A cova reservada a Jean-Paul Sartre parecia aberta desde o começo dos anos 1960, quando se trocou o vocabulário da filosofia pelo das ciências humanas, mas ela talvez fique vazia para sempre. Quando um edema pulmonar matou Sartre, na semana passada, em Paris, aos 74 anos, três semanas depois de seu internamento num hospital, havia um certo mal-estar entre a intelligentsia francesa, para quem Sartre era o intelectual mais importante do pós-guerra, talvez do século: afinal, ele jamais se aposentara, sua voz continuava a ser registrada num gravador, sua obra de maneira alguma podia ser dada como terminada.
O presidente Valéry Giscard d’Estaing esteve no velório do Hospital Broussais, antes que fosse cremado o corpo do “último filósofo”, como inevitavelmente foi chamado nos necrológios. Mas Sartre sempre esteve longe de ser um fantasma em vida: só saíra do centro da cena intelectual e política que ocupou nos últimos quarenta anos por causa da cegueira que limitou sua vida aos duzentos metros que separam sua casa, no bulevar Edgard-Quinet, do Café Liberté, em Montparnasse.
“Não me sinto velho”, dizia ele no mês passado, numa enorme entrevista publicada em três números seguidos no semanário Nouvel Observateur e transcrita no Brasil pelo jornal O Estado de S. Paulo. “A velhice é uma realidade minha que os outros sentem: os outros são minha velhice.” Os outros, escreveu ele uma vez, numa de suas inúmeras frases largamente difundidas e parcamente compreendidas, são o inferno. O peso, a extensão e a abrangência da obra de Sartre são de fato tão impressionantes que a cova filosófica aberta pelos movimentos mais recentes do pensamento francês está longe de ter a medida do morto.
Com suas peças, romances, discursos e viagens, mais que com suas reflexões propriamente filosóficas, Sartre conseguiu um milagre: ser um autor de sucesso. Como Bertrand Russell, que, octogenário, participava de manifestações de rua na Inglaterra, Sartre, septuagenário, distribuía aos transeuntes seu jornal Libération. Em 1945, quando a guerra terminou, suas conferências faziam furor e nela jovens estudantes esperneavam como num concerto de rock de hoje em dia. Sartre, talvez sem se dar conta, acabava de fundar uma escola filosófica, o “existencialismo”, como seu folclore de desespero envolto em caves enfumaçadas, pálidas mulheres vestidas de preto, liberdade acima de todas as coisas e coisa alguma no horizonte. Até no Brasil, onde Sartre teve várias obras traduzidas e peças encenadas, o novo movimento filosófico saltitou no final dos anos 1940 na marchinha carnavalesca Chiquita Bacana, na qual Emilinha Borba mencionava a personagem “existencialista com toda razão, só faz o que manda o seu coração”. Nada mau para um jovem professor de filosofia que anos antes publicara obras como O ser e o nada: Ensaio de ontologia fenomenológica (1943).
A trajetória do pensamento de Sartre, na verdade, tanto fascinou quanto desconcertou e irritou seus críticos. Sua vida pessoal fundada na liberdade inalienável e suas relações íntimas, às vezes ásperas, com toda uma geração de intelectuais franceses, em que brilhavam nomes como André Malraux e Albert Camus, aguçaram a curiosidade de seus leitores.
Percebeu-se, muito cedo, que Sartre chegara com algo a dizer. “Tenho a paixão de compreender os homens”, escreveu ele em outro de seus pensamentos célebres. Na entrevista à Nouvel Observateur, completava, ironizando as especulações sobre cada uma de suas palavras e comentando a quase reclusão em que vivia: “Se tenho um homem diante de mim, procuro compreendê-lo. Mas não vou procurá-lo”.
Náusea: “O mundo de hoje é absolutamente intolerável”, resmungava o filósofo ©Getty
“O homem é uma paixão inútil”; “o homem é uma ilha povoada de mistérios”; “o homem se faz” – sempre “o homem”, e, no entanto, não era fácil compreender aonde Sartre queria chegar. Filho único, criado pelo avô, Charles Schweitzer, professor de línguas, calvinista e severo, o pequeno Jean-Paul acreditou-se desde cedo um predestinado, conforme conta num de seus mais belos livros, As palavras (1964). Aos 7 anos cortaram-lhe os cabelos longos e descobriram que ele era feio.
