Homem era belo, macho foi forte. “E poeta sou altíssimo.”
Vinicius de Moraes pintou esse autorretrato num poema que dedicou “a todas as mulheres”. Mas se achava mesmo tão grande assim? Diz um poema de outro autor, mais lendário em língua portuguesa que Vinicius, que o poeta é um fingidor. “Ele finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”, escreveu Fernando Pessoa.
Percebeu-se com espanto invejoso a mensagem de Vinicius. Um colega poeta, Mário de Andrade, com a sabedoria de ter sido também crítico da cultura brasileira, achou que “altíssimo” era demais. Ironicamente, Mário sugeriu um retoque: “Belo, forte, jovem”. Fazia muita diferença pois desterrava Vinicius para a pátria da juventude, que não é o céu da eternidade desejado pelos artistas.
A altitude autoproclamada por Vinicius também foi ignorada num comentário de amigo, o poeta Manuel Bandeira, que o definiu como “um monstro de delicadeza”. Era elogio ao caráter, mas não ao gênio. Vinicius foi chamado de “poetinha”, e nem sempre era elogio. Só Carlos Drummond de Andrade, sempre acima de todos esses comentaristas, admitiu de cabeça erguida: “Eu queria ser Vinicius de Moraes. Foi o único de nós que teve vida de poeta”.
Com isso, Drummond queria dizer que só Vinicius passou por aqui marcado pelo signo da paixão, aos trancos e barrancos. Na verdade não foi o único, mas talvez tenha sido o melhor porque tinha mais fôlegos para ser divulgado e percebido. Entre esses fôlegos, “o dos românticos, a espiritualidade dos simbolistas, a perícia dos parnasianos e, finalmente, homem bem do seu tempo, a liberdade, a licença, o esplêndido cinismo dos modernos”, escreveu Drummond. Dizem as serpentes do Butantan literário que se tratava de coleguismo (hoje se diria corporativismo) o elogio interesseiro de funcionário público para outro funcionário público: Drummond, de terno e gravata, no Ministério da Educação, e Vinicius, de terno e gravata, no Ministério das Relações Exteriores.
Mas Drummond, o verdadeiro altíssimo, não precisava prestar tais favores, até porque também ardia em paixões colossais — secretamente, ao contrário de Vinicius, que as tornava públicas. Só que um dia o diplomata de Receita de mulher mudou sua imagem pública e o funcionário de gabinete de Claro enigma não. Não quer dizer que um tenha sido melhor poeta que o outro, até porque isso não está em discussão. A mudança foi de imagem pública.
©Carlos Scliar
“Vinicius fez a transição pessoal da gravata para o peito nu, da cadeira de espaldar alto para a mesa da calçada, do soneto para a canção e do mistério para o paganismo”, escreveu Ruy Castro no seu livro Ela é carioca (Companhia das Letras, 1999), um dicionário sobre personalidades de Ipanema. O lugar de Vinicius nesse bairro é modesto, pois lá viveu apenas cinco dos seus quase 67 anos de vida, mas o trono simbólico que ocupa na paisagem geral do Rio de Janeiro é comparável ao Pão de Açúcar ou à estátua do Cristo Redentor. Ele é, por antiguidade e merecimento, o poeta do balneário emoldurado por montanhas. O mineiro Otto Lara Resende percebeu isso. Desenhou uma geografia espiritual de Vinicius, fazendo algumas comparações: “Manuel Bandeira viveu e morreu com as raízes enterradas no Recife, João Cabral de Melo Neto continua ligado à cana-de-açúcar. Drummond nunca deixou de ser mineiro. Vinicius é um poeta em paz com sua cidade. É o único poeta carioca”.
A glória de Vinicius de Moraes, superando mar e morros do Rio, só tem paralelo na poesia brasileira com a do baiano Castro Alves, o “poeta condoreiro”, morto aos 24 anos em 1871 e autor de versos candentes e libertários. Vinicius viveu mais, no século seguinte, e também fez versos candentes e libertários. E sua obra em verso, prosa, teatro e letras de música tornou-se extraordinariamente popular, embora não fosse sua intenção original de poeta culto, religioso e atormentado pelo rigor da forma. O grande volume dessa produção tornou-a naturalmente desigual. “Ele escreveu muito e quase sempre desprovido de qualquer senso crítico a respeito de si mesmo”, notou com certa acidez o jornalista José Castello no livro Vinicius de Moraes, o poeta da paixão — Uma biografia (Companhia das Letras, 1994). Seu imenso acervo de documentos, doados à Fundação Casa de Rui Barbosa, no Rio, revela, segundo o biógrafo, “um emaranhado de papéis em que preciosidades se misturam a erros lamentáveis e até vergonhosos”.
Mas os leitores aparentemente não tomaram conhecimento dessas vergonhas. Na década final de sua vida, o prestígio literário de Vinicius chegou ao máximo. Consolidou-se também nos shows de música popular que fez ao lado de vários parceiros. O apreço por ele beirou a idolatria e a insanidade em alguns episódios. Em 1971, num teatro de Belo Horizonte, onde deveria se apresentar ao lado de Toquinho e da cantora Marília Medalha, ele chegou meia hora atrasado, mas em adiantado estado de embriaguez. No palco contou uma história confusa, sobre a situação política do país, para se justificar perante a plateia muda. “É foda! É foda!”, gritou. Já sem esperança de quebrar o gelo, partiu para a ofensa, proclamando:
“A tradicional família mineira que vá à puta que a pariu!”. Foi aplaudido e carregado em triunfo na saída.
Vinicius, com seus olhos verdes, dizia-se “o branco mais preto do Brasil”. Teceu para si mesmo frases de radioso lugar-comum: “Sou um enigma em busca de uma saída”. Era chamado de “poetinha”, apelido que lhe foi dado pelo jornalista e cronista Antônio Maria, a quem chamava, masculamente, de “o meu Maria”. Achava que “nada no diminutivo faz mal”, mas a homenagem carinhosa serviu para diminuí-lo no julgamento de alguns críticos. Vinicius, comilão e beberrão, viveu em más companhias — Orson Welles, Pablo Neruda, Marlene Dietrich e Tom Jobim entre elas — e talvez por isso não precisasse das boas. Uma das melhores, porém, João Cabral, que economizava em palavras tudo que Vinicius gastava nelas, recomendou-lhe, sem ter sido obedecido: “Você precisa emagrecer poeticamente”.
O escritor Fernando Sabino achava que era impossível prescrever qualquer coisa ao poeta, porque ele seria “um ser numeroso”. Nelson Rodrigues, sempre paradoxal, achava o contrário. “A pior forma de solidão é a companhia de Vinicius de Moraes”, escreveu, mas não se procure jamais em entender o pensamento de Nelson. Enfim, o presidente Costa e Silva também deu seu veredicto, quando mandou exonerar o diplomata de carreira. O marechal-presidente foi entendido ao pé da letra. “Demita-se esse vagabundo”, ordenou num memorando ao chanceler Magalhães Pinto, em 1968. Vinicius recebeu a notícia com um aspecto mesmo de desocupado, submerso na banheira de um navio em alto-mar.
