Desenha por profissão, toca saxofone por prazer, tem um poderoso sobrenome literário. Um dos maiores fenômenos editoriais do Brasil cultiva um estilo de humor raro em qualquer parte do mundo.
Ele tem fama de tímido, mas é impiedoso. Quando escreve, tece uma prosa em que friamente usa, lambuza, espanca e acaricia os meandros da língua. @Eduardo Nicolau/AE
Ele é traiçoeiro.
Muda de pele e cara — e de alma também, dizem entre sussurros — e às vezes se apresenta como jornalista, romancista, publicitário, redator de televisão, músico, cronista, desenhista de histórias em quadrinhos, gourmet, fanático por futebol, pai de família. Além de tudo isso, petista e gaúcho. Careca e de óculos. Porte médio. Nem alto nem baixo, mas um pouco mais para alto, em outro lance de indecisão. Nem gordo nem magro. Um caso de múltipla falta de personalidade. Um desvio tanto físico quanto psicótico.
Ainda assim, um figurão de dar medo e inspirar respeito.
Nem sempre foi assim. No começo, uns cinquenta anos atrás, ninguém poderia desconfiar.
Ele é dissimulado.
Uma das suas mãos tinha um dom, “um leve jeito para o desenho”. A outra servia para carregar os livros e cadernos de muitas e mal aproveitadas escolas. Os olhos, socorridos desde cedo pelos óculos de lentes grossas, começaram a enxergar fora de foco, forçados por leituras incontáveis. Eles, os olhos, haviam se rendido às tentações e facilidades oferecidas pelos livros guardados na casa paterna, onde nasceu, em Porto Alegre, e onde vive até hoje. Havia ainda os filmes, não raro mais de um por dia. Como se não bastasse, e talvez para compensar os olhos carentes, tinha ouvidos. E dos melhores, acariciados pelos sons do jazz.
Toda essa formação intelectual e espiritual gauchesca foi depois reforçada em temporadas com os pais nos Estados Unidos, para onde se mudaram. E depois, já crescido, na Europa, com mulher e filhos, como turistas. Todos juntos. O guri se transformara num pai de família, um globe-trotter bem-sucedido arrastando a família na trilha do seu sucesso.
Com tal formação, ficou tudo pronto para o nascimento de um Homem Moderno, cosmopolita e de dar água na boca. Só que toda a soma de predicados não somava um Luis Fernando Verissimo inteiro. Basta voltar um pouco (ou muito atrás) para entender. Pequeno, continuava sendo o irmão mais novo de Clarissa, casada com um americano lá na terra dele, e principalmente o segundo filho de dona Mafalda e de Erico Verissimo, de profissão escritor. Cresceu e aí sentiu que precisava mudar de vida, para fugir da sombra da família e tentar se transformar nele mesmo. Não sabia que estava sendo observado. O pai soube dessa intenção escapatória do filho e descreveu-a nos dois volumes de suas memórias, Solo de clarineta, deixados incompletos desde que a morte o levou em 1975, aos 70 anos.
Luis Fernando estava saindo da casa dos 20 e namorando uma colega de escritório no Rio, Lúcia Helena Massa. Ele levou-a à vitrine de uma loja e lhe disse:
— Estás vendo aquele anel ali? Te dou cinco minutos para resolver: queres ou não casar comigo?
O pai escreveu sobre o casal: “Ela aproveitou apenas uns quatro ou cinco segundos dos trezentos que lhe foram dados” e foi igualmente objetiva na resposta:
— Quero.
Deram-se os braços e entraram num botequim, onde beberam Coca-Cola para comemorar o noivado. Tudo muito econômico. Talvez fosse um prenúncio do estilo dele nos anos seguintes, escrevendo ou desenhando. Miserável nas palavras e traços. E abundante, até torrencial, na multiplicação de cada um deles. Mas quem poderia saber disso na época?
Por uma questão de economia, desta vez doméstica, Luis Fernando, Lúcia e a recém-nascida Fernanda deram adeus ao balneário mais famoso do país e se aninharam na velha e segura casa do pai dele, no quieto bairro de Petrópolis, em Porto Alegre. O chefe de família novato tinha um problema, além da falta de dinheiro. Aos 30 anos, estava convencido de que não sabia fazer nada. Se hoje o conglomerado Luis Fernando Verissimo abastece boa parte da imprensa brasileira, do Zero Hora de Porto Alegre a O Estado de S. Paulo e O Globo, além das estantes das livrarias, sem falar nos quadros humorísticos na televisão, naquela época pesava sobre ele uma suspeita sombria. Como lia quase exclusivamente em inglês, aprendido nos sete anos em que viveu nos Estados Unidos, em casa rondava a desconfiança de que fosse analfabeto em português.
Tentara de tudo no Rio. Foi até secretário de um gângster, mas nem isso deu certo. Não tinha currículo algum porque sempre abandonou cedo as escolas que frequentou. De volta à casa dos pais, com mulher e filha para criar, fez traduções para a mais famosa editora gaúcha da época, a Globo, e arrumou emprego de copidesque (redator que consertava os textos dos repórteres, função hoje extinta) no Zero Hora. Lá teve carreira meteórica: em dois anos, foi editor de variedades, editor de internacional, redator de horóscopo e, um dia, cronista, com a vaga aberta pela saída do titular, Sérgio Jockyman.
Tudo muito banal, resumindo o reconhecimento a mais um jornalista de talento que encontrou uma profissão para ganhar a vida, se essa banalidade não tivesse se transformado em história. Luis Fernando Verissimo é o maior escritor do Brasil. E que se ombreie com ele apenas um punhado de bravos como João Ubaldo Ribeiro, José Rubem Fonseca, Hilda Hilst, Millôr Fernandes e Ivan Ângelo (deve estar faltando mais um, à escolha do leitor). Esse aparente exagero (“o maior do Brasil”), impróprio num prosador tão comedido, pode ser comprovado em livros. “Uns trinta volumes, perdi a conta”, diz o autor. Foram publicados desde O popular (1973) e envolvem crônicas, cartuns e dois romances. O primeiro romance, O jardim do diabo, foi feito em dois meses por encomenda de uma agência de publicidade como brinde do Natal de 1988 e depois vendido em livrarias. O trabalho na agência MPM deu-lhe também a glória máxima para um redator de publicidade: sem escrever uma única linha, foi considerado, nos meios de propaganda, o melhor de 1975, formando dupla com um diretor de arte na produção de um calendário. Sua vida e carreira mudaram tão depressa que, quem diria, já recebia prêmios por ter criado talvez um impecável novembro ou um deslumbrante outubro. “O destino é um grande gozador”, escreveu ele, várias vezes, em suas crônicas.