Encontrou Simone de Beauvoir nos corredores da Sorbonne, “simpática e malvestida”, e com ela viveu até a morte, sem jamais terem se casado. Formaram, sem dúvida, o casal literário do século: ele achava “até simpáticos” os amantes de Simone, como o escritor americano Nelson Algren, e ela jamais manteve com ele discussões sobre “amores secundários”. Ela também o poupava de discussões sobre as jovens que arrebanhava nas férias. Liam os respectivos livros nos originais e se criticavam “formalmente”. Sem filhos, o casal adotou em 1965 uma colaboradora, Arlette Elkaim, herdeira dos direitos de todas as obras de Sartre, algumas traduzidas para mais de trinta línguas.
O futuro ativista político e a futura pioneira do feminismo (com O segundo sexo, 1949) naquela época, porém, viviam mergulhados em palavras e pensamentos. Simone, em Sob o signo da história, conta que Sartre frequentemente se irritava com o engajamento político dos intelectuais de esquerda: a luta do proletariado, achava ele, era uma causa excelente para o próprio proletariado, mas não dizia respeito aos intelectuais, aos quais caberia encontrar “outras saídas”. Da procura dessas saídas Sartre extraiu toda a sua obra, seus sucessos e seus fracassos.
A história dessa aventura filosófica em que se passa do individual para o coletivo pode ser contada em O ser e o nada, nos três volumes da série Os caminhos da liberdade (A idade da razão e Sursis, de 1945, e Com a morte na alma, de 1949, editados em português) e nas peças, de As moscas (1943) a O diabo e o bom Deus (1951). Num primeiro período, marcado pela penetração do existencialismo alemão na França, Sartre criou suas noções do en-soi (em-si) e do pour-soi (para-si) e desenvolveu a teoria de que as duas coisas não podem andar juntas. Daí o indivíduo viver contra o mundo e a sociedade, numa relação rigorosamente amoral. O único valor verdadeiro, portanto, seria a autonomia individual, a escolha livre e consciente.
O ser e o nada procura mostrar que o homem é um existente cuja essência é não ter essência. O personagem de Os caminhos da liberdade Mathieu Delarue, professor de filosofia, detesta o capitalismo, mas não deseja sinceramente seu fim, pois perderia os motivos de uma revolta que no fundo legitima sua liberdade. Natural, portanto, que dentro desse sistema exista a possibilidade de ser livremente vítima e carrasco, e nada na obra de Sartre permite estabelecer uma posição diferenciada entre essas duas escolhas. Mas houve um segundo momento em que a Europa mergulhou na guerra, a França foi ocupada e nasceu a Resistência. O existencialismo alemão tornou-se conservador, com Karl Jaspers caminhando para a direita, e Ernst Jünger e Martin Heidegger – com quem Sartre estudara em Berlim, em 1933 – para a extrema direita. Para Sartre surgiu, então, além de uma questão de método, uma questão moral.
Essa questão moral pode ser ilustrada numa comparação entre o primeiro romance de Sartre, A náusea, de 1938, os Caminhos… e as peças de teatro.
A náusea – que Sartre, como a maioria dos críticos, considera sua obra literária mais perfeita – é o diário de um homem, Antoine de Roquentin, durante as últimas semanas que passa na cidadezinha de Bouville, tentando escrever a biografia de um certo “marquês de Rollebon”. O leitor jamais se separa de Roquentin e do ponto de vista de sua própria reflexão. O marquês de Rollebon não faz mais que aparecer, ora sob um certo rosto, ora sob outro. O que era ele, na verdade? Nada, responde o romance. De nada serve definir o que são os seres que nos cercam, quando sentimos bem que não somos nada de definitivo ou durável. A “náusea”, portanto, é a procura da evidência de que todos os seres pretendem e representam ser enquanto não são nada além de uma existência absurda, injustificável, uma existência a mais.
Nos Caminhos, o leitor não está mais diante de uma consciência solitária, mas de várias, que se abrem sobre um dia de Paris: há Mathieu, sua amante Marcelle, seu amigo Daniel, seu discípulo Boris, o comunista Brunet. A guerra a todos atinge e os pontos de vista de multiplicam. A liberdade, diz então Sartre, só existe se ela implica liberdade para os outros. “Só se é livre quando todos o são”, escreve. No palco, os personagens de Sartre precisam escolher entre a moralidade e a eficácia. Com o coração pendendo para a esquerda, “como todo mundo”, Sartre optou definitivamente pela ação política em outubro de 1945, quando saiu o primeiro número da revista Les Temps Modernes, cujos principais inimigos eram, então, o capitalismo, Charles de Gaulle e a “revolução pela lei”. Mais: o escritor é responsável, dispõe de uma arma – a escrita –, e suas palavras devem ser mortíferas como um fuzil.