Chorou muito ao saber. Gostava do Itamaraty, não tanto da carrière, que lhe deu viagens e lhe permitiu um dia beijar as mãos de Marlene Dietrich, mas pelas muitas amizades que fez lá. Os amigos tentaram arrumar-lhe uma transferência para outro ministério, mas o governo não aceitou. Estava aposentado do serviço público, aos 55 anos. Muito cedo para ele, pois meses antes de morrer ainda se sentia inspirado. Foi quando disse: “Se não tiver mais nada para dizer, paro. O problema de escrever por escrever não existe para mim. Forçar a barra, jamais”.
Vinicius e Tom Jobim, “o homem mais bonito do mundo” @Site VM / Reprodução
Vinicius de Moraes despontou em noite tempestuosa, 19 de outubro de 1913, numa chácara da Gávea, onde poetas nascem e onde havia viveiros de pássaros, um lago e uma vaca. Desapareceu numa madrugada, 9 de julho de 1980, numa casa na Gávea, onde poetas morrem e onde havia livros, garrafas de uísque vazias e um telefone que não tocou. O náufrago mergulhara numa banheira, na véspera, para relaxar. Era hipertenso, diabético e alcoólatra. Flutuando, teve um edema pulmonar que lhe tirou a respiração para sempre. Só os ladrilhos do banheiro são testemunhas. Ninguém viu o enterro de sua última quimera. Somente a solidão, essa pantera, foi sua companheira inseparável. Mas isso ainda era poesia, e só de manhã a quase viúva, Gilda Mattoso, sua nona mulher, soube que era morte.
Ela gritou por socorro e o parceiro do poeta nos últimos anos, Toquinho, deu-lhe tapas no rosto. Inconsciente, Vinicius de Moraes morreu nos braços de Toquinho e Gilda. E da banheira foi direto para o cemitério, onde a atriz Camila Amado derramou no seu caixão uma dose de uísque. Tim-tim! Ele escrevera antes este comentário sobre a morte, a vida e seus amores:
Ela virá me abrir a porta
como uma velha amante
Sem saber que é a minha
mais nova namorada.
Na sua primeira moradia na Gávea, tantas décadas antes, era tudo mais alegre e simples. Teve bronquite, mas sua infância foi feliz. O pai, Clodoaldo Pereira da Silva Moraes, era amigo de Olavo Bilac e escrevia poesias. A mãe, Lídia, era filha de coronel e pianista. Foi batizado com o nome latino (que depois mudou em cartório) de Marcus Vinitius, assim como seus irmãos chamaram-se Laetitia, Lygia e Helcius. Nas veias de todos eles corria uma mistura de sangue de vários ancestrais — sueco, alemão, húngaro, com pitadas de argentino e índio. A bisavó paterna de Vinicius, Anna Barbosa de Lossio e Seiblitz, tida como louca varrida, fez versos patrióticos durante a Guerra do Paraguai: “Parabéns, meu Brasil/ Ergue-te ufano/ Que esta glória que tens é tanta glória/ Que a fama augusta gravará risonha/ Com letras douro na futura história”.
Vinicius não tinha a quem puxar, por esse tronco da sua genealogia. Era introvertido e foi estudar no Colégio Santo Inácio, de jesuítas, cuja sacristia frequentava pedindo perdão pelos pecados que imaginava ter cometido. Cantava no coral e ajudou a escrever peças sacras, relatando o martírio dos santos. Aprendeu violão e, como não sabia o que fazer depois, foi estudar direito. Lá conheceu a primeira das más companhias que marcariam sua vida. Chamava-se Octavio de Faria (1908-1980), o futuro e caudaloso romancista de A tragédia burguesa, romance filosófico-social que ocuparia 4.500 páginas em dezoito volumes e que há muitos anos ninguém mais consegue ler. Naquele tempo, a dupla Octavio & Vinicius era intelectualmente sensacional. V. comia torresmos e tomava cerveja e O. ruminava seus ensaios futuros, que se chamariam Maquiavel e o Brasil, defendendo o fascismo, e Destino do socialismo, condenando o marxismo.
Eles varavam noites lendo Assim falou Zaratustra, de Friedrich Nietzsche, textos de Pascal sobre religião e do pré-existencialista Soren Kierkegaard sobre existência e angústia. Octavio de Faria, diz o biógrafo Castello, tinha “alma grega”, significando o seguinte no mercado de corpos: frequentava o campo de futebol do Fluminense para melhor contemplar “aquela moçada bonita”, e depois se arrependia do malfeito. Pensou em dar um carro de presente a Vinicius, para atraí-lo para suas ideias gregas, mas desistiu e quis jogar-se da serra de Itatiaia. Vinicius o admirava sinceramente, fingindo não perceber a situação. Mas retratou-o num poema impiedoso, Octavio:
Torce a boca, olha as coisas abstrato
Percorre da varanda os quatro cantos
E tirando do corpo um carrapato
Imagina o romance
Mil e tantos.
O romancista enfeitiçado batera na porta errada, pois o jovem Vinicius era um sportman, como se dizia, amante de lutas e exercícios na academia de um dos pioneiros da família Gracie porque queria aumentar os bíceps.
E seus encontros carnais eram sempre com mulheres, como escreveu e provou durante a vida. “Fui salvo pela mulher”, disse Vinicius, ao abandonar sua fase metafísica, na qual escrevia com título até em latim, no poema Bellum omnia contra omnes, espécie de prece que questiona o poder mais alto:
Senhor!
Tudo é blasfêmia e tudo é lodo
Vós não vedes, Senhor
Não vedes todo
Este povo a sofrer?
Livre de Deus, passou a temer fantasmas e teve muitas visões premonitórias ao longo da vida, como o anúncio da morte de Mário de Andrade, em 1945, mas não há como provar isso.
Na faculdade, tinha vergonha de admitir aos colegas que escrevia poemas e desenvolveu desde cedo uma hipocondria que o levou a atormentar médicos ao longo da vida. O doutor Marcelo Garcia diagnosticou-lhe “angústia”. Seu preferido, o futuro escritor Pedro Nava, de quem exigia consultas de urgência em bares, se irritava com ele. “Não entendo essa sua preocupação excessiva com saúde. É um paradoxo, porque você é um dos meus clientes que mais a desperdiçam”, disse. Vinicius atribuía seus males à vagotonia, que descrevia como “uma instabilidade vasomotora”. Numa certa altura da vida, deixou de ser atleta e declarava-se com orgulho “o inimigo número um dos exercícios físicos”. Mas acreditava-se portador de tantas doenças que criou um hilariante poema — em latim, chamado Trópico de Câncer — no qual suplicava:
Angina pectoris
Ora pro nobis
Delirium tremens
Ora pro nobis […]
Infarctus miocardis
Ora pro nobis […]
Elephantiasis
Ora pro nobis […]
Tuberculosis
Ora pro nobis
Poliomielitis
Ora pro nobis
Febre tifoide
Ora pro nobis
Hidrofobia
Ora pro nobis […]
Et libera nobis omnia Cancer
Amen.
