suas músicas são uma porcaria. Agora andam pedindo perdão pelo que escreveram. O seu sucesso subiu à cabeça deles?
R | Sei lá. Essas pessoas que escreveram hoje “Perdão, Rita Lee, eu não sabia o que fazia” estavam naquele lance de acabar comigo. Achavam que o que eu fazia não era brasileiro. Eu tenho a impressão de que o crítico que escreveu esse pedido de perdão aí, o Silvio Lancellotti, realmente nunca escutou direito os meus discos. Eu curtia a irmã dele adoidado – é a Márcia, minha amiga. E de repente fiquei sabendo que ela era irmã do Lancellotti. Nós duas éramos roqueiras. A gente sabia que o Silvio tinha uns lances assim de engajação, que ele ficava lá falando, cacacá, cacacá, cacacá, e nós duas brincando. Aí eu comecei a me profissionalizar e ele conservou o espírito de crítica, disse “não”. Agora, aquele lance do perdão que ele escreveu na IstoÉ eu achei bonitinho, achei moleque, legal. Tudo bem.
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M | O que mais os críticos diziam contra você?
R | Tudo. Eu tenho um arquivo, sabe, com essas críticas. Diziam cada coisa! Rita Lee, aquela parenta da calça Lee. Roqueira senil. O Henfil escreveu que o Brasil padecia de dois males: inflação e Rita Lee. Reclamavam por eu ser mulher, por ser gringa, por ter olhos azuis, por me chamar Jones, por ser roqueira.
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M | E como você sobreviveu a tanta desgraça?
R | Eu assumi a maldição. Era tão maldita, tão maldita, tão maldita que não podia acabar assim, sem mais nem menos. Coisa ruim não morre. Os cacetes que levei me deram impulso, eu precisava continuar. Eu nunca quis ser o que sou, estar onde estou. Eu sinto prazer com música de uma maneira muito marginal. Nunca fui de saber quanto ganhei, quantos discos vendi, de brigar por direitos autorais, nada. Eu sempre fui muito ligada a som, é o meu brinquedo predileto até hoje. Aí, eu não entendo. Me tratavam como peste, como inimiga, como um perigo. Porra! Eu sou diabólica! As pessoas pensam que eu sou uma coisa, e eu não sou nada disso. Que loucura!
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M | Como você aguentou o peso do seu sobrenome?
R | Saía assim nos jornais: “Rita Lee, americana de nascimento”. O meu sobrenome deixava as pessoas loucas de raiva. Por que não foram reclamar do Geisel, que é alemão? Ou do Shigeaki Ueki, que é japonês? Mas com música não pode mexer, é uma coisa sagrada. Diziam que eu estava fora da nossa realidade, usava guitarra elétrica, que era uma alienação. Eu sou paulista, mistura de americano com italiano. Mas essa história de que sou estrangeira não começou com música. Começou muito antes, no Liceu Pasteur, que é um colégio francês onde eu estudei. As regalias, os melhores professores, a ginástica mais legal eram para os alunos do curso de francês. Os brasileiros pagavam a mesma coisa, mas não tinham regalia nenhuma.
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M | Você alguma vez sentiu vontade de ir embora do Brasil?
R | Eu fui embora. Eu já era profissional, já tinha pegado cadeia, brigado com gravadoras, e apareceu a oportunidade na RCA americana. Queriam gravar artistas brasileiros e achavam que eu podia usar o meu sobrenome. Rita, nome latino, ajudava a fazer a ponte. Eu fui lá, naqueles prédios enormes, e conversei com uma moça que sabia tudo a meu respeito, que Mania de você estava estourando. Ela queria que eu fosse fazer circuito universitário, batalhar tudo de novo, mas eu senti que não ia adiantar muito. Ia ficar na prateleira do folclore, mesmo sendo gringa de olhos azuis. Americano é preconceituoso; se sentir um sotaque estranho, as músicas não tocam nas rádios. Vão para a galeria do folclore, como foram o Milton Nascimento, Gilberto Gil. Aí eu pensei: gente, que maravilha! Não sou de lugar nenhum! Sou do planeta. Eu sou ótima! E minha música foi nessa.
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M | Por que você acha que os críticos que te pichavam antes estão mudando de opinião?