A casa onde Luis Fernando passou a morar com Lúcia, os filhos Fernanda, Mariana e Pedro (nascidos em Porto Alegre) e a mãe, Mafalda, é a mesma há mais de meio século. É a única herança do escritor consagrado dentro e fora do país pelos seus 24 volumes publicados, na maioria romances. Ali foram gerados muitos personagens de Erico, mas com sua morte a produção não parou. Em vez de Ana Terra, apareceu a Velhinha de Taubaté — aquela que acreditava no governo e atraiu 90 mil leitores. Em vez de um certo capitão Rodrigo, mostrou seu bigode fino e cabelo engomado um certo Ed Mort, paródia de um gênero, o do policial americano tipo Phillip Marlowe. Adaptado ao subdesenvolvimento e às baratas com as quais divide seu escritório (tão pequeno que se chama apenas “escri”), numa galeria de Copacabana, o policial brasileiro vai logo avisando: “Meu nome é Ed. Ed Mort. Está escrito na placa. É o que está no diploma. Fiz o curso por correspondência. Foi difícil. Tive de subornar o carteiro para passar”.
O porão da casa, ao lado do local onde Erico trabalhava e onde hoje Luis Fernando desenha numa prancheta e opera um minicomputador IBM, de fabricação nacional, tornou-se o berço de uma variada galeria de tipos inesquecíveis. Ali se passam coisas de que até Deus duvida mas o Diabo gosta. Todas escritas ou desenhadas em silêncio, e a vizinhança jamais reclamou de barulho que poderia ser gerado nesse berçário de criaturas bizarras. O Criador (melhor, criador) não lambia os beiços, que prefere manter calados, historicamente, nem arrepiava os cabelos, pois quase não os tem, quando metia mãos à obra para botar esses tipos no mundo.
Ele é frio, metódico — “rigoroso com o que faço”, avalia.
Não havia nenhum aviso escrito na porta do portão sobre o que se passava ali. Por exemplo: “Verissimo. Criam-se criaturas. Nenhuma delas existe. Divertem, assustam e fazem pensar. Entrada proibida”. Nada disso. Entra ali quem quiser, se pedir. Os que chegavam podiam achar o lugar pequeno demais para tanta produção. Ali estavam na prancheta do subsolo os dois ou três traços sinuosos que compunham o perfil borrado de duas espécies de minhocas eretas. Parecem também, até hoje, dois pirulitos em pé, só que dotados de cérebro. Eram As Cobras, terçando paradoxos diários, em apenas (sempre a economia!) três quadrinhos. Os répteis dividiam as tiras com vários outros bichos, como Durex, o Adesista, Lilian e Leno, as Traças Literárias, Sulamita, a Pulga Lasciva, ou Quero-o-Meu, o Corrupião Corrupto, que reclamava: “Está demais! Está demais!” e quando lhe perguntam o que, respondia: “A concorrência”. Até que toda essa adorável fauna desapareceu, num holocausto estético. “Matei todos eles”, diz Luis Fernando, com uma frieza de arrepiar. Uma agonia lenta. Foram sendo abatidos um a um, e às vezes até voltavam à vida, para depois morrerem de novo.
Ele tortura antes de assassinar e de fazer ressuscitar, matando de novo depois.
Mas sobrou, depressiva e alegre, a Família Brasil. Nela, um pai antiquado (ou seria apenas vitimado pela barreira dos 50 anos, que ultrapassou?) reage aos novos costumes. Novos, naturalmente, para ele. Que tem filho e filha levando namoradas e namorados para casa, e que costuma acordar, no meio da noite, gritando “Não!”, para depois explicar mais calmo à mulher: “Foi outra vez aquele sonho, o da casa própria”. Num momento inesquecível, o pai dá um presente de aniversário ao filho, que examina o embrulho com ar de perplexidade, até que o velho explica: “É um livro”.
Escrita e desenhada naquele porão, o espírito da Família Brasil na verdade ocupa todo o resto da casa. Ali, além de brasileiros, são todos Verisissimo, “superlativo pseudoitaliano que impõe uma obrigação, nem sempre cumprida, de quem o carrega”, diz Luis Fernando. Os três jovens Verissimo cresceram na singular experiência de serem filhos de quem são. “Não conhecemos outro sobrenome”, dizem, sintéticos, puxando ao pai. E também de serem netos de quem são. Numa noite de 1975, os três assistiam a um filme em que o assassino matava mulheres com uma fita rosa e os homens com uma fita azul. “A empregada disse pra gente que o vô estava passando mal”, lembra Mariana, a filha do meio. “E aí o pai chegou do trabalho, o vô no escritório, de noite, o pai correndo, e nos botaram na casa do vizinho.” Até que os três chegaram ao ponto em que estão e se esperava que continuariam sendo — eternos moradores da casa. “Daqui ninguém sai”, dizia Fernanda, jornalista hoje com 36 anos, rindo atrás dos seus óculos. “Se um dia casar, trago para cá”, assim como o pai levou para lá a mãe deles. Mas Fernanda foi embora, largou a profissão de jornalista e foi trabalhar em Maputo, capital de Moçambique, no Centro de Estudos Brasileiros. “Por incrível que pareça”, no comentário admirado do pai. Depois, prudentemente, ela voltou para Porto Alegre, mas logo em seguida partiu de novo, para morar em Paris.