Nava, sempre derrotado nos seus conselhos para que Vinicius moderasse no copo, jogou a toalha com um comentário sucinto: “Amizade e medicina não combinam”. O poeta trocou de médico e passou a ser atendido pelo clínico Clementino Fraga, com quem bebia, pelo neurocirurgião Paulo Niemeyer, que colocava cubos de gelo no seu copo de uísque, e por muitos outros nas pelo menos doze vezes em que se internou na Clínica São Vicente para se desintoxicar. Ele adorava esse hospital pois tinha a péssima companhia de Dorival Caymmi, Baden Powell, Grande Otelo, Ronaldo Bôscoli e Carlinhos Lyra, que estavam lá pelo mesmo motivo e pelo mesmo motivo fugiam de seus quartos durante a noite, voltando pela manhã, como se nada tivesse acontecido. Vinicius dizia que aparecia na clínica para fazer uma plástica no fígado e que bebia porque só gostava do mundo depois da segunda dose (um pouco menos que o ator Humphrey Bogart, para quem o mundo estava sempre “três doses atrasado”). Explicava que aquilo lhe dava a sensação de “poder tudo”. Sua definição do uísque como o melhor amigo do homem — “é o cachorro engarrafado” — tornou-se clássica, mas não era motivo para achar graça nela porque o alcoolismo do poeta era real e progressivo.
Ele intuiu a tirania que o dominava num poema feito em Paris, significativamente chamado O sacrifício do vinho:
Ah, eu quero beber do vinho em
grandes haustos
Eu quero os longos dedos líquidos
Sobre meus olhos, eu quero
A úmida língua […]
Ah, eu quero beijar a boca moribunda
Fechar os olhos pânicos
Beber à áspera morte
Do vinho.
O doentíssimo Vinicius acreditava no valor médico da bebida, tanto quanto no valor espiritual da mulher. Dizia que a fé desentope artérias e que a desgraça é que dá câncer. “Nada melhor para a saúde do que um amor correspondido”, ele achava. Por isso consumiu-se entre garrafas e lençóis, interrogando-se em A hora íntima:
Quem pagará o enterro e as flores
Se eu me morrer de amores?
Coisa de poeta.
Vinicius de Moraes e Lucia Proença, 1960 © Site VM / Reprodução
A sempre admirada carreira de Vinicius como amante começou mal, se é que essas trajetórias podem começar bem, mas ele não podia saber nem acreditar nisso. Aos nove anos fracassou duplamente, em versos e na tentativa de conquistar uma certa Maria Cachemira:
Quantas saudades eu tenho
De ti, ó flor primorosa
Que em tudo és gentil e meiga
Que em tudo és tão graciosa.
Maria Cachemira, Marina e Rosário são meninas ou moças na pré-história do futuro galanteador, e sobre as quais poetizou já crescido, nos anos 1930. Sobre Marina, por exemplo, disse que:
Tinhas uns peitinhos duros
E teus beicinhos escuros
Flauteavam valsas […]
Eu procurava, no frio
De tuas calças
E te adorava; sentia
Teu cheiro a peixe, bebia
Teu bafo de sal.
Rosário, uma moça pobre, de 20 anos, introduziu o branco rico, de 15, na vida sexual propriamente dita, nas areias da Ilha do Governador. Adulto, reclamou desse assédio consumado num poema que levava o nome da moça:
E eu que era um menino puro
Não fui perder minha infância
No mangue daquela carne!
E, tratou-a de forma deselegante:
Dizia que era morena
Sabendo que era mulata
Dizia que era donzela
Nem isso não era ela
Era uma moça que dava.
As biografias de Vinicius são povoadas por enxames de fêmeas, que caíram como moscas sobre seu corpo e sua alma, percorrendo quase todas as letras do alfabeto. Em S, Sara Varanda, ou em A, uma Antonia, nos tempos em que era estudante de direito. Esta última ele descreveu numa prosa ainda infantil: “É tão bonita, chama-se Antonia, tem um cabelo fino, uma boina vermelha e um passinho de não me toques”. Sua fama de poeta da paixão correu mundo e foi até título de uma biografia. Ele era eletrizado por qualquer mulher que passava, título de um dos seus poemas:
Meu Deus, eu quero a mulher que passa
Seu dorso frio é um campo de lírios
Tem sete cores nos seus cabelos
Sete esperanças na boca fresca!
O poeta cheio de esperanças não tinha ideia do que o esperava. As mulheres que ele idealizava eram umas feras. E tanta disposição amorosa acabou cobrando um preço. Por isso Vinicius também odiou as mulheres, em verso e vida, e chorou por elas. Chorou pela mãe, Lídia, a quem amava, mas que aparece assim, sem ser citada, no poema Agonia:
Na minha angústia eu buscava
a paisagem calma
Que me havias dado tanto tempo
Mas tudo era estéril e monstruoso
e sem vida
E teus seios eram dunas desfeitas
pelo vendaval que passara (…)
Mas teu ventre era como areia movediça
Para os meus dedos […]
Quando despertei era claro e eu
tinha brotado novamente
Vinha cheio do pavor das tuas entranhas.
Chorou pela mulher e a ameaçou por ser repelente, em Viagem à sombra:
Se alguém me pôs nas mãos esse
chicote de aço
Eu te castigarei, fêmea! […]
tuas coxas são pântanos de cal viva
misteriosas como a carne dos batráquios.
Pranteou pela mulher infeliz, crucificada na cama, em O desespero da piedade:
Tende piedade das
mulheres chamadas desquitadas
Porque nelas se refaz misteriosamente
a virgindade
Mas tende piedade também das
mulheres casadas
Que se sacrificam e se simplificam
a troco de nada.
Apiedou-se dele mesmo, aniquilado por tanta sedução fatal. Foi quando tocou nos extremos de um mesmo fio ligando a morte ao parto, nesta ordem relatada em A vida vivida:
O que é a mulher em mim
senão o Túmulo
O branco marco da minha
rota peregrina
Aquela em cujos braços vou
caminhando para a morte
Mas em cujos braços somente tenho vida?
O poeta começou a entregar os pontos no seu Soneto da devoção:
Esta mulher é um mundo! — uma cadela
talvez…mas na sombra de uma cama
Nunca nenhuma mulher foi tão bela!
E rendeu-se mais ainda, como se fosse possível, em poemas nos quais rimava esta mulher me devora com o pedido quero o colo de Nossa Senhora, baixando armas com um discurso caloroso em A brusca poesia da mulher amada:
Eia, a mulher amada!
Seja ela o princípio e o fim
de todas as coisas
Poder geral, completo, absoluto
À mulher amada!
@Carlos Scliar
A superioridade da fêmea sobre o macho percorre os versos de Vinicius, tanto quanto marcou a ferro e fogo sua vida. O poeta sabia por ouvir dizer que os nervos de volúpia da mulher se estendem por todo o corpo, dos cabelos aos pés, enquanto nos homens se limitam às partes genitais. Isso causou revolta entre os homens, e uma das mais conhecidas de suas manifestações foi feita por um poeta que Vinicius admirava, Charles Baudelaire (1821-1867). Ele sintetizou numa frase imortal e misteriosa:
“A mulher é um ser natural, portanto abominável”. O autor de As flores do mal criou versos crivados de blasfêmias: Na hora em que a natureza, em desígnios velados/ De e ti se servem ó fêmea, ó deusa dos pecados/ Para plasmar um gênio, ó imundo animal/ Ó grandeza de lama, ó ignomínia mortal!