O filósofo, o literato e o político desde então nunca mais se separaram.
O primeiro perseguiu até o fim de seus dias “a interrogação sobre o homem, sobre o sujeito totalizador da História”. O segundo produziu ensaios inesquecíveis, como Baudelaire (1947), e sobretudo Saint Genet, comédien et martyr em que resgata para o público a vida errante do teatrólogo, ladrão e homossexual Jean Genet, talvez a obra-prima da crítica moderna. O terceiro envolveu-se em todos os movimentos políticos do pós-guerra, unindo-se aos comunistas em 1952 e escrevendo então: “Todo anticomunista é um cão”. Sartre afastou-se dos comunistas em 1956, quando a URSS invadiu a Hungria, e chamou o Partido Comunista, antes “expressão legítima da classe operária”, de “covarde”. Foi o período de feridas dolorosas. Gabriel Marcel, criador de um “existencialismo cristão”, batizou-o de “coveiro do Ocidente”. O grupo da Temps Modernes, antes mesmo dessas polêmicas, já se diluíra em dissensões infernais. Depois, Raymond Aron e Arthur Koestler atacaram-no asperamente por seu alinhamento com a URSS, onde, aliás, suas obras jamais foram traduzidas e a notícia de sua morte coube em quatro linhas do Izvestia.
Albert Camus, a quem admirava e para cujo romance O estrangeiro escreveu um extenso prefácio, tornou-se seu inimigo depois que Sartre o acusou de ser um “pensador solitário rumo à catástrofe”. Nos anos 1960, a direita perseguiu Sartre com bombas e insultos, chamando-o de “doido varrido”. O jornal Candide apelou para Freud: “Tudo o que sai da boca de Sartre é fruto de complexos infantis. Tem complexo do pai e o pai, para ele, é De Gaulle”. Em 1964, finalmente, ao recusar o Prêmio Nobel de Literatura, a imprensa francesa chamou-o de “traidor da pátria”.
Sartre apoiou ainda, por meio de uma série de reportagens, a Revolução Cubana em 1960 (o mesmo ano em que passou pelo Brasil), todos os processos de descolonização africana, os estudantes rebeldes de maio de 1968; foi um dos inspiradores do Tribunal Russell, que em 1967, em Estocolmo, promoveu processos contra a intervenção americana no Vietnã. Sua atuação pública tornou-se tão notória que foi com surpresa que o mundo intelectual recebeu, em 1971 e 1973, os três volumes sobre Gustave Flaubert, O idiota da família, totalizando 2.140 páginas de “psicanálise existencial” do autor de Madame Bovary e dos quais saltam observações surpreendentes, como esta: “Flaubert escolheu observar a vida do ponto de vista da morte. Queria ser tratado como mulher pelas mulheres; Flaubert era lésbico”.
Disse, em sua última entrevista, que jamais sentira angústia e que só observara a miséria do ponto de vista dos outros, mas havia uma ponta de depressão, ou pelo menos de aflição, em sua afirmativa de que para lutar contra a fome é preciso mudar o sistema político e econômico, e que nesse combate a literatura só pode desempenhar um papel muito secundário. Desencantara-se de vez com as manifestações de rua e com toda ideia de partido político: “O partido é a morte da esquerda”.
Reafirmava, porém, que a esperança faz parte do homem, que os livros sempre servem para alguma coisa e não falava mais do “homem”. Disse: “O homem não existe e Marx já o tinha rejeitado bem antes de Jacques Lacan quando afirmou: ‘Eu não vejo homens, eu só vejo operários, burgueses, intelectuais’”. O marxismo de “filosofia inultrapassável de nosso tempo” convertera-se recentemente num “fracasso total”. Sartre, que foi chamado de tudo, inclusive de “intelectual funcionário da negação”, sentia, porém, que a filosofia se desvanecia para dar lugar a novos métodos de trabalho, dos estruturalistas (aos quais acusou de terem trocado o cinema pela lanterna mágica) aos “novos filósofos”. Numa civilização tecnocrática, induzia, não haveria lugar para a filosofia, mas para um devaneio vago, de reflexões muito gerais, negando porém que alguma ciência pudesse substituir a filosofia. Mesmo as teorias de Marx e Freud, conclui Sartre, são condicionamentos do mundo exterior. Marx dizia: “Pouco importa o que a burguesia pense que faz; o importante é o que ela faz”. Sartre comenta: “Troque-se ‘burguesia’ por ‘histérico’ e a ideia pode ser atribuída a Freud”. Cartesiano e racionalista, a ideia de “inconsciente” chocava-o profundamente.