“Meus filhos são pessoas gregárias”, avalia Luis Fernando. Lúcia comenta que os três são extremamente diferentes entre si e muito amigos. “Nunca foram de brigar. A gente se orgulha muito disso”, diz. Tanto é verdade que Mariana, 31 anos, conta que um dia a mãe jurou matar o marido, mulher (“ou algo que o valha”) que fizesse os filhos brigarem entre si. Diz que um dia o pai acusou um namorado hippie de Fernanda de o ter assaltado no meio da rua. A acusação não foi comprovada e o incidente terminou aí. Mas Mariana, outra que não queria sair de casa, também foi embora. Formada em arquitetura, ela mudou-se para São Paulo, onde não trabalha em arquitetura. Pedro, de 30 anos, que se dizia “caseiro e rueiro dependendo da ocasião”, também tem título de sócio-residente perpétuo na casa. É o único que o honra, pois ficou por lá. Largou a profissão de publicitário e é cantor, preparando seu primeiro CD. Chegaram a formar uma família musical.
O pai continua saxofonista. Os Três Verissimos filhos se repartiam entre flauta doce e transversal (Fernanda), piano, flauta, violão, saxofone e violoncelo (Mariana) e canto (Pedro), antes de pararem com isso. A avó deles, dona Mafalda, os ouvia, entre orgulhosa e resignada. Ela alterna seus dias entre viagens aos Estados Unidos, para ver a família de lá, e o ritmo da casa, onde se acorda cedo (mas não muito) e se dorme tarde (não demais). Vai à missa aos domingos, participa de todas as reuniões sociais da casa, gosta de beber e conversar, mas também tem seus recatos. O filho teve a quem puxar. Quando procurada por algum repórter, dona Mafalda avisa: “De mim você nada saberá”. Tanta harmonia é relativa, em épocas de eleição. Eles se desunem no voto. Botaram um “x”, nas duas últimas eleições presidenciais, nos nomes de Lula, Roberto Freire e Leonel Brizola. Nos segundos turnos uniram-se em torno do nome que sobrou e perderam nas duas vezes.
Entre uma criação e outra, depois do almoço, e conversas com a família, Luis Fernando adormece. Faz a sesta, honrando seus genes gaúchos. Depois acorda e vai em frente. Sem dúvida não há nenhum segredo que dona Mafalda pudesse revelar sobre aquele lugar calmo, com árvores no quintal ao lado, a não ser um: como é possível apenas um Verissimo gestar e parir todos os dias, ao longo dos anos, uma variedade tão rica de desenhos e palavras? Não há resposta, mas sempre se pode recorrer à ajuda da psicologia de um médico da alma para decifrar o insondável.
Autorretrato: assim é (se lhe parece) ©Luis Fernando Verissmo
De volta ao porão, defrontava-se com as palavras ásperas e uma suavidade de toco de árvore, no perfil maciço, tipo paralelepípedo, de mais um personagem que teve seu berço ali. Um psicoterapeuta de verdade! Luis Fernando pariu o seu próprio médico da alma. O maior sucesso do porão desde 1982, consumido por 400 mil leitores nos nove anos seguintes, foi o Analista de Bagé. Esses milhares de leitores deixaram-se fascinar pela terapia rude do profissional da psique, palavra aliás que ele detesta, por ser “coisa de fresco”, preferindo “miolos”. Quando chega um paciente, avisa logo, na sua língua particular:
— Buenas. Se abanque, índio velho. Desembucha.
— Acontece que o meu problema é com a minha mãe.
— Complexo de Édipo. Dá mais que pereba em moleque.
— E o senhor acha…
— Eu acho uma poca vergonha. Mas que cosa!
Gordo, barba cerrada, cabelos espichados para trás, bombachas e chinelos, o doutor é freudiano, “mais ortodoxo que caixa de Maizena”. Dizem que o divã do consultório dele é forrado com um pelego e que recebe os loucos, “minha sala está cheia deles”, de bombacha e descalço, cortando as unhas dos pés com um facão enquanto vai analisando. Costuma espancar seus pacientes, aplicando neles uma técnica terapêutica de sua autoria, o “joelhaço”. Quando algum chega com problemas de “poca vergonha”, ele os bota logo para fora a tapa.
Luis Fernando — que nunca fez análise — diz que jamais conheceu uma figura assim. Nem deitou em divã algum. Nada tem contra a psicanálise, mas sempre alimentou a ideia, obviamente neurótica, de que a psicanálise é o cúmulo do egocentrismo. “É aquele negócio de as pessoas se levarem muito a sério”, analisa. Nota também a questão do elitismo, o fato de a psicanálise não ser coisa de louco, mas coisa de rico. A análise prejudica a criatividade, como muita gente suspeita? Isso o pai do Analista de Bagé não sabe. Mas pondera: “Esse tipo de raciocínio, levado ao extremo, acaba na história do mendigo que não cura sua ferida aberta porque é com ela que ele ganha a vida”.
A ideia ao criar o Analista nada tinha de conceitual, mas, muito simplesmente, queria explorar a incongruência de uma profissão delicada quando exercida por um grosso. “É como o touro na loja de cristais, e não se deve fazer nenhuma tese a partir do Analista”, recomenda. “Ao mesmo tempo que achamos meio ridículo o gauchismo, temos certa admiração pelo que existe de bom senso, de antifrescura, de pé na terra nas tradições gaúchas. O Analista também homenageia e satiriza a grossura gaúcha. Claro que é uma caricatura. Mas eu sempre digo que o humor é a arte do exagero.”
O cartunista Edgar Vasques, que deu forma gráfica ao Analista, conta que o tipo físico do terapeuta-brucutu foi inspirado num humorista de Porto Alegre, Guaraci Fraga, que foi a um churrasco na casa de Luis Fernando fantasiado de gaúcho. “O Verissimo não queria que ele tivesse barba, mas me deixou livre para fazer o que quisesse. Dos personagens criados pelas tiras, é um dos mais fortes que já tive”, diz Vasques. Adaptado para o teatro, o Analista teve longa carreira, embora depois de três anos sem nada a ver com os textos de Luis Fernando. Não seria mesmo possível. Irritado há tempos com o Analista, a quem vivia ameaçando de morte, Luis Fernando acabou apagando o personagem de suas tiras — sem nenhuma culpa ou remorso.