“Deusa”, mas “dos pecados”, “grandeza”, mas “de lama”, e “gênio”, mas também “imundo animal”, isso significa que, um século antes, Baudelaire detestou as mulheres com uma intensidade que Vinicius, talvez sem saber, repetiu depois. Quer dizer também que a ordem do mundo, sua geometria de linhas perfeitas, no plano das ideias ou na construção de cidades e máquinas, só pode ser obra de homens. Eles fazem isso através de uma operação artificial que constrói o esplendor a partir do nada, onde antes só havia caos e barbárie. As mulheres, ao contrário, são desprovidas de espírito. Sofrem da abominação de ser aliadas de campos e cascatas, nuvens e árvores, sem falar de crepúsculos, padecendo ainda de menstruações, hemorragias também naturais e abomináveis. Para nada servem, como não servem os animais, para a construção de obras de arte. É o que Vinicius conta no seu poema A um passarinho, banindo qualquer encarnação de musas da natureza:
Para que vieste
Na minha janela
Meter o nariz?
Se foi por um verso
Não sou mais poeta
Ando tão feliz!
Se é para uma prosa
Não sou Anchieta
Nem venho de Assis
Deixa-te de histórias
Some-te daqui!
Todo o pavor, submissão e devoção do senhor da razão à rainha da emoção ficam fincados como barreiras que precisam ser derrubadas. Daí o artifício de saudar as mulheres: Eia! poder geral à mulher amada!, para depois contestá-las e subjugá-las na cama, como o másculo Vinicius deixa claro nos versos de Repto:
Em campos de paina
Pretendo reptar-vos
E em seguida dar-vos
Muita, muita faina
Guerra sem quartel
E tréguas só se pedires mercê
Com os olhos no céu.
Beatriz Azevedo de Mello não quis saber desse palavrório, pois nunca ouvira falar dele. Paulistana chique, de formação europeia e afeiçoada às letras, tinha nariz empinado e nele Monteiro Lobato se inspirou para traçar o perfil de sua personagem Narizinho. Ela reagiu com indiferença quando um amigo da família, o pintor Cândido Portinari, a convidou para um encontro onde estaria o poeta Vinicius de Moraes. Ela disse: “Não sei quem é”. Beatriz, a futura Tati de Moraes, jornalista e crítica de cinema, era pedante e tinha fama de socialista. Mesmo noiva de outro, apaixonou-se pelo jovem — dois anos mais novo que ela — solteiro, também pedante mas com fama de integralista. Casaram-se por procuração em 1938 para viver um grande amor, dos inúmeros na vida do poeta, e foram morar na Inglaterra, onde ele cursava uma bolsa em Oxford. Ela ganhou de presente alguns dos versos mais famosos de Vinicius, no Soneto de fidelidade, que termina assim, numa premonição:
Eu possa me dizer do amor (que tive):
Que não seja imortal, posto que é chama
Mas que seja infinito enquanto dure.
Essa radiografia da traição, contrastando desde o título que fala em fidelidade, correu mundo, quer dizer, o Brasil, e chegou às suas destinatárias. Tati, e as demais, que o dissesse. Mas falou antes um homem, Aurélio Buarque de Holanda, em nome não de sentimentos amorosos mas da língua pátria. Conta-se que o dicionarista e o poeta encontraram-se num bar em São Paulo e a conversa azedou. “Seu poema é belíssimo”, disse o primo distante de Chico Buarque de Hollanda, “mas está errado.” Explicou que a expressão “posto que” (usada por Vinicius no sentido de “porque”) deve ser entendida como sinônimo de “ainda que”. O poeta ouviu o pito do professor e, àquela altura da vida, ficou bravo. Tentou fazê-lo engolir suas palavras: “Fiz assim por causa da métrica e do som. Sou poeta, não sou gramático”. O guardião do idioma não engoliu e também ficou bravo:
“Não importa! Meu dicionário está estragado!”.
Romanticamente, Tati e Vinicius se encontravam escondidos em Oxford, pois a bolsa era para rapazes solteiros. Ele passou a apreciar a companhia de fantasmas que rondavam Oxford, noite adentro, e escreveu muito, inspiradíssimo, como nestes Quatro sonetos de meditação:
[…] Uma mulher me ama. Se eu me fosse
Talvez ela sentisse o desalento
Da árvore jovem que não ouve o vento
Inconstante e fiel, tardio e doce […]
E eu, moço, busco em vão meus olhos velhos
Vindos de ver a morte em mim divina:
Uma mulher me ama e me ilumina.
O casal foi passear em Paris, como Humphrey Bogart e Ingrid Bergman no filme Casablanca, e tudo era o máximo. Lá ele viu a estátua da Vênus de Milo e sentiu uma “atração física” pela beldade de pedra. A Segunda Guerra mundial começou, como no filme Casablanca também, e eles não puderam voltar à Inglaterra. Passaram 45 dias em Lisboa, na sempre desagradável companhia do vanguardista paulistano Oswald de Andrade, que ficava rindo de tudo aquilo, até que pegaram um navio. Tati estava grávida (sua filha Suzana nasceu em 1940) e Vinicius sem emprego. Foram morar num apartamento alugado em Copacabana, com dinheiro mandado escondido pela mãe de Tati, e ele foi escrever crítica de cinema para o jornal A Manhã. Vinicius tinha prática porque anos antes havia sido um dos fundadores do primeiro Chaplin Club da América do Sul e colaborador da revista O Fan (mas muitos filmes quem via e comentava era Tati, que foi crítica de cinema pelo resto da vida, e o marido apenas assinava).
Foi quando ele arrumou um emprego público, o de censor de filmes. Não era nenhuma vergonha, já que o país estava mesmo sob uma ditadura. Intelectuais eminentes como Prudente de Morais Neto e Josué Guimarães trabalhavam nisso, para ganhar o pão de cada dia, e protegidos pela desculpa de que antes eles do que outros, pois apenas assinariam os certificados de liberação, sem proibir nada. E o novo funcionário, já pai de família, meteu a caneta para justificar seu salário.
As biografias de Vinicius dizem que ele, como seus colegas de letras, jamais censurou coisa alguma, mas não é verdade. Proibiu um documentário sobre uma escola pública no interior do estado do Rio e reclamava dos fotógrafos que segundo ele “só se interessavam por tristezas”. No seu livro Roteiro da intolerância — A censura cinematográfica no Brasil (Editora Terceiro Nome/Senac, 1999), o historiador Inimá Simões revela um texto que não consta das obras completas de Vinicius. Lá o poeta fez seu laudo censório, sobre o trabalho alheio, explicando por que o proibia, embora não precisasse dar satisfações a ninguém. Ainda assim, ele escreveu: “O fotógrafo naquele dia se requintara: esperara pacientemente uma semana de fortes chuvas, tempo excelente para a miuçalha aproveitar e fazer greve de banho. Quando estava tudo bem sujo, bem enlameado, bem alagado, nosso prezado cinegrafista partiu para a sua filmagem, lá chegando, fez reunir a garotada (quase todos pretinhos, positivamente imundos, resfriadíssimos) em frente à tal escola. E pôs-se a fazer a reportagem. E que alegria para eles! Metiam o dedão na terra encharcada, mostrando as cancelas da dentadura e enxugando o resfriado na manga da camisa mesmo. Nunca quis tão bem aos nossos negrinhos como naquele dia”.
