Para uma vasta fatia do público brasileiro, Chico Buarque de Hollanda vem mostrando que gosta mesmo de variar de cardápio. Está compondo ao mesmo tempo a música de dois filmes, Joana, a francesa e Vai trabalhar vagabundo. Sua nova peça, Calabar, feita em parceria com o cineasta Ruy Guerra, começa a ser ensaiada tão logo a Censura libere seu texto e sua canções sobre o mais célebre traidor da história do Brasil. Tem cantado em lugares tão diferentes quanto Ouro Preto e Buenos Aires e obtido expressivas vitórias nos gramados junto com seu time Mambembe Futebol Clube. Mal acabara de estrear como artista de cinema em Quando o Carnaval chegar, recebeu o convite para trabalhar no novo filme do veterano Humberto Mauro. Traduziu as letras de O homem de la Mancha. Abriu uma exceção no seu autoexílio da TV e participou, pela primeira vez em cinco anos, de um programa especial de hora e meia que será transmitido este mês pelo canal 13 de São Paulo. Planejou no seu apartamento um jogo chamado O pequeno arquiteto, que pretende patentear. E tem se empenhado num áspero corpo a corpo com a Censura.
Dessa luta nasceram os rumores que pairam sobre sua infatigável maratona por cidades brasileiras e trocas cabalísticas em algumas de suas letras: o “brasileiro”, de Partido alto, por exemplo, virou “batuqueiro”, e uma “titica” teve de contentar-se em ser “coisica”. Esse é o lado mais ruidoso dos novos papéis de Chico Buarque, mas existem outros. Desde que se encontrou com Caetano Veloso num palco em Salvador, em novembro do ano passado, tornou-se possível ouvir sua voz, no seu registro de violoncelo e timbre de sax barítono, escalar agudos antes teimosamente abafados. Enfim, diante das letras de Construção, seu último LP, de 1971, e de outras mais recentes, professores universitários passaram a sentir a necessidade de redesenhar o perfil do poeta. Ele teria atingido, no meio do fogo de uma atividade sem pausas, a dignidade estética de um artista adulto e a respeitabilidade moral de um corajoso. Nada mau, para um moço de 28 anos e sete de carreira.
Gol de letra: em entrevista para a Veja, em 1979, Chico mostra a Mayrink e à repórter Regina Echeverria como se bate na bola ©Irmo Celso
Os variados personagens interpretados nos últimos meses por Chico Buarque são, pela intensidade com que atingem o público, necessariamente contraditórios. Muitos de seus admiradores preferem ainda o Chico de outros tempos, menos elaborado, feliz com sua Joana debaixo do braço, carregadinha de amor. Para um reitor em Minas, suas palavras nada tinham de talentosas ou corajosas, classificando-as publicamente como a expressão de um bêbado e um imoral. Os censores, talvez excessivamente exasperados por alguns casos isolados, não lhe dão tréguas. Assim, cinco anos depois de ter escrito e vomitado a peça Roda viva, em que manifestava seu cansaço e irritação pelo fato de ser um ídolo do qual todos tudo esperam, ele está mais uma vez numa roda-viva de trabalho, receios e angústias. Como em 1968, é um ídolo – e, de novo, muitos esperam que ele seja e faça tudo.
Ao longo de sua visita a algumas capitais e muitas cidades do interior – até agora dezoito em São Paulo e cinco em Minas –, Chico encontrou esse seu público, tenso pelos boatos e espremido nas quadras de esportes ou nos auditórios das faculdades. Em algumas dessas cidades o interesse ultrapassou espetacularmente o âmbito estudantil. Em Tupã, com 50 mil habitantes, a 500 quilômetros de São Paulo, 2 mil pessoas viram seu espetáculo, o que equivale a 4% de toda a população. Boa parte desses 2 mil, 3 mil, 4 mil jovens por cidade era ginasiana quando A banda passou como um furacão pela vida dos brasileiros; estava vendo Chico pela primeira vez. O que esperava ouvir essa massa ansiosa, responsável pela mais recente galinha dos ovos de ouro do show business brasileiro – os circuitos universitários – e atenta às notícias de que algo perigoso e proibido estaria saindo da boca do cantor?
Qualquer que fosse sua esperança, ela teve que se contentar em ouvir o que Chico Buarque já lhe havia transmitido antes em discos, dos primeiros e líricos suspiros de sua carreira até os atuais e mais carregados momentos de maturidade. Os aplausos invariáveis e a precisão com que eles quase sempre se repetiam, na cidade seguinte, revelam que o cantor não decepcionou ninguém, nem mesmo os censores. Numa pontualidade igualmente precisa, eles cercavam os espetáculos de um aparato só dispensável às manifestações proibidas. Seria tudo por causa de um samba e dois ou três versos? Ou pela torrente de mal-entendidos dos quais a linguagem, segundo muitos acreditam, é a principal fonte?