O cartunista Miguel Paiva penou como parceiro de Verissimo, ao criar o visual de Ed Mort — magrelo, barrigudo, bigodinho, cigarro na boca. Desde 1983 publicaram cinco livros e mais de 2 mil tiras diárias. “Às vezes o Luis Fernando me armava umas ciladas, como botar uma multidão de índios ou oito diálogos para resumir em três cenas”, lembra Miguel. “Mas em geral ele facilitou muito o meu trabalho, e por isso era tão gostoso fazer.” A parceria não se interrompia nem mesmo nos longos períodos que Luis Fernando costuma passar fora com a família em Roma, Paris e mais recentemente Nova York, gerando sempre deliciosos guias de viagem publicados na volta. Miguel conta que num certo meio-dia o texto não havia chegado de Paris para uma tira que deveria ser entregue às quatro da tarde no Jornal do Brasil. Ligou para lá e ouviu do parceiro um breve “está bem”. Uma hora depois o texto chegou por fax. Depois a parceria acabou. Miguel segue sozinho publicando suas tiras sobre o Gatão de Meia-Idade e a Radical Chic. Ed Mort também sucumbiu na carnificina que vitimou tantos outros personagens gerados no porão de prodígios. Há mais detalhes sobre o fim de Ed num parágrafo daqui a pouco.
Antes, deve-se lembrar que nem sempre foi fácil manter essa gente e essa bicharada toda no mundo. É o que o autor diz. “Eu gosto mais de desenhar do que escrever. Tem dias que fico olhando o computador, espremo a cabeça, mas não sai nada. É uma coisa absolutamente misteriosa. E além disso eu não sou uma pessoa muito organizada.” Miguel acha que o “silêncio eloquente” de Luis Fernando tem muito a ver com a tendência dele para a síntese (a velha economia, de novo). Numa história de Ed Mort, quando o detetive é seduzido por uma bailarina russa, o diálogo é só este:
— Vodka?
— Vodko!
Miguel suspeita que havia uma chave geral na cabeça de seu ex-parceiro: o lado norte, setor 2, trabalha com o Ed Mort. O outro, com As Cobras e a Família Brasil. Um terceiro com as crônicas, e assim por diante. Uma coisa assim de ficção científica, extraterrestre. Um cérebro poliforme, poliqualquer coisa, anormal, capaz de se multiplicar como coelhos mágicos.
Uma outra análise, do seu ponto de vista existencial e pessoal, é feita por Ivan Pinheiro Machado, da Editora L&PM, que publicou quase todos os livros de Luis Fernando. Seu diagnóstico surpreende: “O método de trabalho dele é o mais simples possível”. Explica profissionalmente também: “Só publicamos o que já foi produzido, e por isso a relação dele com a editora é tão saudável”. Ivan conta cenas de bastidores, de uma época em que instintos assassinos tomaram conta de Luis Fernando. Foi quando seu personagem de sucesso alucinante, o Ed Mort, esteve ameaçado de morte pelo autor. Luis Fernando assassinou Ed, ressuscitou-o e depois o despachou definitivamente para o Além. Havia mais gente nessa lista.
Ele estava de olho também no Analista de Bagé, jurado de morte desde que passou a odiá-lo. O Analista nunca piou sobre o perigo que corria. Seu inventor não lhe deu esse direito. Acariciando seus coldres, Luis Fernando decretou em 1982, quando o psicoterapeuta rústico cavalgava de sucesso em sucesso: “Ele vai morrer”. Como? Estava em dúvida: “Não sei se esgoelado por um sadomasoquista ou numa estância com a Lindaura (a secretária do doutor) e a minha gratidão eterna a ela”.
A morte do Analista foi decidida no tribunal da cabeça de Luis Fernando, que fez um julgamento severíssimo do seu personagem. Este: “O fato de O Analista de Bagé ser o best-seller do momento, quando livros bem melhores e importantes não entram na lista dos mais vendidos, não é culpa minha. Mas não posso deixar de me sentir um pouco envergonhado”. Ivan Pinheiro, sabendo disso, avançou na sua interpretação: “A impressão que eu tenho é que o Luis Fernando nunca se levou a sério como escritor. Não sei se isso é um problema, um defeito ou uma qualidade. Mas tenho certeza de que essa não pretensão dele é uma coisa absolutamente sincera”.
No entanto, há quem considere Luis Fernando — como foi notado nas primeiras palavras deste texto — um sujeito traiçoeiro. Em vez de matar Ed Mort, poderia, por exemplo, transformá-lo em outra coisa, um fiscal do imposto de renda, um professor de tênis ou um caçador de androides. Não se saberá jamais. Há quem tente saber, perseguindo os traços de Luis Fernando, para encurralá-lo. “Quando menos se espera, ele faz um jogo de corpo e lá se vão nossas certezas”, diz Maria da Glória Bordini, professora de teoria da literatura no Instituto de Letras da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ela fala de cátedra, em todos os sentidos. Conhece os Verissimo desde os anos 1960 e, a pedido de dona Mafalda, foi encarregada de organizar o vasto material deixado por Érico — cerca de 3 mil livros, cartas, originais, relatos de viagens, fotos, objetos de arte.
Alertou o mundo quando fez uma seleção de crônicas de Luis Fernando (O gigolô das palavras), para estudantes universitários e de segundo grau, e num estudo do que encontrou nelas. Primeiro, muitas ciladas, para desorientar os possíveis fujões, despistando seus textos ora sob o nome de contos, ora utilizando o modelo padrão da crônica. Pior do que fazer prestidigitação com gêneros e técnicas, diz Maria da Glória, Luis Fernando resolve brincar com o que é mais sério: a realidade e a linguagem, e é então que tudo se complica. “Imagine o que acontece quando o nosso despreocupado gigolô resolve explorar as palavras à sua vontade, exatamente o lado delas que lhes dá sentido. É o caos”, observa.