Alguns anos depois, recém-chegado de sua segunda temporada no exterior, em Paris, Vinicius desfalecia nos cinemas brasileiros. Tinha taquicardia e suores frios nas mãos. Ele ia ver filmes em companhia do cineasta Alberto Cavalcanti, de festejada carreira na França e Inglaterra e que tentava trabalhar aqui. Certamente o poeta não passava mal pelo que havia censurado anos antes. Os desmaios eram suspeitos. “Vinicius é um ph.D. em desmaio”, comentou seu amigo Antônio Maria. “Apaga sempre que isso lhe seja útil.” Mas desde os anos 1930 ele sentia “calafrios” diante dos filmes. Interessava-se muito por cinema e reagiu mal quando os filmes começaram a falar, na virada dos anos 1920 para os 30, só se convencendo de que a novidade era para sempre quando assistiu a Cidadão Kane. Estava sem publicar nada, a família aumentando (o segundo filho, Pedro, nasceu em 1942) e decidiu melhorar de vida. Prestou concurso para o Itamaraty, estudando as lições na praia e tendo como professor de português Antônio Houaiss. Passou e logo arrumou uma namorada na repartição.
Regina Pederneiras, ao contrário de Tati, não lia poesia. Só arquivava papéis. Ela era gordinha, muito dedicada às suas funções e os dois bebiam cachaça no fim do expediente, num botequim das redondezas. Comovido com o serviço humilde de Regina, o poeta já apaixonado escreveu Balada das arquivistas:
Oh jovens anjos cativos
Que as asas vos machucais
Nos armários dos arquivos!
Casaram-se em Petrópolis numa cerimônia religiosa (pois ainda era marido de Tati na certidão do cartório), mas ela o abandonou um ano depois. Ele chorou nos ombros do colega João Cabral de Melo Neto, um poeta árido que não entendia de soluços, mas que o levava para almoçar e insistia para que comesse “pelo menos um bifinho com fritas”. Tati recebeu-o de volta e o perdoou. “Eia, a mulher amada! Seja ela o princípio e o fim de todas as coisas”, deve ter pensado, agradecido.
Homem era belo, macho foi forte; “E poeta sou altíssimo” © Site VM / Reprodução
O primeiro posto de Vinicius na carrière, em 1946, foi como vice-cônsul em Los Angeles, onde está Hollywood, e ele entendeu imediatamente o espírito da coisa: recebeu Tati, Suzana e Pedro na estação ferroviária com um show do Bando da Lua, chefiado por Aloísio de Oliveira. O bando acompanhava Carmen Miranda, que dava festas em sua mansão em Beverly Hills com a presença constante do diplomata recém-chegado. Via filmes em primeira mão, em cabines exclusivas, levado pelo crítico brasileiro Alex Viany, e numa delas fez alguma amizade com o já mitológico Orson Welles, que o convidou para assistir às filmagens de A dama de Shangai, com Rita Hayworth. O cinema e o jazz o tomaram por completo e sua obra escrita parecia uma página encerrada.
Publicara seu primeiro poema, A transfiguração da montanha, em 1932, e o primeiro livro, O caminho para a distância, em 1933, sob protestos de amigos como o futuro jurista Américo Jacobina Lacombe, que aconselhou: “Tente outra coisa. Para ser poeta é preciso ser sonhador e viver com a cabeça nos ares. Você é realista demais para isso”. Não era verdade, tanto que depois da temporada literariamente vazia nos Estados Unidos Vinicius teve de cair na real quando voltou ao Brasil, em 1951: teve de escrever para viver, ou seja, pagar as contas. Passou a ganhar muito menos, em cruzeiros em vez de dólares, e suas despesas de repente aumentaram porque teve de constituir um novo lar. Ele foi almoçar com Rubem Braga e ele lhe apresentou uma moça, com um comentário fora do comum: “Este é Vinicius, esta é Lila Bôscoli, e seja o que Deus quiser”.
Por causa de Lila Bôscoli, dezoito anos mais nova, Vinicius quase apanhou do irmão dela, o futuro letrista Ronaldo Bôscoli. Casaram-se e ela também ganhou uns versos de presente, em Poema dos olhos da amada:
Ah, minha amada
De olhos ateus
Cria a esperança
Nos olhos meus
De verem um dia
O olhar mendigo
Da poesia
Nos olhos teus.
Foram morar num apartamento de dois quartos alugado no Arpoador, com o aval de Otto Lara Resende, onde havia um estrado com colchão e uma cadeira de balanço que Lila trouxera de casa. O “olhar mendigo” de Vinicius, no poema sobre sua amada, tinha também um outro foco, que não era o da poesia. Foi escrever no jornal Última Hora — e onde mais quisessem seus textos — a respeito de filmes e discos. Criou também uma crônica diária e até um consultório sentimental, chamado “Abra o seu coração”, no qual dava conselhos a almas torturadas. Sob o codinome Helenice, apresentou-se assim: “O mundo da sombra dos espíritos e das doenças da alma não tem segredo para mim”.
A um leitor que se achava feio recomendou estudar economia e evitar botequins. Disse a uma leitora pobre que ia casar com rapaz rico e não sabia o que vestir: “Faça uma saia de zuarte, custa mais de dez cruzeiros o metro, uma blusinha de algodão branco bem simples, e pronto. Bem penteada e limpinha, você pode enfrentar com esses trajes a família ultrachique do seu marido”. Garantia também ter remédios contra a calvície e recebeu tantas cartas que se desesperou. Foi salvo quando o Itamaraty o nomeou para o cargo de segundo-secretário da embaixada em Paris, em 1953. E Helenice teve uma substituta à altura, Suzana Flag, codinome de Nelson Rodrigues.
Paris era, mais ainda que Hollywood, uma festa. A cidade parecia só estar à espera de Vinicius. Lá ele debochou do poeta Pablo Neruda (anos depois seu amigo) chamando o séquito dele de “escravos”. Podia ser visto no bar do hotel Plaza Athenée, bebendo e beijando as mãos de Marlene Dietrich, que conhecia dos tempos de Hollywood, mas também frequentava parques, onde batia e chutava bêbados desmaiados. Esmurrou e tirou sangue do nariz do diplomata Rodolfo Souza Dantas, que depois se casou com sua filha Suzana.