R | Eu acho que é porque você não pode ficar atacando uma pessoa que toca tanto no rádio, que enche a casa em todos os shows que faz. Deve ser isso. Eu fico pensando que a crítica partiu sempre de uma pessoa engajada em alguma coisa assim meio chata, sabe? Fico querendo saber do cara, chegar, telefonar, ser tiete de crítico! Mas nunca me aproximo. Acho que o cara vai me tratar mal. O Tárik de Souza, por exemplo… Queria saber, conversar com ele… Quem sabe ele tem toques para me dar que eu ainda não percebi? Eu quero saber das coisas. As pessoas que gostam de mim eu entendo por que gostam de mim. É porque eu gosto delas. Agora, as que não gostam…
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M | O que aconteceria num encontro seu com o Tárik?
R | Não sei.
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M | Imagine que vai acontecer. Numa festa. Vocês vão ser apresentados. Rita, este aqui é o Tárik de Souza.
R | Você é o Tárik? Ah, muito prazer. Tudo bem?
“TÁRIK DE SOUZA” | Tudo bem.
R | Vamos dançar?
“TÁRIK DE SOUZA” | [Silêncio]
R | Ah, uma tábua! Ele deve ser ainda mais tímido do que eu. Mas eu vou sair dançando sozinha; eu sempre fiz isso. Depois eu volto. E aí a gente sai dançando.
“TÁRIK DE SOUZA” [dançando com Rita] | Você estuda?
R | Eu abandonei a faculdade na primeira semana. Para fazer música.
“TÁRIK DE SOUZA” | Hmmm, eu me lembro. Eu me lembro de tudo. Desde o começo.
R | Oh! Você se lembra? Pois quer saber de uma coisa? Eu me lembro de você também! Ah, ah, ah, ah!
M | A música acabou.
R | [tomando Coca-Cola em pé, com seu acompanhante] – Você não gosta de mim. Por que você não gosta? É por causa do meu sobrenome estrangeiro?
“TÁRIK DE SOUZA” | O quê?
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M | Você estaria à vontade nesse momento?
R | Estaria o quê?
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M | À vontade.
R | Depois da dança, estaria.
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M | Mas aí aparece uma terceira pessoa e leva o Tárik embora. É o Chico Buarque.
“CHICO BUARQUE” – Ô Tárik, vem comigo. Tem umas coisas importantes aqui pra gente conversar. Com licença.
R | Ah!
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M | Por que você não esquece essas coisas?
R | Esquecer? Mas eu esqueço também. O Henfil me desenhou um Ubaldo muito bonitinho. Foi uma bandeira da paz. Tudo bem.
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M | Você dançaria com o José Ramos Tinhorão?
R | Dançaria. Eu ia procurar saber por que ele é tão radical. É uma coisa que eu não consigo imaginar. Dançaria o que ele quisesse, qualquer coisa. Eu não guardo ressentimentos nem mágoa de ninguém. Quando eu encontro uma dessas pessoas que me sacanearam, eu já deixo barato. Também não posso reclamar muito porque aprendi muito na porrada, que é uma coisa do meu signo. Capricorniano aprende na porrada.
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M | Por que você é tão boazinha?
R | Sou? Mas eu fico brava também com umas coisas, umas pessoas. Eu tenho um discurso para tudo: um a favor do crítico, outro contra e um muito pelo contrário. Posso ter quantos discursos quiser. Mas acho que crítica não é censura. A crítica não apreende discos e pode dar uns toques legais. As pessoas podem ficar feridas, mas não sei de ninguém que tenha vendido menos discos por causa da crítica. Ninguém deixa de assistir a um show porque a crítica é ruim. Nunca acreditei nisso. Agora, existem críticos perigosos. Mas aí não são mais críticos. São delatores.
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M | Quem?
R | O Artur da Távola. Eu não gosto dele, nunca gostei, desde que ele fazia parte dos grupos de trabalho da Polygram. Ele achava que eu devia ser séria, fazer uma carreira. Eu levava na brincadeira e ele ficava puto. Agora escreve no Globo umas coisas horríveis. Faz um bilhete para a Baby Consuelo e o Pepeu, cheio de conceitos morais, dedando o baseado. Quando o caso pegou fogo e foi parar em Brasília, pois a música O mal é o que sai da boca do homem estava para ser proibida, o juiz tinha na mesa a crítica do Artur da Távola. Depois escreveu sobre o meu especial na Rede Globo, dizendo que eu não fazia música brasileira etc., condenando a falta de potência da minha voz. Quer dizer, ele acha isso negativo, quando é o contrário. É positivo eu saber entrar num estúdio e transar a minha voz. Ele diz que sou fabricada, que sou uma bosta, que sou uma mentira. Ele trabalha no Globo e não escreveu uma linha sobre o programa de televisão da Globo. Falou sobre colocação de voz, escola, essas coisas que ele conhece, e que eu sou a musa dos reprimidos, e não dos oprimidos! Mas qual é? Que partidão é esse? Ele é uma pessoa muito chata, baixo-astral e dedo-duro.