O samba Apesar de você, proibido há dois anos, depois de tocar e vender fartamente em rádios e em lojas, e os mal-entendidos, vêm se amontoando no saco sem fundo das relações entre artistas e censores. Apesar de você tornou-se, depois de proibido, o desaforo preferido das plateias contra os censores: é praticamente impossível impedir que o público, mesmo desestimulado pelo silêncio do autor, comece a cantá-lo quando lhe dá vontade. É uma das músicas mais simples de Chico – “Apesar de você/ Amanhã há de ser/ Outro dia” – e praticamente inexpressiva diante das criações da fase atual, mas tem conseguido fazer tanto barulho quanto a finada Pra não dizer que não falei das flores, ou Caminhando, com a qual Geraldo Vandré provocou fúria e paixões em 1968, antes de ser também proibida.
Naquele ano, tornou-se agitado, pela última vez, o debate sobre os rumos da chamada “canção de protesto”, uma das tradições da música popular brasileira desde que o primeiro samba gravado, Pelo telefone (1917), brincava com o chefe de polícia que telefonicamente proibira a jogatina no Rio. A euforia de protestos de 1968, em graus variados de sutileza, das músicas de Vandré e Sérgio Ricardo (Dia da graça) à de Caetano Veloso e Gilberto Gil (Divino maravilhoso), reforçava já então muitos mal-entendidos de linguagem.
Alguns músicos sustentavam que esse tipo de manifestação vive num beco sem saída: se é ruim, não pode esperar atingir objetivo algum; se é boa, é bela e, portanto, distrai o ouvinte da gravidade da situação apresentada. Outros mais radicais, desesperançados, chegavam a propor uma “desordem total”, de letra e música, como arma para irritar o público e assim – sabem suas musas inspiradoras como – expelir seu protesto.
De qualquer forma, os ouvidos de 1968 – como muitos de 1973 – pareciam dispostos a escutar mais do que na verdade lhes será cantado. Jamais se descobriu, no meio século anterior de música brasileira, intenções ocultas em sambas como Tenha pena de mim, de 1938 (“Trabalho/ E não tenho nada/ Não saio do miserê /Ai, ai, meu Deus!”) ou Pedreiro Waldemar, de 1949, a história do operário que “faz tanta casa e não tem casa pra morar”. Espontâneas, elas diziam exatamente isso. Já o “Você” de Chico Buarque oculta todo um elenco de possibilidades: “Você é a mulher da qual não se gosta mais, é o senhorio, é um inimigo, é, enfim, tudo”. A linguagem, de tanto cultivar os mal-entendidos, teria enfim se tornado realmente perigosa?
Muitos acreditam que sim. E, se essa metamorfose é possível, então Chico Buarque deveria ser o principal artífice do parto, com sua tradição de poeta culto e cultivado e, além disso, ajudado pela imagem de ser “o produto artístico mais fácil de vender no Brasil”, segundo seu ex-empresário Roberto Colossi. Acrescentem-se a isso os seus mitológicos olhos verdes, a imagem do pai de família com duas filhas, o sorriso franco, o ar desajeitado em cena e uma timidez que, mesmo inexistente, parece real. Está pronto o herói ou vilão, dependendo do ângulo.
As peripécias mais recentes da carreira de Chico confirmam essas ilusões de óptica. Muitos espectadores de seus shows encaminham-lhe bilhetes patéticos e comovidos, reafirmam sua esperança pelas músicas que escutam. Seu apartamento, no Rio, costuma ser invadido por estudantes que querem ouvir suas palavras, travando-se, então, o duelo de silêncios: nem eles sabem exatamente o que querem ouvir e muito menos o dono da casa tem ideia do que deve dizer nessas ocasiões. A crença é tão forte, de ambos os lados da fronteira entre dois tipos de ouvintes, que doze policiais à paisana se entrincheiraram nos bastidores e camarins do Tuca (Teatro da Universidade Católica), em São Paulo, no mês passado, com os resultados previsíveis: provocações, humilhações, ameaças.
Assim, confrontavam-se nesse incidente, com o cantor e seus músicos no meio, os dois públicos de Chico Buarque: o que canta sem querer ouvi-lo e o que ouve sem querer cantá-lo. As fantasiosas esperas de ambos fazem, cada uma à sua maneira, o sinal de mais um mal-entendido sobre o trabalho de um poeta-cantor que vem afinando e apurando cada vez mais seus instrumentos de trabalho, o verso e a música. Filho de um historiador, Sérgio Buarque de Hollanda, irmão de uma boa violonista, Heloísa (mulher de João Gilberto) e sobrinho-neto de um maestro, com pais e mãe tocando piano em casa, deixou um meio familiar liberal e economicamente seguro para construir uma obra onde muitos veem a marca da marginalidade.