Naturalmente não tinha hora de voltar para casa, onde Lila o esperava, mas achou tempo de se apaixonar por Mimi Ouro Preto, modelo da Casa Chanel, de família de diplomatas brasileiros, que dispensou sua corte e demais serviços. Ele simulou um suicídio com gás, deixando prudentemente algumas janelas abertas, até ser salvo pela sogra, a mãe de Lila, que passava por Paris. Tudo ficou em família e Lila, como tantas outras, o perdoou.
Tiveram duas filhas, Georgiana e Luciana, e a vida seguiu assim, com trabalhos profissionais inclusive, dentro e fora da embaixada. Vinicius conhecia muita gente na Cinemateca Francesa, onde apareciam produtores querendo saber se tinha alguma coisa para ser filmada, e ele tinha, como por exemplo sua peça Orfeu da Conceição, embora não estivesse pronta. Sacha Gordine, um produtor poderoso na época, pediu-lhe uma sinopse para cinema. Mas no Brasil também queriam levar o texto ao palco e em 1956, aproveitando uma licença, chegou ao Rio para cuidar disso.
Foi quando sua vida mudou e a música popular brasileira também.
Vinicius deixava pistas e os amigos mais próximos as decifravam: “Vem nova fase aí” © Site VM / Reprodução
Ele conheceu Lúcia Proença e Antônio Carlos Jobim, mas não nessa ordem.
Jobim era um compositor de 29 anos, “o homem mais bonito do mundo”, na avaliação de Ronaldo Bôscoli, tocava piano em boates e inferninhos da Zona Sul e vivia tão endividado que foi logo perguntando ao entrar no projeto se “tinha um dinheirinho ali”. Tinha, e outros notáveis atrás dele, como Carlos Scliar na consultoria plástica e Oscar Niemeyer e Djanira assinando os cenários. Os ensaios da peça prometiam, prestigiados pela intelectualidade e pela grã-finagem, e consta que o ator Haroldo Costa, que faria o papel de Orfeu, se encontrou com uma das dez mais elegantes (como se dizia na época), Lourdes Catão, e ela lhe disse que era a primeira vez que conversava com um negro.
O futuro Orfeu teria respondido: “Pois não sabe o que perdeu, madame”.
Mas Vinicius tinha dúvidas sobre a qualidade do seu texto e foi consultar o velho amigo João Cabral de Melo Neto, que leu e sentenciou, no seu estilo rude e franco: “Os dois primeiros atos são ótimos, mas o terceiro é péssimo. O que está esperando? Reescreva”. Vinicius e Tom fizeram letras e músicas em quinze dias, rendendo doze canções colocadas depois no disco Canção do amor demais, o marco zero da bossa nova cravado pela voz de Elizeth Cardoso, quando se ouviu pela primeira vez a batida do violão de João Gilberto.
A estreia no dia 25 de dezembro foi espetacular, lotando o Teatro Municipal do Rio, mas ficou só seis dias em cartaz porque a casa estava comprometida com outros espetáculos. Depois andou por vários teatros e em 1959 se transformou no filme Orfeu do Carnaval, dirigido pelo francês Marcel Camus, premiado com a Palma de Ouro em Cannes e o Oscar de melhor filme estrangeiro — um duplo sucesso que os autores da peça detestaram. Os dois estavam casados desde os ensaios da peça e assim permaneceram até o fim de seus dias, numa das mais ricas parcerias da música brasileira. Naqueles velhos bons tempos o vento soprava a favor deles, da legião de novos compositores e cantores da bossa nova, dos artistas em geral e de tudo e todos que trouxessem alguma novidade. Uma avenida Brasil de tamanho nunca visto se estendia a sua frente, os arautos da contemporaneidade saudaram o povo e pediram passagem.
O povo, abstração, passou a ser identificado e reconhecido na prática.
“Ah, homens de pensamento/ Não sabereis nunca o quanto/ Aquele humilde operário/ Soube naquele momento!”. Quem disse foi Vinicius, e o trabalhador aprendeu em versos, embalado pela força da época. O poeta estava retocando o texto de Orfeu, evocando deuses mitológicos, quando publicou O operário em construção, falando de homens de carne e osso. Nesse poema, que o temível crítico José Guilherme Merquior considerou “a melhor vulgarização possível da dialética hegeliana sobre o senhor e o escravo”, um Vinicius de arrasadora inspiração social começava assim:
Era ele que erguia casas
Onde antes só havia chão.
Como um pássaro sem asas
Ele subia com as casas
Que lhe brotavam da mão.
Mas tudo desconhecia
De sua grande missão:
Não sabia, por exemplo
Que a casa de um homem é um templo
Um templo sem religião
Como tampouco sabia
Que a casa que ele fazia
Sendo a sua liberdade
Era a sua escravidão.
[…] Mas ele desconhecia
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
De forma que, certo dia
À mesa, ao cortar o pão
O operário foi tomado
De uma súbita emoção
Ao constatar assombrado
Que tudo naquela mesa
— Garrafa, prato, facão —
Era ele quem os fazia
Ele, um humilde operário,
Um operário em construção. […]
Vinicius talvez não soubesse, mas intuiu, com um toque de gênio, que o país estava acertando seus ponteiros com a história. Começava a “era JK” e o ambiente tornou-se favorável ao arejamento das ideias, ao desenvolvimento industrial, ao otimismo e à modernidade em todas as suas manifestações. O deserto do planalto central brasileiro foi redesenhado nas curvas criadas por Oscar Niemeyer e Lúcio Costa para a nova capital, Brasília. É verdade também que os brasileiros, já pilotando seus fuscas e vemaguetes de fabricação nacional, ainda se eletrizavam com o vozeirão de Cauby Peixoto, em Conceição, e o de Ângela Maria, em Babalu.
Mas também subiram ao palco, sem nunca mais sair dele, os sussurros de João Gilberto na gravação de Chega de saudade, de Vinicius e Tom (1958). Alguns livros lançados na época já nasceram clássicos, como Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa, e História geral da civilização brasileira, de Sérgio Buarque de Holanda. O teatro foi remodelado com o Pagador de promessas, de Dias Gomes, e na versão de Anselmo Duarte tornou-se o único filme brasileiro a ganhar a Palma de Ouro no Festival de Cannes. Como se não bastasse, o pugilista Eder Jofre, a tenista Maria Ester Bueno e o atleta de salto triplo Ademar Ferreira da Silva sagraram-se campeões mundiais — sem falar da glória máxima, a primeira Copa do Mundo ganha pela seleção de futebol.
No meio de tanto Brasil brasileiro, Vinicius ficou mais uma vez animado para pegar as trouxas e, modernamente, constituir novo lar. Embora comprometido com Jobim, queria casar também, de verdade, com Lúcia Proença. Era uma lembrança antiga, sobrinha de seu parceiro de elucubrações metafísicas Octavio de Faria. Conhecia-a desde que ela tinha 15 anos em Paris e o poeta andava por lá. Reencontrou-a nos ensaios de Orfeu, ela casada, e de novo em Paris, enquanto esperavam furtivamente que seus respectivos cônjuges chegassem à cidade.
Ao saber disso, um cronista de música e conhecedor do currículo do poeta previu, certeiramente: “Vem fase nova aí”.