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M | O que mais atrapalhou a sua carreira?
R | Viviam me batendo a porta na cara, mexiam nos meus discos. Em 1968, no Festival Internacional da Canção, fizeram um manifesto contra a guitarra elétrica. Eu estava nos Mutantes, começando. O Dori Caymmi, Edu Lobo e sei lá mais quem assinaram o manifesto, dizendo que a gente não devia estar lá no festival. Encontrei muita gente horrorosa na minha vida. A Polygram era um absurdo. Inventaram um grupo de trabalho, no Copacabana Palace, e tinha lá umas pessoas idiotas, fazendo perguntas cretinas, naquele lance de querer fabricar um artista. Estavam lá o Paulo Coelho, o Armando Pitigliani, além do Artur da Távola. Eles diziam: “Você podia fazer uma música assim, de uma menina grávida que quer o filho e a família não deixa”. Eu respondia que não estava grávida, que não pensava em filho. “Ah, mas você tem que abranger uma faixa de idade, a dona de casa, sabe?” Era uma coisa chatíssima. Eles não tinham talento, não sabiam de nada, não tinham nada para comandar alguma coisa. Aí eu falei: “Vocês me dão licença, mas isto aqui está muito chato. Eu vou no banheiro tomar uma bola, que não estou aguentando mais”.
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M | Você não discutia?
R | Eu dizia a eles: “Tenho uma música chamada Mamãe natureza, que é legal, não tem nada a ver com filho”. “Não, não queremos ouvir.” “Ah, mas eu tenho outra, Esse tal do rock and roll, uma coisa que aconteceu comigo.” “Não, não, não queremos escutar. Você vai fazer uma música assim, de mulher desquitada…” Meu Deus! Eles pegavam um artista e o torturavam. Essa era a punição, se você quer saber, mas não acabou aí. Foi pior com Atrás do porto tem uma cidade, meu primeiro LP, em 1974. A Polygram não quis gravar ao vivo e exigiu estúdio. Os meninos do Tutti Frutti fizeram a maior confusão – nunca tinham entrado num estúdio! Eu e a Lucinha Turnbull éramos mais sambadas. O pessoal do estúdio viu que a gente não estava se entendendo mesmo e mandou um produtor para meter a mão, o Mazola. Foi um desastre.
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M | O que aconteceu?
R | Tinha uma música muito bonita, Menino bonito, uma declaração de amor delicada, romântica, que falava de um rapaz belíssimo sem nada na cabeça, tipo bonitinho mas ordinário. Era uma coisa leve, um dueto. Mas tiraram os nossos violões, sumiram com a voz da Lucinha e deixaram a minha, esse fio de cabelo. Botaram uma orquestração que não tinha nada a ver. Eu comprei o disco num supermercado e quase caí dura. Reclamei, pedi uma segunda chance, mas eles me disseram que a gravadora só podia ter uma estrela, uma pessoa fantástica, um grande compositor jovem, tudo que eu não tinha conseguido, o João Ricardo.
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M | Quem?
R | O João Ricardo. O João Ricardo. Aí eu olhei bem para o André Midani, que na época era o presidente da Polygram, dei um tchau e fui embora. Foi muito baixo-astral, sabe?
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M | Mas você e o Tutti Frutti não estavam mesmo se entendendo. A gravadora não tinha alguma razão em interferir?
R | Bom, sei lá. Foi um absurdo, mas vai ver… Acontece que a barra com o Tutti Frutti estava muito pesada. Eu tocava Mellotron, címbalos, teclados. A Lúcia era uma grande solista de violão. Os meninos ficavam uma fera com a gente. Diziam: “Essa música de vocês é uma bosta, uma merda sem tamanho”. A gente falava: “Tudo bem, é uma bosta. O que vocês têm para pôr no lugar?”. Não tinham. Ficavam o dia inteiro copiando o Yes. A gente ria deles e quase apanhava: “Vocês não entendem nada. São mulheres. Tem duas mulheres no grupo e estão afundando o conjunto! Não existe nenhuma mulher que faça rock”. Eu e a Lucinha protestávamos: “Tem, tem. Tem a Janis Joplin!”. Aí eles caíam na risada e citavam uma porção de roqueiros homens.
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M | Se estava assim tão ruim no Tutti Frutti, por que você deixou os Mutantes?