“Não somos homens completos”, concluiu no fim da vida, cercado pelo pequeno grupo de auxiliares, gente com idade média de 30 anos que gravava e anotava seus pensamentos até uma hora da manhã, quando invariavelmente se deitava para dormir. “Somos seres que se debatem para chegar a relações humanas e a uma definição de homem. Estamos em plena batalha agora. E ela sem dúvida vai durar muitos anos.”
O pensamento de Sartre, pendular, móvel, dificilmente pode ser reduzido a uma fórmula comum a todas as suas fases. Eis alguns deles, expressos entre 1930 e 1980:
• Votar nos comunistas, antigamente, era um ato que se considerava revolucionário. Hoje, é um ato de republicanismo clássico.
• A teoria da tomada do poder político pelo Partido deve ser substituída por uma teoria da tomada do poder por cada homem, ligado a todos os outros. O Partido constitui-se à imagem do Estado porque é o apareIho que o proletariado opõe ao aparelho da burguesia — não é espantoso que acabe por se identificar com ele.
• É abjeto crer que os trabalhadores húngaros lutam ao lado dos soviéticos: é o sangue do povo que vai correr.
• Falar, pedir, declamar, manifestar: que agitação inútil!
• Desde pequeno fui polígamo. Sempre pensei que minha vida sexual seria múltipla. Também aí eu era machista: nunca imaginei uma mulher que se tornasse a única em minha vida.
• É preciso que os cubanos triunfem ou perderemos tudo, até a esperança.
• De Gaulle é um general de pronunciamento, cujas aspirações de grandeur reduzem a França ao nivel de uma ditadura sul-americana do século passado.
• Que é, na verdade, o presente? Meu presente é, por essência, sensório-motor. É “um corte” que a percepção pratica em uma massa em vias de escoamento. Este corte é precisamente o “mundo material”. É, ainda, uma coisa absolutamente determinada e que se recorta sobre meu passado.
• O mundo de hoje é absolutamente intolerável.
Foi em 1936, professor de Filosofia num liceu, que Sartre começou a escrever com regularidade, em cadernos sempre iguais, pautados, hábito que manteve durante quase quarenta anos, quase todos os dias, até que a vista finalmente o abandonou, em fins de 1973.
Para ele, a cegueira foi uma “morte simbólica”: seu primeiro ensaio publicado, “A Imaginação”, de 1936, abria-se justamente com uma extensa descrição das relações entre quem observa e a coisa observada, entre um homem e a folha de papel branca posta a sua frente. Suas obras publicadas, até sua morte, totalizam 48 volumes entre ensaios literários e filosóficos, contos, romances, peças de teatro e roteiros para cinema, mas sabe-se que ela é muito maior.
Existem textos inéditos anteriores ao primeiro livro, “A Imaginação”, e posteriores ao último, “O Idiota da Família”, de 1973.
Uma idéia da extensão dessa obra foi dada no ano passado por três pesquisadores franceses, Michel Contat, Michel Rybalka e Jacques Prunair, que se embrenharam num trabalho de arqueologia para localizar no ano de 1922 o primeiro texto de Sartre, um amontoado de anotações esparsas, “Cadernos de Pensamentos”. O último, de 1979, “Poder e Liberdade”, era feito em parceria com Pierre Victor, expoente de maio de 1968 e depois da Esquerda Proletária, movimento maoísta dissolvido em 1971.
TEXTOS RECUSADOS – Entre esses dois extremos descobre-se que Sartre, já aos 18 anos, escrevera metade de um romance autobiográfico, “A Semente e o Escafandro”, e que em 1928 produziu, sem achar editor, um volume de poesias. Também recusado pela Gallimard, depois editora de quase toda sua obra, foi o romance “Uma Derrota”, em 1928, sobre as ligações entre Richard Wagner e Friedrich Nietzsche.
O levantamento desenterrou o roteiro inacabado de um filme sobre a Revolução Francesa, o segundo volume da “Crítica da Razão Dialética”, “Freud” – o roteiro de 800 páginas para o filme de John Huston, recusado pelo diretor, – e as 600 páginas intituladas “A Moral e a Dialética”, preparação do curso que Sartre acabou não ministrando em universidades americanas em protesto contra a intervenção no Vietnã.
G.M.