Em família: Chico toca para seu ídolo e cunhado, João Gilberto, sob o olhar da irmã Miúcha ©Acervo Miúcha e David Drew Zingg/ Reprodução
Contam histórias fantásticas do Chico Buarque desses tempos. Ele teria se disfarçado de cego cantador na Bahia para pedir esmola. Ele teria improvisado o samba Fica (“Diz que eu sou subversivo/ Um elemento ativo/ Feroz e nocivo/ Ao bem-estar comum”), num bar, em 1964, ameaçado por perigos bem mais reais do que os de hoje: os revólveres de sua facção contrária na faculdade de arquitetura e urbanismo. E teria inventado uma arrojada forma de ganhar dinheiro em Santos, para onde ia com amigos nos fins de semana, no carro do pai. Dois deles convenciam garotas a colaborar como modelos, enquanto Chico cantava para elas de improviso e um outro pintava o retrato da cliente. Tudo, tela e música, custava apenas 500 cruzeiros velhos.
Naquela época, tinha o apelido de “Carioca” e já compunha músicas, tocando um violão torto e mal aprendido de sua irmã. Seu primeiro sucesso, hoje renegado por ele, chamava-se Marcha para um dia de sol, ou Marcha para João XXIII, de perdida memória, onde dizia: “Eu quero ver um dia/ Nascer sorrindo/ E toda a gente/ Sorrir com o dia/ Com alegria/ Do sol do mar/ Criança brincando/ Mulher a cantar”. Semelhantes composições lhe trariam problemas em casa. “As músicas dele eram muito ruins”, lembra a mãe, dona Maria Amélia. Ela tentava desencorajá-lo, insistindo na faculdade, que Chico abandonaria antes do fim do curso, com uma certa tristeza: ainda hoje gosta de arquitetura, embora, quando estudante, fosse constantemente mordido pela régua T. A mãe só começou a levá-lo a sério quando saiu a música de Morte e vida severina, o auto nordestino de João Cabral de Mello Neto que o Tuca apresentou em 1965 e 1966 com um sucesso incomparável. Outra lembrança da mãe: “Eu acho que a vocação dele era mesmo ser cantor de rádio. Agora, o que acontece é que desde pequeno ele detestou ser proibido. E só tem medo mesmo é de avião”.
Encenação de Morte e Vida Severina, em 1967 ©Acervo Estadão
A família, enfim, mobilizou-se para Morte e vida severina. Intimidado, Chico aceitava o socorro das irmãs, que o ajudavam gravando tudo que compunha, e em um mês fez doze músicas. Participou de todos os momentos dos ensaios – entre o elenco, coro e músicos – e era brincalhão, divertido e inseguro. Chegava tenso com suas músicas e só ria quando todos elogiavam. Na época da estreia da peça andava tendo sonhos ruins: a plateia jogava tomates e ovos no elenco, sob vaia geral. Seria, na vida real, amplamente recompensado. A plateia não apenas aplaudiu ao máximo como João Cabral, anos depois, faria uma revelação: disse que cada poema contém oculta sua própria música, e Chico descobrira a de Morte e vida severina, acertando a tal ponto na descoberta que o próprio autor só passou a se lembrar do que escrevera entoando as canções incorporadas aos versos.
Eram os primeiros giros da roda-viva. No dia 21 de dezembro de 1965, em Campinas, Chico subiu ao palco pela primeira vez como profissional (por 50 mil cruzeiros) e cantou Pedro pedreiro, uma estranha, obsessiva e flexível construção de música e letra que soou como um chiado inesperado entre os últimos “foinhón-foinhón” da bossa nova e os nascentes gritos de guerra de Opinião e de Carcará, a ave admirável que não passa fome, “pega, mata e come”. As primeiras notícias sobre o recém-chegado entraram no Rio logo no começo de 1966 e, no mesmo ano, através da Banda (300 mil cópias vendidas em várias gravações, mais de 1 milhão no exterior), espalharam-se por todo o país. No Rio, um grupo de artistas privilegiados que conheciam a nova revelação procurava as redações dos jornais e, meio sem jeito, pedia para que seu nome fosse publicado, numa operação que nunca mais foi repetida.
Nos seis anos seguintes, Chico Buarque de Hollanda viveu todos os estados que a fama traz, a imprensa divulga e o público consome. Sua produção não cessava e, embora ele mesmo a considere modesta (segundo suas contas, a média até hoje não ultrapassa uma música por mês), mantinha um índice tão elevado de sucessos que surgiu a inevitável comparação com Noel Rosa. A honra final veio ainda em 1966: em novembro, com 22 anos e trinta músicas, só algumas gravadas, ele se transformou no mais jovem depoente do Museu da Imagem e do Som, que registra em vida a voz das futuras legendas.