R | Era pior ainda com os Mutantes. Ou a mesma coisa, sei lá. Eram horríveis os dois. Com os Mutantes era o mesmo processo: ouvir o Yes e discriminar mulher. Os Mutantes tinham sido muito alegres – o Arnaldo, o Serginho e eu éramos amigos de infância. Aí eles tomaram muito ácido e não seguraram. Conheceram Deus, viram Deus, gravavam a fita do Yes, passavam a fita ao contrário e ficavam deslumbrados. Se alguém dizia alguma coisa, ficavam furiosos: “Silêncio!”. Eu estava desesperada e fui a Londres pedir um help ao meu guru, Gilberto Gil. Ele me olhou e disse: “Comadre, você sempre foi uma fada; que tristeza é essa?”. Eu expliquei e o Gil me deu muita força. Saiu comigo para comprar um sintetizador, um Mellotron e uma flauta. Quando voltei, os Mutantes me disseram: “De jeito nenhum você vai tocar isso. Você vai é botar uma sainha curta, com essas perninhas tão bonitinhas, e tocar seu pandeiro. Música é de Deus; você não pode mexer com essas coisas…”.
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M | Por que você não reagiu?
R | Não deu. Eram cinco homens, todos pensando a mesma coisa. Achavam que brincadeira era coisa do diabo. Entraram num frenesi de virtuosismo, queriam tocar que nem o Eric Clapton, o Jimi Hendrix. Os roqueiros todos da época diziam: “Eu sou cobra, sou a guitarra mais rápida do pedaço!”. Eu e a Lúcia estávamos mais a fim era de inventar loucuras, música com letra e assim meio sem sentido, umas roupinhas. Rock é coisa de macho. Aí os Mutantes me avisaram que queriam falar sério. E o sério é um horror. Eu tinha gravado uns discos sozinha e o José, do Georges Moustaki, tocou muito em rádio. Eu não podia cantar isso em show dos Mutantes, que achavam a coisa mais cafona, mais horrorosa. Eu dizia: “Mas o pessoal gosta. Vamos pôr no show”. “Não, de jeito nenhum. Bobagem.”
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M | Como acabou isso tudo?
R | Num festival da canção, em 1972. A música era Mande um abraço pra velha, meio imitando o Yes, claro, eu convenci a moçada a dar uma quebrada na música, pôr um pouco de samba. Eles concordaram a muito custo. Quando toparam, resolveram se fantasiar, um de índio, outro de Zé Carioca, e eu pensei: “Não vou me fantasiar de porra nenhuma porque eu não estou com nada. Eu sou Viúva dos Mutantes”. E fui de preto, de viúva. A música foi desclassificada e a culpa logicamente caiu em cima de mim. Disseram: “Quer coisa mais pra baixo! Roupa de viúva… A gente não podia tocar samba. Mulher é foda!”. Era um convite para eu me retirar mesmo. Aí, antes que pintasse o baixo nível, eu concordei em sair. Só que um terço do equipamento era meu. Eles disseram que não, que iam ficar com tudo porque pretendiam pôr uma pessoa no meu lugar, e não ia acontecer nada comigo mesmo. Eu esperneei, disse que ia continuar fazendo música, mas eles não concordaram de jeito nenhum: “Você não vai fazer nada. Vai é se danar por aí”. Eu fiquei tristíssima. Ficamos juntos sete anos e acabou desse jeito.
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M | Você ainda era casada com o Arnaldo naquela época?
R | Era. Foi uma palhaçada. A gente ia se apresentar no programa da Hebe Camargo e resolvemos bolar alguma coisa diferente. Os dois queriam brigar diante da câmera pela minha posse! O casamento era um pretexto, mas com qual dos dois casar? Escolhemos o Arnaldo e combinamos de apresentar a certidão de casamento no programa. Aí, o Sérgio brigava comigo, a gente rolava no chão e mordia o pé da Hebe. Eu então pulava no colo dela. Fomos ao cartório e casamos. No programa, o Sérgio começou a brigar com o Arnaldo, pegou a certidão e rasgou. A Hebe disse: “Ai, mas vocês são umas gracinhas!”. A gente cantou uma música e foi embora. Quanta besteira!
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M | Você se sentiu casada?
R | Não. O Arnaldo tinha sido meu namorado na escola e o Serginho foi meio apaixonado, daqueles caras que ficam vidrados nas garotas mais velhas. Anos depois a gente se desquitou. Eu estava esperando o Beto, e a Marta, mulher do Arnaldo, também estava grávida. O juiz nos despachou rápido.