Um exemplo dessa desordem está em Palavreado, em que se fala de Pantufo, Rei da Cizânia, cuja capital é Nova Velha (a Velha Velha fora destruída por um paroxismo). Ou melhor ainda num outro reino, o de Cântaro:
“Um dia chega a Cântaro um jovem trovador, Lipídio de Albornoz. Ele cruza a Ponte de Safena e entra na cidade montado no seu cavalo Escarcéu. Avista uma mulher vestindo uma bandalheira preta que lhe lança um olhar cheio de betume e cabriolé. Segue-a pelos becos até um sumário — uma espécie de jardim enclausurado — onde ela deixa cair a bandalheira. É Lascívia. Ela sobe por um escrutínio, pequena entrada estreita, e desaparece por uma porciúncula. Lipídio a segue. Vê-se num longo conluio que leva a uma prótese entreaberta. Ele entra. Lascívia está sentada num trunfo em frente ao seu pinochet, penteando-se. Lipídio, que sempre carrega consigo um fanfarrão (instrumento primitivo de sete cordas), começa a cantar uma balada. Lascívia bate palmas e chama:
— Cisterna! Vanglória!
São suas escravas que vêm prepará-la para os ritos do amor. Lipídio desfaz-se de suas roupas — o satrapa, o lúmpen, os dois fátuos — até ficar só de reles. Dirige-se para a cama cantando uma antiga minarete. Lascívia diz:
— Cala-te, sândalo. Quero sentir o seu vespúcio junto ao meu passepartout.
Atrás de uma cortina, Muxoxo, o algoz, prepara seu longo cadastro para cortar a cabeça do trovador.
A história só não acaba mal porque o cavalo de Lipídio, Escarcéu, espia pela janela na hora em que Muxoxo vai decapitar seu dono, no momento entregue ao sassafrás, e dá o alarme. Lipídio pula da cama, veste seu reles rapidamente e sai pela janela, onde Escarcéu o espera.
Lascívia manda levantarem a ponte de safena, mas tarde demais. Lipídio e Escarcéu já cavalgam por motins e valiuns, longe da vingança de Lascívia.”
Maria da Glória chama Luis Fernando, sem meios-termos, de “frio aproveitador de palavras”. E explica: “Todos os seus textos são feitos de contrastes, ou entre forma e linguagem, ou entre o que é dito e o que se esperava que fosse dito. Quando acreditamos estar entendendo o que ele nos conta, vira a chave e nos força a compreender tudo de novo, de uma outra perspectiva”.
Mas Luis Fernando paga caro por ser de tão pouca confiança. “Tenho muita dificuldade para escrever, e minha ‘graça’ não é nada espontânea”, diz ele, num outro bote surpreendente, pois todos esperavam que declarasse justamente o contrário. Dificuldade para escrever! Continua assim a confissão do conspirador de textos: “Não que eu queira diminuir o que faço, situado mais na área do entretenimento do que da literatura, com seu valor e dificuldade próprias”. Acha-se um “bom profissional”, e o que faz, na sua avaliação, tem às vezes certo brilho, alguns bons achados — “mas não passa disso”. Não tem nenhuma condescendência com ele mesmo. Acredite se quiser, mas estas são suas palavras: “A verdade é que não há mistério em escrever bem, corretamente, com duas ou três imagens de efeito e uma arredondada final. O difícil é ir além dos truques do texto, ser original, ter aquilo que em inglês se chama insight e eu não sei traduzir. Isso eu não tenho. Também me sinto um impostor quando sou chamado de humorista. Sou tão pouco engraçado pessoalmente que só posso encarar o meu humor como um triunfo da técnica sobre a vocação”.
Essa autocrítica ácida vem de muito tempo atrás. Como Luis Fernando começou a escrever tarde, dali em diante, desde a primeira crônica publicada, surgiu naturalmente a suspeita de que a sombra do prestígio do pai pudesse ter criado algum tipo de inibição fatal. “O Erico se preocupava muito com o filho quando ele começou a trabalhar em jornal, pois era uma área muito próxima à dele”, lembra Maria da Glória Bordini. “Por outro lado, o Luis Fernando não revelava a ninguém que fazia literatura”, acrescenta. “Nunca vi os dois conversarem sobre literatura. Até hoje a gente mal sabe no que ele está trabalhando; é um caso estranho — às vezes pensamos se o Luis Fernando existe de fato ou se é uma ficção dele mesmo.” O criador do Analista de Bagé não tem essas dúvidas e tormentos sobre os laços paternos, nem ilusões: “O nome ajudou a carreira. Eu talvez tenha demorado a escrever por ser filho de escritor. Mas não atrapalhou muito”. É tudo. Tudo pela economia.
Nas suas memórias, Erico compara os filhos quando pequenos: “Clarissa, gorda, roliça, viva, teatral; Luis Fernando, magro, pálido, tímido, caseiro, introspectivo”. O pai via o filho ensimesmado, retraído e silencioso como ele mesmo fora um dia. “Eu queria saber o que ele pensava de mim”, escreveu. “Mais importante, o que sentia por mim.” Erico lembra uma conversa durante uma partida de tênis na praia de Torres, entre um médico seu amigo e Luis Fernando, então com doze anos:
— Menino, como é o teu nome?
— Luis Fernando.
— De quê?
— Verissimo.
— És parente de Erico?
— Sou.
— Mas o que és dele?
— Filho.
Concluía Erico: “Tentava estabelecer diálogos com ele, mas meu filho defendia a sua cidadania interior com a mesma obstinação com que eu sempre defendera a minha”.