Vinicius promoveu uma faxina estética nas letras da música popular brasileira © Site VM / Reprodução
A nova fase não incluía necessariamente os periódicos casamentos de Vinicius, que se repetiam monotonamente entre juras de amor, mas na faxina estética que ele fez nas letras da música popular brasileira, que até então eram quase um chororô só. Nelas, as mulheres apareciam como as abominações dos poemas de Baudelaire, só que agora malvestidas, mesquinhas, rancorosas — e ainda por cima falando português. O amor era uma peste e a mulher o vírus que o transmitia, como não se cansaram de repetir Lupicínio Rodrigues, Nelson Gonçalves, Tito Madi, Anísio Silva e até Dolores Duran. Por cavalheirismo, tem a palavra em primeiro lugar a mulher, em sua defesa e também porque tinha o que prantear. Disse Dolores em Castigo: “A gente briga/ Diz tantas coisas que não quer dizer/ Briga pensando que não vai sofrer/ Que não faz mal se tudo terminar. […] Você se lembra/ Foi isso mesmo que se deu comigo/ Eu tive orgulho e tenho por castigo/ A vida inteira pra me arrepender/ Se eu soubesse/ Naquele dia o que eu sei agora/ Eu não seria essa mulher que chora/ Eu não teria perdido você”.
Agora é a vez dos cavalheiros, todos reunidos numa espécie de hino nacional sobre a dor de cotovelo, na criação de Antônio Maria — ninguém me ama, ninguém me quer, de muitos desdobramentos. Comparou-se o amor, por exemplo, a uma agenda morta, na descrição de Ary Barroso: “Risque meu nome do teu caderno/ Pois não suporto o inferno/ Do nosso amor fracassado”. O abandono e traição geravam maldições assassinas por parte da abandonada, como Lupicínio rugiu em Vingança: “Eu gostei tanto/ Tanto quando me contaram/ Que lhe encontraram chorando e bebendo na mesa de um bar/ E que quando os amigos do peito por mim perguntaram/ Um soluço cortou sua voz/ Não lhe deixou falar. […] Mas enquanto houver força em meu peito/ Eu não quero mais nada/ E pra todos os santos vingança, vingança clamar/ Ela há de rolar como as pedras que rolam na estrada/ Sem ter nunca um cantinho de seu/ pra poder descansar”.
Caramba!, pode ter pensado o adúltero amante Vinicius, tão múltiplo e cercado por amigos na mesa de um bar, temendo o pior, como rolar feito pedras na estrada. Mas ele mesmo frequentava aqueles ambientes malsãos das letras da música popular. O primeiro samba dele, Quando tu passas por mim, gravado por Doris Monteiro e Aracy de Almeida, falava de “saudades cruéis” e lamentava:
[…] E eu que só fiz te adorar
E de tanto te amar penei
mágoas sem fim
Hoje nem olho pra trás
Quando tu passas por mim.
E como a vida passa! — e só serve para passar, chamando-se a isso passatempo. Tom Jobim é o autor desse pensamento misterioso, que transmitiu a Vinicius, mas ele de certa forma já sabia disso e não demonstrou inveja. Pela vida do poeta estava passando Lucinha Proença e, de novo Paris — “fase nova”. Pontualmente, ela ganhou seu presente rimado, no Soneto da mulher ao sol:
Uma linda mulher com os seios em repouso
Nua e quente de sol —
eis tudo o que eu preciso
O ventre terso, o pelo úmido e um sorriso
À flor dos lábios entreabertos para o gozo.
Pontualmente também se separaram depois de cinco anos, em Paris e Montevidéu, terceira e última missão diplomática dele. Aparecera mais uma “fase nova”, encarnada por Nelita de Abreu Rocha, noiva, de 20 anos, e o pretendente multicasado, de 50. O robusto dinossauro resistia, na sua luta nas camas, mas evoluíra muito, pelo menos literariamente. Tornara-se mais leve, quase feliz. Em 1963, ele tinha uns versos na cabeça, herdados de outros tempos, e que começavam assim (o leitor tente agora cantá-los com a melodia de uma das canções mais populares do mundo):
Vinha cansado de tudo
De tantos caminhos
Tão sem poesia
Tão sem passarinhos
Com medo da vida
Com medo do amor.
Pois foi quando viu passar outra encarnação de modernidade diante dos seus olhos, num episódio que de tão conhecido se tornou clássico. Bebendo com o parceiro no bar Veloso, na rua Montenegro, em Ipanema, ele fixou seus olhos sempre ocultos por lentes escuras no perfil de Heloísa Eneida Menezes Paes Pinto, de 15 anos, rumo à praia. Mesmo com o monóxido de carbono dos ônibus e carros despejados ali, o poeta respirou melhor. Teria comunicado a Tom sua sensação, nestes termos:
— Você notou que quando ela passa o ar fica mais volátil? Acho que nem os egípcios, nem o próprio Einstein, saberiam explicar por quê.
Tom não tinha resposta. Achavam que aquela visão e aquela sensação atmosférica davam música, mas ela não nasceu ali na hora, na mesa do Veloso, como se divulgou. Foi composta separadamente, cada um dos parceiros em sua casa. Deu-se então uma metamorfose. E os versos de Vinicius, “cansado de tudo”, reapareceram colados na música de Tom depois de uma plástica fora do comum. É só trocar agora as palavras do antigo Vinicius com as do novo, na melodia de Garota de Ipanema:
Olha que coisa mais linda
Mais cheia de graça
É ela menina que vem e que passa
Num doce balanço
A caminho do mar
Heloísa, depois de casada Helô Pinheiro, é famosa por esse episódio até hoje, mas por incrível que pareça não foi namorada do poeta. Na época, ele estava mais interessado em escapar do noivo de Nelita, que praticava tiro ao alvo. Vinicius tentava se reaproximar de Lúcia, que enjoou de tanto vê-lo beber, e ao ser recusado convenceu Nelita a ir com ele para Paris, onde mais um posto diplomático o aguardava. Praticamente raptou a nova amada, escondido da família dela, que se conformou e depois publicou um anúncio de jornal comunicando o enlace. Como presente de núpcias a jovem Nelita ganhou as joias que ele sempre dava, chamadas desta vez Na esperança dos teus olhos, suspirantes no começo:
Eu ouvi no meu silêncio
o prenúncio de teus passos
Penetrando lentamente
as solidões da minha espera
E tu eras, Coisa Linda,
me chegando dos espaços
Como a vinda impressentida
de uma nova primavera
E suplicantes no desfecho:
E é por isso que eu te peço:
resta um pouco em minha vida
Que meus deuses estão mortos,
minhas musas estão findas
E de ti eu só quisera fosses
minha primavera
E só espero, Coisa Linda,
dar-te muitas coisas lindas…
Nelita era uma menina e vivia repetindo isso a Vinicius, que a mandava levar roupas às lavanderias e cuidar das atividades domésticas em geral. Ela o abandonou quando voltaram ao Brasil, em 1968, e quando ele foi aposentado logo depois no Itamaraty os amigos previram “nova fase” — dessa vez, má. Mas ela não aconteceu. Vinicius continuou trabalhando e os anos piores da ditadura militar encheram sua cabeça de projetos. Bolou um filme que seria a adaptação do Dom Quixote, de Cervantes, passado no Nordeste, com João Gilberto no papel-título, Grande Otelo como Sancho Pança e direção de Glauber Rocha (não foi feito, naturalmente, mas só a ideia já era uma obra-prima de delírio de poeta).