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M | Onde estão o Arnaldo e o Serginho agora?
R | O Arnaldo eu não tenho visto. Ele é um músico muito bom, é excelente. Não sei por que não aconteceu. O Serginho eu vejo de vez em quando, no restaurante Natural, no Rio. Ficou mais rígido ainda, mais rigoroso, com a barba grande, uma espécie de rosa-cruz. Faz uma reverência antes de tocar. O violão de fundo de Mania de você foi o Serginho quem tocou.
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M | Você ficou sem conjunto e sem equipamentos. Pensou em desistir?
R | Todos os dias. Desde antes do fim dos Mutantes. O Gil, que sempre me deu muita força, foi lá em casa conversar com os meus pais. Disse a eles que eu devia fazer música, me dedicar, essas coisas. O meu pai falou: “Está bem. Mas aqui em casa ela precisa seguir o meu sistema, ou então sai”. Numa boa. Aí eu saí. Fui morar em comunidade, pulava de uma casa para outra toda semana e fazia o gênero “uma calça Lee, duas camisetas e duas calcinhas”. Era gostoso. Mas eu vivia comprando porcarias, revistinhas, e ficava difícil carregar de um lado para outro.
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M | Como foi sua volta aos palcos sem os Mutantes?
R | Foi uma grande vaia. Depois que saí dos Mutantes fiquei nove meses sem fazer nada. Comecei a aprender violão com a Lucinha. Ficava tocando e cantando noite e dia, estava no ABC mesmo. E sempre tentando descolar um grupo. Aí houve uma feira de música no parque Anhembi, a Phono 73, e corremos para lá, a Lucinha e eu, com o nosso conjunto, Cilibrinas do Éden. Fomos fantasiadíssimas, de asas de borboleta e chapéu, para abrir o show dos Mutantes. Só nós duas, de violãozinho na mão. O pessoal gritava: “Fora! Vai embora! Mulher, vai pra cozinha!”. Tivemos que ser tiradas do palco. A gente riu muito.
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M | Você tem saudade daquela época?
R | Eu tenho saudade da marginalidade. Nos festivais eu ficava ensandecida, era a coisa mais divertida do mundo. Eu me lembro bem daquilo, os homens de smoking, as mulheres de longo e os Mutantes destoando de tudo. Eu podia sair na rua e ninguém me conhecia. Agora, está demais. Não estou acostumada com isso. De vez em quando eu uso uma peruca, uns óculos escuros, uma roupa de senhora e saio por aí.
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M | Mas saudade de quê? Você demorou mais de dez anos para ser reconhecida na rua.
R | É. Mas teve gente que me ajudou. O Roberto, por exemplo. Ele me pegou numa barra negra. Meu equipamento estava retido, as pessoas que me empresariavam me sacaneavam e roubavam até o último tostão. Eu tinha sido presa e as pessoas estavam com ódio de mim. Por ter dançado e por estar grávida. A minha empresária, a Mônica Lisboa, dizia umas coisas assim meio parecidas com as do pessoal da Polygram. Que as cocotinhas não iam gostar da minha barriga, que eu ia perder o público, que precisava tirar o nenê. Falaram que eu tinha que pagar um xis para eles aguentarem as pontas, pois não podiam ficar parados esperando a senhorita ter neném. Aí culminou com a prisão, que foi a materialização do baixo-astral.
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M | Por que você foi presa?
R | Até hoje eu não sei. Tenho a impressão de que marquei uma grande touca, por ignorância mesmo. Chegaram na minha casa às cinco horas da manhã umas sete pessoas encenando violência e trazendo um mandado de prisão que eu não cheguei a ler. Estavam procurando um quilo de maconha. Aí eu disse: “Ah, ah, ah! Podem procurar à vontade que não vão encontrar, vão é cair do cavalo”. Eles ficaram com medo. Perceberam que o tiro ia sair pela culatra. Eu disse a eles que estava esperando neném, que havia meses não puxava fumo. Destruíram tudo. Tiraram fotografias, arrancaram os quadros da parede, rasgaram os livros todos, abriram o violão para examinar dentro. Fomos para a delegacia e eles mostraram um monte de fumo: “Encontramos lá na casa dessa cantora, essa roqueira, gringa, mulher e maconheira!”.
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M | Você achava que era plano organizado? Não é paranoia demais?