Mort. Ed Mort. Em carne e, principalmente, osso ©Miguel Paiva/LFV
Anos depois da morte do pai, Luis Fernando disse numa entrevista: “Tivemos problemas de relacionamento na minha fase de playboy, que durou pouco por absoluta falta de vocação. Conversávamos pouco, mais por culpa minha. Ele bem que tentou”. Embora Erico se considerasse “um mero contador de histórias”, como vivia dizendo, o filho leu, anotados, livros de pensadores como Lucien Goldmann, Giörgy Lukács e George Steiner, guardados na estante do pai. Luis Fernando escreveu em 1984 um artigo na revista Manchete em que conta: “O pai era avesso ao drama, a qualquer tipo de exagero emocional. Achava que, com bom senso e uma boa conversa, se resolvia qualquer coisa. Não peguei a fase de dificuldade, do mobiliário do apartamento completado com caixotes de querosene e dos constrangidos pedidos de empréstimos ao tio rico de Cruz Alta. Mas teve o primeiro carro aos 40 anos, mesmo sendo escritor de sucesso, e realizou o grande sonho de sua vida, conhecer a Europa, com 50. Quando morreu, só deixou a casa em que vivemos hoje, financiada pela Caixa. Tenho duas palavras para defini-lo: bondade e coerência. Ele faz muita falta. Acho que ia se divertir com o jeito que estão lhe saindo os netos”.
Gaúcho desnaturado, que não anda a cavalo, não toma chimarrão e nasceu e se criou na capital, Luis Fernando gosta do campo, mas lembra que lá tem também “mosquito, espinho, bosta, cobra, coisas podres, falta de conforto e água corrente e raramente se consegue um bom molho à bordalesa”. Molhos! Levado pela gula, ele foi uma vez parar na cidade de Roanne, na França, só para comer no Frères Troigros, um dos melhores restaurantes do mundo. “Já tive vários jantares inesquecíveis, mas me esqueci do que comi neles, inclusive no Troigros”, confessa. “Como de tudo sem muita discriminação; não sei nem esquentar água.” Aprendeu a tocar saxofone nos Estados Unidos (uma cena memorável, de arrepiar os loucos por jazz: assistiu a Charlie Parker e Dizzy Gillespie, saxofonista e trompetista, tocando juntos no lendário Birdland, em Nova York, em 1953). E até hoje pode ser ouvido, em forrós e festas de fim de semana, quando a música é de Renato e Seu Sexteto — o maior do mundo, pois já chegou a ter oito e até onze integrantes. O conjunto é chamado maldosamente de Museu do Som, por causa da antiguidade do seu repertório — jazz, bossa nova, relíquias fossilizadas do tempo do cantinho e do violão, quem sabe até das botinhas e calhambeques.
Morador eventual das maiores cidades do mundo, o fugidio multimídia é porto-alegrense fixo porque acha a cidade um bom lugar para se voltar: “O que significa que, para aproveitá-la bem, é preciso ir embora seguidamente”. Não tem rotina, mas depois de seis pontes de safena, com a saúde melhor, sua vida, digamos assim, piorou: sentindo-se bem, trabalha mais do que antes. Procura sempre fazer o melhor possível — quer dizer, nunca escreve uma coisa com a mão direita e desenha outra com a esquerda, para ganhar tempo. Quando não está trabalhando, no computador ou na prancheta, vai relendo seus antigos heróis — Paulo Mendes Campos, Ivan Lessa, Antônio Maria (“de quem hoje pouca gente lembra”), o polonês de língua inglesa Joseph Conrad e o inglês de língua aristocrática Evelyn Waugh, “apesar de carola e reacionário, ou talvez por isso mesmo”. Desistiu de escrever um segundo romance, depois de O jardim do diabo, de tantos anos atrás, “por falta de tempo e vocação”. Mas, no fim de 1998, sempre traiçoeiro, arrumou tempo e vocação para publicar O clube dos anjos, um romance policial-gastronômico tendo como pano de fundo a gula e que rapidamente entrou na lista dos mais vendidos. É uma história de burgueses ricos que se reúnem mensalmente para comer (incluem-se as receitas), mesmo sabendo que depois de cada jantar um deles morrerá envenenado. Nessas páginas há uma advertência de enorme utilidade para os leitores de livros policiais — a de que não adianta ficar o tempo todo procurando o responsável pelos assassinatos. “O culpado é sempre o autor”, revela Verissimo.
Como tantos outros brasileiros, ele não joga regularmente na Loteria Esportiva, mas mesmo assim espera ganhar toda semana. Acha seus três filhos humoristas natos e jurou — promessa cumprida — nunca dar palpite sobre a carreira deles. Afinal, ninguém nunca lhe disse o que fazer na vida.
Aos 64 anos, ainda não está pronto. Pelo menos na medida tomada por um velho amigo da família, o falecido poeta Mario Quintana, autor de uma frase imortal, para ser entronizada na agenda dos candidatos a literatos, e que Luis Fernando deve ter gravado na cabeça: “Se dizem que escreves bem, desconfia. O crime perfeito não deixa vestígios”, disse Quintana. Muitos anos atrás, Quintana lembrou: “Quando o Erico voltou com a família dos Estados Unidos, eu me virei para o Luis Fernando, então com nove anos, e disse: poxa, como cresceste! É essa a impressão que tenho até hoje em todos os sentidos”. Mas, crescido, o filho de Erico chegou a uma idade na qual espera que todas as utopias do nosso tempo morram, menos uma, a de que ninguém nunca mais passe fome. Está definitivamente convencido de que não há equivalência possível entre morrer por escolha, de tédio, na Escandinávia, e morrer de fome. Torce para o nascimento de uma sociedade solidária, que pode ter o título que se quiser dar a ela, menos, obviamente, de capitalista.
Não espera sentado por essa sociedade, mas pensando e escrevendo. “A revolução se faz com ironia, paciência e um bom jogo de corpo”, diz ele, misteriosamente. Luis Fernando não é um socialista por convicção altruísta: “Sou um socialista pela mais egoísta das razões, para não recomeçar a procurar o destino da minha espécie nos búzios, nas entranhas dos pássaros ou nas cotações da bolsa”. Inflamado, na medida do que lhe é possível, ele continua: “Não somos uma geração perdida. Somos uma geração condenada pelo que não fez. Essa geração de miseráveis, condenada a uma vida curta e bruta, pelo simples azar de ter nascido na época errada, no país errado, sob uma elite errada”.