Traduziu para o francês as legendas de Deus e o diabo na terra do sol, quando o filme passou em Cannes, e o diretor Glauber achou o máximo, “muito mais cheio de poesia do que eu escrevi”, como disse. Desde o começo dos anos 1960, quando timidamente se aventurou como cantor num show de bossa nova na Faculdade de Arquitetura do Rio, conquistara mais um espaço. Naquela época o Itamaraty o obrigava a apresentar-se de terno e gravata, não beber em cena e não receber cachê, mas depois tudo isso mudou e ele passou a até a usar sapatos sem meias.
Careca, barrigudo e de barba grisalha, Vinicius tomou conta do novo palco iluminado, encarando com bom humor o papel de hippie mais velho do Brasil, como o chamavam. Já dono de um volumoso currículo com Jobim (cinquenta canções), Baden Powell (quarenta), Carlos Lyra (trinta) e Edu Lobo (vinte), além de Pixinguinha, Ary Barroso e outros, consolidou novas parcerias com Chico Buarque, Francis Hime e Toquinho, com quem dividiu a autoria de quase uma centena de composições. Sentia-se tão à vontade como showman que até nos banheiros tinha disposição para criar, como escreveu num papel higiênico, em Salvador, e deu de presente a Hime:
No mundo vale teu pique
É da vida que fica
Não há pique que fique
Sem o pique de uma pica
O poeta estava cada vez mais impossível.
Com Gesse Gessy, que se irritava ao vê-lo sempre de copo na mão: “Eu pego este velho!” © Site VM / Reprodução
E continuava casando, naturalmente, e fiel a interesses antigos.
Ele conhecera a futura jornalista Cristina Gurjão quando ela era adolescente, assediou-a, foi repelido com uma guarda-chuvada e muitos anos depois reencontrou-a no trem noturno Rio-São Paulo. Dividiram uma cabine e o inevitável aconteceu. Ela tinha três filhos, era independente e se amaram muito. Nasceu Maria, a quinta e última filha do poeta, que quando ia a São Paulo namorava escondido a cantora Neusa Borges.
Cristina estava grávida, chamou-o de “canalha” e bateu nele com castiçais, ameaçando: “Eu vou te matar!”. Ele fugiu da cena do crime, com sangue escorrendo pelo rosto, e depois foi morar na Bahia com uma atriz iniciante, que tinha nome de anúncio, Gesse Gessy, 26 anos mais nova. Eles se amaram muito. Deixou o que lhe restava da cabeleira branca escorrer até os ombros.
Casou-se com ela no candomblé, numa cerimônia abençoada pelos santos e apadrinhada por Jorge Amado e Zélia Gattai, quando cortaram os pulsos para misturar seus sangues. Gesse administrou bem os ganhos do marido e dizem que até o incentivou a arrumar outras parceiras, desde que as dividisse com ela. Tudo ia muito bem, sob sol e coqueiros, quando os dois passaram a se estranhar. Vinicius reclamava das instalações da casa, banheiras e vasos sanitários, principalmente, e se entediava. Gesse se irritava ao vê-lo sempre de copo na mão, pedia que ele parasse e ele tomava mais um. Corria atrás dele pelo jardim da casa, com um tamanco numa mão e uma vassoura na outra, gritando: “Eu pego este velho!”.
Vinicius foi salvo da maldição dos orixás e da baianidade mandando muitos beijos a Gesse e gerentes de banco agradecendo a atenção dispensada, mas queria dar o fora. Iria correr o mundo, começando pelo Rio, desde que Marília e Toquinho o tiraram daquele paraíso tropical besuntado de rancores e óleo de dendê. Fizeram juntos uma temporada de shows que lotou durante nove meses o Canecão no Rio. Depois o trio se apresentou em São Paulo. Era só o começo.
O produtor italiano Sergio Bardotti arrumou-lhes uma carreira internacional que rendeu cerca de mil shows na Itália, Portugal, Argentina e Uruguai. Lá conheceu, num show em Punta del Este, Marta Rodriguez Santamaría, a Martita — e se casou de novo. Ela era 39 anos mais nova, estudante de direito e poetisa amadora. Apresentou-se no camarim do poeta como “uma fã”. Ele a convidou para visitar o Brasil, para acompanhar suas viagens pelo interior, e ela veio, rabiscando poemas, como este, intitulado A Vinicius: “Te propongo caminar/ Por el borde de la noche hasta el alba”. Gesse não sabia dessa proposta, embora ainda acompanhasse o marido nas excursões. Martita e Vinicius ficaram juntos dois anos e dizem que ela nunca entendeu o que se passara entre eles. Mais uma vez foi eterno enquanto durou.
©Carlos Scliar
O poeta voava de Paris para o Rio, em outubro de 1979, e ao seu lado, na primeira classe, estava Gilda Mattoso, sua nova mulher. Ela era produtora cultural, quarenta anos mais nova, e em terra ele costumava apresentá-la aos amigos com uma frase de humor macabro: “Esta é Gilda, minha viúva”. Voltavam de uma temporada europeia de triste lembrança.
Na Itália, ele vivia cansado, com sono, e urinava nas calças. Confundia cidades italianas com francesas e Gilda levou-o a consultórios médicos, onde aconselharam que voltassem para o Brasil. Com imenso mau humor, Vinicius embarcou no avião em Paris, em cadeira de rodas, pois não conseguia andar. A bordo decidiu comemorar com uma taça de champanhe, mas errava o alvo quando tentava levá-la da mão à boca. Levantou-se, com a camisa molhada de champanhe, para encontrar Chico Buarque, que deveria estar alguns assentos atrás, mas o autor de Trocando em miúdos não estava a bordo. Voltou e tentou comer, com a boca repuxada, derramando a comida na roupa. Desembarcou no Galeão em cadeira de rodas e foi direto para a Clínica São Vicente e de lá para casa, depois que o atenderam. O acidente no avião repetiu-se em 1980 e Vinicius foi operado.
Dez meses depois, ele depositou-se na banheira, cercado de tudo o que mais amava — livros, papéis para anotações, telefone, uísque e copos de gelo —, e de lá só saiu nos braços de Gilda e Toquinho. Não havia nada escrito nos papéis que levara para o último mergulho. Seu testamento havia sido publicado muitos anos antes, em alguns dos mais luminosos versos da língua, sob o título simples de Poética:
De manhã escureço
De dia tardo
De tarde anoiteço
De noite ardo.
A oeste a morte
Contra quem vivo
Do sul cativo
O este é meu norte.
Outros que contem
Passo por passo:
Eu morro ontem
Nasço amanhã
Ando onde há espaço:
— Meu tempo é quando.
Publicado como suplemento especial em A Revista, da gráfica Takano