R | Eu fiquei completamente louca. Via um camburão e tremia da cabeça aos pés. Se tocavam a campainha, eu me escondia na cozinha. Ficou a paranoia, sim, porque a prisão não foi tão ruim assim. Fiquei quinze dias numa cela, com nove mulheres, cada uma mais sofredora que a outra. Uma tinha matado o marido a facadas. Outra, a Telma, era um barato, assanhadíssima. Foi presa por ter roubado roupas. Tinha um sapatão, o Mendonça, que usava cueca e me ofereceu proteção. Disse assim: “Olha aí, ô gata, não se preocupa porque eu não vou te comer, não. Eu tenho o maior respeito pela sua música. Eu sou maconheira, entendeu? O que você precisar, fala comigo, porque a comida aqui é um horror. A carcereira vai te arrumar uns ovos cozidos aí pro teu baby. Eu também tenho um baby”. Fiquei amiga delas e fiz uma música, X 21, que até hoje está na Censura. O refrão era mais ou menos assim: “A gente está na mesma, vendo o sol nascer quadrado; vamos fazer uma roda e vamos cantar”.
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M | Você tentou tirar a música da Censura?
R | Não. Sempre foi assim. Quando prendem uma música, quando vem aquele X vermelho do começo ao fim, eu não tenho muito saco de ficar correndo atrás e procurando a imprensa para reclamar: “Ó, olha a coitadinha aqui!”. Eu não. Você pode driblar a Censura baseado em que é coisa e tal. Aí o problema é deles. Se fazem as coisas malfeitas, se o carimbinho deles não funciona, eles que se danem. O meu problema com a Censura é outro: quero fazer mais shows para crianças e aí tem problema de juizado, de horário.
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M | Dizem que você não cresceu.
R | É verdade. Tenho 17 anos. Às vezes tenho 4, às vezes tenho 50. Depende. Eu tenho os meus personagens e me defendo encarnando neles. Mas a idade real da minha cabeça é 17 anos.
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M | Grande parte do seu atual fã-clube são mulheres de 30 anos.
R | É gozado. Eu encontro muita mãe na rua e elas me dizem: “Olá, Rita Lee! Quer dar um autógrafo para a minha filha?”. Eu sou mãe, eu sou filha, mas às vezes misturo tudo. Com o meu filho, por exemplo: eu boto os meus personagens para conseguir dele, do Beto, o que eu não consigo. Mas às vezes eu me volto contra mim mesma. Digo pra ele: “Vamos. A gente come o chocolate e a sua mãe não fica sabendo de nada. Ah, ah, ah!”. E comemos o chocolate. Mas eu sou a mãe dele! Loucura. Tem vezes, também, que me baixa a idade de 4 anos. Dura o dia inteiro, querendo colinho… Ninguém aguenta. Aos 4 anos eu sou muito carente, órfã, meio possessiva, agressiva… Eu me transformo em Gungum.
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M | Gungum, com quem você mora?
“GUNGUM” [pondo o dedo no nariz] – Eu moro sozinha. Não tenho pai nem mãe. Todo mundo me trata mal e estou com meu corpinho cheio de marcas. Eu tenho um bichinho em casa. É um sapo. Ele mija na cama da babá.
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M | Quer um cachorrinho?
“GUNGUM” – Quero. Vou enterrar ele na areia pra ele pensar que é peixinho. Eu sou a princesinha do lago azul. Eu tenho os meus tios e as minhas tias que são vampiros e sugam o meu sanguinho. A minha bunda rachou; vou pedir uma nova pro Papai Noel, porque eu não tenho pai nem mãe, nem quero ter. Eu sou judiada, ninguém me entende. Eu tenho ódio de você. Vou dormir no quarto escuro, ajoelhada no milho…
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M | Como você é chata!
R | Ela não desgruda. Não vai embora. É a minha alma infantil. Numa sessão espírita me disseram que essas personagens seriam uma coisa assim mediúnica que eu precisava desenvolver, mas não sei. Acho que sou eu mesma e que uso tantos personagens para responder a coisas que eu não sei, que não tenho coragem de encarar. Nas situações mais constrangedores eu penso num dos personagens, e às vezes me encarno nele. Não vou brigar com o santo.
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M | Você já recebeu espírito?
R | Uma vez eu fui com o Roberto à casa de uma senhora lá no Jabaquara, a dona Mariinha, que é médium. Ela mandou um recado dizendo que tinha umas entidades querendo falar comigo. Serviu um cafezinho e começou a bocejar – o espírito já estava entrando nela. Ficou num silêncio total e depois começou a chorar, a chorar. Aí falou:
VOZ DE MULHER – Rita Lee, que bom que você veio! Eu precisava tanto falar com você! Quando eu estava na terra eu fazia uma coisa muito parecida com o que você faz. Fazia música e acho que a gente tem muito a ver. Eu daqui onde estou sinto as suas músicas. Eu gosto demais de tudo que você faz. Eu estou até emocionada.