Dito isso, cansou. “Sou um preguiçoso”, confessa. “Se não tivesse o que fazer, ficava na cama.”E todos poderiam descansar em paz. Mas, sempre traiçoeiro, em vez de ir para a cama deixando dormir os poderosos, ele permanece acordado. Aí empunha sua pena, como faziam os escribas irados de antigamente, para fustigar os vendilhões do templo, e isso ainda mais antigamente. A pena agora é um micro, um laptop ou a internet, e o que a movimenta é a indignação. Não se sabe como começou. Por antipatia não foi. Mas, sozinho lá no seu porão, Luis Fernando passou a sentir um certo arrepio ruim diante da figura do bonitão moreno, intelectual de renome e portador de becas universitárias internacionais, vítima do regime militar e paladino — palavra que o dono do porão não usa — da modernidade brasileira. Ele era uma simpatia, uma graça, uma esperança com seu Plano Real de dinheiro local tão valioso quanto o dólar.
O filho de Erico, que nos anos 1960 e 1970 batalhou contra os governos militares, se insurgiu contra o presidente civil, eleito pelo povo em voto direto. Ele foi o primeiro a bater na grande unanimidade nacional, o bipresidente e seu meio xará Fernando Henrique Cardoso, seguido depois pelos jornalistas Jânio de Freitas e Elio Gaspari. Aberta a porteira, ela foi atropelada por uma matilha que hoje morde as canelas do “príncipe dos sociólogos”, outro título na biografia do presidente, transformado em osso do dia. Nada de pessoal, nem quando Fernando Henrique, desacostumado a críticas, disse irritado que até “aprecio muito os livros do pai dele”. Em quadrinhos e nos comentários diários que mantinha no Jornal do Brasil até o começo de 1999, quando FHC iniciava seu segundo reinado, Luis Fernando agarrou o neoliberalismo pelo pescoço — nada de pessoal contra o pescoço do dono do trono, portanto — e espetou-o num garfo para exibi-lo pelado em alguns comentários de dar tremor na terra brasiliensis. Alguns deles:
• Uma das coisas que se poderiam esperar se Fernando Henrique Cardoso tivesse sido eleito presidente da República seria um rápido esclarecimento do caso Rubem Paiva. […] Se Fernando Henrique fosse presidente da República, o Ministério da Agricultura não estaria com um banqueiro, o Incra não seria presidido por um membro da UDR e a reforma agrária já teria passado do estágio da distribuição de poucas terras para efeito publicitário. […] Não vamos nem falar nas medidas que tomaria na área social, num sinal de que chegara disposto a inverter as cotas tradicionais de sacrifício entre capital e trabalho no Brasil, assim que tomasse posse. Por todas essas acho que se deve pedir, urgentemente, um teste de DNA do atual ocupante do Planalto. Trata-se, obviamente, de um impostor. (“Se”, 11 jul. 1995)
• Éfe Agá é o melhor que o patriciado brasileiro pode oferecer ao Brasil. Num mundo perfeito, sua eleição teria o caráter de uma remissão: depois de anos de falsos messias, bufões, loucos, boas tentativas e generais — alguns acumulando categorias —, a oligarquia teria finalmente produzido um príncipe, e sua justificativa histórica. O ideal jansenista da elite esclarecida em pessoa. (“O blefe”, 20 abr. 1996)
• Aceito o lamento do Éfe Agá de que o conflito na terra é entre o Brasil arcaico e o Brasil moderno, deve-se perguntar ao presidente o que ele está fazendo entre os arcaicos. Escolheu governar com os mesmos que há anos transferem uma reforma modernizadora no campo, trocou suas convicções de esquerda pelo receituário neoliberal, adotou a moral contábil sobre todas as outras e agora é obrigado a fazer veementes discursos sobre si mesmo. Sai daí, rapaz. (“Recomeço”, 23 abr. 1996)
• Não, o Éfe Agá não é caipira também, como ele disse só para a gente não ficar magoada. É um homem fino e culto, inclusive muito viajado. Acontece é que quem come buchada de bode uma vez, como o presidente comeu em campanha, passa a sofrer de intermitentes ataques de saudade do sertão. Ou, como diz o próprio presidente, “nostalgie des grottons”. É uma espécie de maldição da buchada que acompanha todos que a comem sem sinceridade e/ou de jeans com grife. A pessoa acorda no meio da noite com aquela ânsia pelo primitivo, aquela compulsão da alpargata, que acadêmico tem muito. […] Há alguns dias o pessoal do palácio não encontrou o presidente nem uma explicação para seu desaparecimento. Procuraram nos lugares que ele costuma frequentar — Paris, Malásia etc. — e nada. […] Dona Ruth viu o marido na televisão, participando de um comício em Jequié, na Bahia. Resgatado às pressas, Éfe Agá explicou que ficara sabendo do acontecimento na véspera e fora tomado pelo impulso de chafurdar no arcaísmo. Só que desta vez era um grotão, entende, Ruth? Era um grotão com Antônio Carlos Magalhães, um clássico. (“Maldição”, 19 jul. 1996)
• Por que só oito anos? Os argumentos para que Éfe Agá fique mais quatro anos são os mesmos para que fique mais dezesseis ou vinte. Se Éfe Agá na presidência é a condição para sermos felizes, por que dar um prazo fixo à felicidade? […] Deem 28 anos de poder a esse homem e ele provará que não é desses que querem o poder por 32. Deem 32 e assim verão o que é desprendimento. […] Todo o barulho contra a reeleição de Éfe Agá deve-se ao fato de o brasileiro ainda não estar preparado para a perfeição (“Governo definitivo”, 16 jan. 1997)
Luis Fernando, porém, não pegou nem pegará em armas propriamente ditas, trabucos ou coquetéis molotov, como também não tem ilusões de que seus escritos, de sátira ou comentários políticos, possam contribuir para qualquer tipo de transformação social no Brasil. Sabe que pertence, por um acidente genético, à minoria que no Brasil pode comer bem e viajar, mesmo que a crédito. Não acha que a melhor maneira de nos solidarizarmos com a privação alheia seja nos privarmos também. Enigmaticamente, comenta: “Podem-se fazer milagres com a sopa de batatas”.