R | Posso saber quem é a senhora?
VOZ DE MULHER – Sou Dolores Duran.
R | Nossa Senhora! Mas eu gosto muito de você também! Acho você incrível! Adoro as coisas que você fez!
“DOLORES DURAN” – Muito obrigada, muito obrigada. Eu quero dizer pra você que estou sempre do teu lado, quando você compõe.
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M | Quem mais estava na sala?
R | O Roberto, a dona Mariinha, um rapaz de que eu não sei o nome e uma outra senhora. E ninguém, a não ser o Roberto, sabia da minha admiração pela Dolores Duran. Eu fiquei arrepiada. Mas aí a Dolores pediu licença porque tinha outra entidade querendo falar comigo. Essa entidade disse que eu precisava tomar cuidado com a saúde. Depois, avisaram que tinha um cachorro lá. Um cachorro-espírito. Acho que podia ser algum cachorro meu que tinha morrido, mas não era. Não voltei mais lá. A dona Mariinha chegou a ligar dizendo para eu aparecer, que a Dolores queria encomendar uma música… Mas eu transo com a Dolores por minha conta, pensando nela.
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M | Você costuma sair de seu corpo?
R | Sim. Eu adoro sonhar. Estou conseguindo transar legal com sonho. Agora eu estou começando, mas, quando eu quero dar uma voada, já decido antes que eu vou voar, levanto as pernas e voo. Rasante, nunca muito alto porque eu tenho vertigem e passo mal.
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M | Você continua vendo disco voador?
R | Continuo. Eu acho que disco voador é a mesma coisa que espírito; é um lado religioso que eu tenho. Eu gosto de ver todas as religiões, de revirar, de remexer. Eu frequento sessão espírita, recebo passe, deixo umas balinhas pra São Cosme e São Damião. Acendo velas pro anjinho da guarda. Eu gosto muito de tudo na natureza: os duendes, as fadinhas, os discos voadores. Os discos são os personagens mais novos, porque os duendes e as fadinhas são antiquíssimos no planeta. São figurinhas, figuretas, espíritos, personagens de outras estrelas que vieram para este planeta que eu adoro. Eles são lindos.
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M | Tem algum por aqui agora?
R | Tem. Sempre tem. Estão todos sentadinhos ali, debaixo da janela, escutando. Tem minha irmã, Mary Lee, que morreu do coração outro dia. Quarenta anos. Foi embora. Tenho saudade demais dela, saudade física. Mary Lee! Tinha um cheirinho ótimo. Coçava minha cabeça como ninguém. Eu fiquei chorando, chorando, pensando nas coisas que eu não fiz com ela. Aí Mary Lee apareceu. Comecei a receber toques dela, sentia a presença física dela. Eu disse: “Por favor, não apareça que eu não estou preparada para ver. Eu vou tentar agarrar você, eu vou morrer, eu vou me cagar de medo”. Mas sei que ela está aqui.
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M | Você alguma vez pensou que estava ficando louca?
R | Não, nunca. Eu já tive crises de solidão, de chorar muito.
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M | Você alguma vez pensou que estava ficando louca por causa de drogas?
R | Não. Foram os momentos mais sóbrios que eu já tive.
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M | Por que você chorava tanto?
R | Quando eu estou muito, mas muito mal mesmo, eu me apego à respiração, no estar viva. Aí eu viro bicho. Primeiro eu viro pedra, depois eu viro bicho, depois vou me safando aos poucos até voltar onde estou. Eu me isolo. Me tranco no quarto, no banheiro, no chuveiro, não atendo telefone. Se estou bem, quero gostar de tudo. Se estou mal, quero destruir tudo.
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M | Você já tentou se matar?
R | Já.
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M | Por quê?
R | Foi baixando uma nuvem negra. Eu morava sozinha, num apartamento, e estava com muita, mas com muita pena de mim. Uma noite eu cheguei em casa, escovei os dentes, botei uma roupinha legalzinha, penteei o cabelo e tomei uma porção de comprimidos. Fiquei lembrando Marilyn Monroe: “Vou morrer, mas vou morrer bem bonita”. Aí fui apagando, apagando… Veio um amigo meu com o zelador, arrebentou a porta e me levaram para um hospital. Aí eu parei com esse negócio de morrer. Me achei uma canastrona, uma boboca que não estava com nada.
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M | Que teria acontecido, se você tivesse morrido?
R | Não sei. É uma coisa estranha… A educação que a gente tem é de rir quando uma criança nasce e de chorar quando um velho morre. É um condicionamento. Eu queria transar a morte numa boa, ensinar isso aos meus filhos. A gente cresce com aquela coisa do catecismo, do medo do inferno, de prestar contas no dia do julgamento. Eu vejo a morte como uma coisa parecida com o sonho. Eu queria sentir a morte; deve ser um gozo, deve ser o grande gozo da vida. Mas não. Tem o inferno na frente. Isso tem muito a ver com a vida dos homens na terra, com esta vida fodida, totalmente besta. Uma porção de coisas no mundo – como a poupança, o poder, a política toda – é baseada no medo da morte. A política atrapalha demais o mundo.
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M | Já te convidaram para participar de algum movimento político?
R | Não. Nenhum. Acho ótimo não terem chamado, dou graças a Deus. Eu acho política um cocô, no mundo inteiro. Um horror. É uma classe estranha demais para mim, muito cinza. Nunca me chamaram para nada disso. Nunca me chamaram para o show de Primeiro de Maio, por exemplo, que eu acho que é mais de música que de outra coisa.
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M | Se chamarem para o próximo Primeiro de Maio, você aceitará?
R | Não sei. É um lance muito fechado, uma coisa dura de se entrar. Não é só você chegar e tocar no show para prestigiar. É muito mais que isso. É preciso participar de uma coisa engajada. E, depois, há também os bastidores desses shows. Você só entra se tiver um convite assinado pela pessoa que está fazendo o movimento. Senão, não entra mesmo. De repente, quem sabe, pode ser que o Lula ache que eu estou incluída em determinada faixa e aí me convoque. Quem sabe?
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M | Por que você quer incompatibilizar o Chico Buarque com o povo?
R | Eu quero?
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M | Foi o que ele disse na televisão.
R | Não, não, de jeito nenhum. Eu não quis colocar o Chico contra o povo. Talvez eu tenha colocado o Chico contra ele mesmo. Ninguém deixou de comprar o disco dele nem ele deixou de ser o fantástico compositor que é. Eu quis mostrar que não se deve ser tão radical. Pois ele tem uma mansão, com piscina, com garçom, um campo de futebol, e isso não é todo mundo que pode ter. Então eu fiz uma brincadeira: “O Chico nas piscinas grita pro garçom: ‘Afasta de mim esse cálice e me traz Moët Chandon’”. Ele diz que não gosta de champanhe. Mas eu gosto, não tenho nada contra, e a música é minha. Eu acho que o sol nasceu para todos. O Chico é tão bonito… Ele é bonito pelo que é. Acho que não pode ser atrapalhado por nada. Nenhum artista pode ser atrapalhado por partido nenhum.
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M | Isso ele também diz.
R | É. Ele diz. Mas a turma do bairro do Chico é meio durona com ele. É uma coisa muito compromissada; não sei se é isto, não sei se é aquilo, tem que ser assado. Não sei. Acho que ele está muito acima de qualquer coisa.
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M | A sua turma quer o que de você?
R | Faço música, converso com as pessoas, procuro ajudar os bichos – ninguém fala por eles. Estão acabando com o planeta e isso sinceramente me incomoda mais que a crise do feijão. Não vou fazer nenhum show para Angola quando os índios daqui estão sendo exterminados. Talvez eu possa fazer alguma coisa. Talvez a gringa possa falar com os índios. Estou pensando num fã-clube diferente, para as pessoas transarem entre si. Teríamos que ter um símbolo – com uma simples olhada as pessoas saberiam quem era do fã-clube. Seria uma espécie de maçonaria do rock. O rock é a música do planeta. Eu gosto dessa palavra rock, pedra… É uma língua. Na minha humilde e modesta missão, quero trabalhar para o que seria uma música interplanetária. Eu tenho a impressão de que este planeta foi invadido por raças de outros planetas, que se encontraram aqui. Um planetão, sabe? Um planetão gostoso que a gente não conhece.
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M | E o que dá para fazer?
R | O poder envenena em toda parte. A língua cria uma barreira muito grande, há uma cerquinha em volta de cada estado, uma cerquinha em volta de cada cidade, e dentro das cidades cada pessoa tem uma cerquinha. Todo mundo está querendo conhecer as estrelas, estrelas, estrelas… Mas a gente mal sabe da Terra. Vamos conhecer o centro da Terra antes de ir para as estrelas? É o mesmo processo da gente. Vamos gostar da gente antes de gostar dos outros.