Foi descobrindo que a vida não tem sentido, nesse vazio incluindo todos aqueles que se criaram amando os livros e não suportam a ideia de que eles não têm muito efeito na história do mundo. “O começo da sabedoria é se convencer de que a vida não tem sentido”, acredita. “Sentido é uma palavra que só tem sentido nos termos de um organismo finito, como o nosso. Não tem sentido algum fora da experiência humana.”
Passou um pouco da meia-idade e certo de que já viveu os quinze minutos de celebridade a que todos têm direito na vida. Quando apareceu na capa de Veja, mais de vinte anos atrás (e depois de ter escrito uma página da revista durante seis anos, até 1989), chegou ao máximo possível da fama impressa e concluiu que essa fama vem e vai, como as ondas. “Quando me perguntam se mudei depois que saí na capa da Veja, respondo que não. Continuo o mesmo cara convencido que era antes”, diz. Tão convencido que seu próximo livro poderá ser uma nova versão da carta de Pero Vaz de Caminha, totalmente reescrita por ele na tensa quietude do seu porão.
A autoanálise de Luis Fernando aparece aqui: “Não sou modesto, não. Acho que ninguém é. Todo mundo se julga formidável de uma maneira ou de outra”, explica. “Esse negócio de vencer, chegar na frente e ser o melhor tem uma conotação competitiva que não me agrada. Na medida em que ganho razoavelmente bem, vivo bem, tenho uma família em bom estado de funcionamento e que consegui isso sem explorar ninguém, acho que sou um dos vencedores”. Fez também umas contas interiores, econômicas, como sempre, para concluir: “Eu me protejo não dando muita importância a essa necessidade de ter sucesso, que no fundo é a necessidade de ser amado. Estou pronto para, quando puder, largar tudo e comprar meu oboé”.
Seu destino inevitável agora é a terceira idade. “É terrível”, comenta sobre essa questão geriátrica. “Pensei que a crise dos 40 me imunizaria contra a angústia, mas a dos 45 foi pior. Assim como nosso corpo nos prepara para a puberdade, deveria ter uma glândula qualquer que nos preparasse para a morte. Mas não. A gente vai perplexo até o fim.”
(Trecho do romance “O jardim do diabo“)
— Posso lhe fazer uma pergunta?
— Não.
— Quando eu era bem mocinha, tive uma aventura amorosa e fiquei grávida. Como meus pais eram muito severos e eu não tinha ninguém para me orientar, fiz eu mesma um aborto. Joguei o embrião na privada e puxei a descarga. Meus pais nunca ficaram sabendo, eu nunca contei a história a ninguém. Depois tive uma vida normal, casei, nem vou dizer o nome do meu marido, pois o senhor certamente o conhece, tive filhos, hoje estou muito bem de vida.
Aliás, neste momento estou vindo da casa de minha velha mãe, 90 anos e ainda toca acordeom como uma garotinha, mas isso é outra história. Ultimamente, no entanto, passei a ter sonhos esquisitos. Sonho com o embrião que mandei para o esgoto. Meu primeiro filho. Sonho que ele sobreviveu, que cresceu nos esgotos, alimentando-se Deus sabe de quê, mamando em ratazanas, o senhor sabe como é o impulso vital, ainda mais na nossa família. Passei a ter fantasias, também. Não podia mais chegar perto de privadas, com medo de que alguma coisa me puxasse para baixo, para os esgotos.
O senhor pode imaginar como essa fobia afetou a minha vida e a minha higiene pessoal. Finalmente, decidi procurar um psicanalista. Na primeira sessão, contei do meu aborto. Ele foi a primeira pessoa do mundo que soube da história. Depois contei dos meus sonhos, dos sonhos do embrião crescendo no esgoto, tornando-se um bebê, depois uma criança… E então vi que o psicanalista tinha lágrimas nos olhos. E ele me contou que aquele embrião era ele! Sim, tinha se criado num esgoto e mamado em ratazanas.
Tinha 15 ou 16 anos quando, pela primeira vez, abriu um bueiro e decidiu investigar o mundo aqui fora. Foi a primeira vez na sua vida que comeu qualquer coisa que não fosse dejeto. Com muito custo conseguiu se adaptar à vida na superfície. Estudou à noite enquanto trabalhava e, com imensos sacrifícios, conseguiu um diploma de psicanalista e uma ótima reputação no meio, pois seu nome me tinha sido muito recomendado. Aliás, depois da primeira sessão, ele já disse qual era o meu problema: um grande sentimento de culpa pelo meu pecado juvenil, nunca revelado. Fiquei muito orgulhosa, como mãe.
Agora, minha pergunta é a seguinte. Devo continuar meu tratamento com ele, ou o fato de ele ser meu filho, rejeitado ainda em embrião, vai afetar o nosso relacionamento e impedir que ele me trate com objetivismo clínico?
• A gramática precisa apanhar todos os dias para saber quem é que manda.
• Sou um gigolô das palavras. Vivo à custa delas. E tenho com elas a exemplar conduta de um cáften profissional. Abuso delas. Exijo submissão. Maltrato-as, sem dúvida. E jamais me deixo dominar por elas. Não me meto na sua vida particular. Não me interessa seu passado, suas origens, sua família, nem o que os outros já fizeram com elas. As palavras, afinal, vivem na boca do povo. São faladíssimas. Algumas são de baixíssimo calão. Não merecem o mínimo respeito.
• Defendo a tese de que o revisor tipográfico é o homem mais importante da literatura ocidental. Um revisor mal-intencionado pode acabar com a civilização como nós a conhecemos. Imagine uma conspiração de revisores. O terror pelo empastelamento. O regime ameaçado por uma onda de crases indébitas. A família acoitada (em vez de açoitada) pela ausência de cedilhas e o proliferamento de acentos indecorosos.
• A literatura se enclausurou nela mesma porque tomou conhecimento de sua própria inutilidade. O cara podia ler Rilke de noite e no dia seguinte atirar judeus ao forno sem qualquer contradição. Ou ir lendo Mark Twain no avião para atirar a bomba em Hiroshima.
• Sem querer fazer frase, já que não me propus a nenhum projeto de vida a realizar, só posso dizer que me sinto satisfeito num mundo que não me satisfaz.
Texto revisto e ampliado pelo autor em 2000.