Como era possível? Segundo alguns críticos, Chico entrou na música brasileira pela porta mais escancarada e, ao mesmo tempo, relativamente pouco visitada: a música popular urbana, com a qual Noel Rosa e muitos outros brilharam nos anos 1930 e que nos anos 1950 e 1960 havia sido cultivada por uns poucos, de Billy Blanco a Juca Chaves. Assim, na babel de ritmos e intenções da época, com seu samba jazzificado, o afro-samba, as canções nordestinas e praieiras, o samba de morro e os pontos de macumba, toadas, baiões e frevos, Chico começou a falar a sua linguagem de cidade, lírica e confessional, “cantando coisas de amor”, já que estava “à toa na vida”. Naquele tempo ele tornou-se cidadão honorário de muitas câmaras municipais. O país tinha, enfim, o seu cantor de integração nacional. Não era o herói, mas o trovador da corte.
Esse prestígio sem manchas sofreria, porém, de graves crises de trevas, primeiro quando a escandalosa peça Roda viva, escrita por Chico e incendiada pelo diretor José Celso Martinez Corrêa, provocou incidentes violentos com o público (em São Paulo, terroristas de direita invadiram o teatro e espancaram o elenco). José Celso queria nada menos que servir à plateia “os olhos verdes do Chico boiando como dois ovos numa posta de fígado cru”. Muitos não acreditaram nas declarações de Chico confessando-se responsável pela peça: “Só pode ser coisa do Zé Celso”, diziam, lembrando que um ano antes ele dirigira um brilhante e também provocativo Rei da vela. Depois, jogado no teste artificial do confronto com a música, dos tropicalistas Caetano Veloso e Gilberto Gil, passou a ser identificado como algo do passado, antigo como suas Carolinas, de olhos fundos e Januárias nas janelas, embaladas por doces sabiás.
Enfim, viveu um ano e meio na Itália, onde achou trabalho regular, mas hoje, fazendo as contas, ele relembra sem saudade: “Não fazia nada, não entendia nada, não ganhei nada”. Em declarações à extinta revista O Bondinho, em 1971, numa entrevista que custaria a ele e aos editores da revista várias explicações à Censura, reafirmava seu horror em deixar o Brasil: “Na Europa é tudo tão velho, tudo tão…”. Suas palavras de então formavam um rosário de acusações. Em setembro de 1971, dizia que, de cada três músicas que mandava para a Censura, só uma era vetada. Em janeiro de 1972, a estatística piorava para o seu lado: duas em cada três eram proibidas. Era chamado quase todos os dias para dar explicações. Uma noite, enfim, tomou um pileque durante um show de Jorge Ben numa boate do Rio, e, chorando, foi ao microfone contar o que estava acontecendo. Desabafou: “Estou com um medo danado”.
A imagem dos primeiros tempos estava, portanto, perfeitamente pelo avesso. E ele já fizera uma música. Agora falando sério, em que dizia: “Dou um chute no lirismo/ Um pega no cachorro/ E um tiro no sabiá/ Dou um fora no violino/ Faço a mala e corro/ Pra não ver a banda passar”. Morto o cantador romântico que todas as mães do Brasil queriam para marido de suas filhas, nascia o cantor de aparência mais séria até no bigode e na tensão que mantém em cena, a mesma que, antes, era uma deliciosa timidez. No seu sétimo ano de carreira, ainda precisa de um uísque para entrar no palco, sempre assustado. Nesse momento não se preocupa nem com censores nem com adoradores. Primeiro, precisa estar atento em dirigir o rosto corretamente para o microfone, para que sua voz não suma. Segundo, deve procurar não se esquecer das letras. Só então procurará dizer “algo de útil” para a plateia.
Que coisas “úteis” seriam essas? E que recursos ele tem para dizê-las? “Gago” do violão, segundo uma fama antiga, ele continua pegando o instrumento em posição errada e tirando sons que não estimularam até agora nenhum estudioso de suas melodias. Se não for muito complicada, ele escreve uma música e confessa não sofrer por isso: “A música vem ou não vem”. Como, no entanto, conhece mais gramática e métrica do que teoria musical, as partes mais ricas de sua biografia artística vêm se concentrando na análise de versos e letras que ele escreve. A aceitação comum de que era “um novo Noel” não se mostra capaz de satisfazer a mais ninguém agora. Chico parece ter ultrapassado, de muito, as pretensões da maioria dos músicos, incluindo Caetano Veloso, o malabarista da palavra e do verso amado pelas vanguardas.
Essas preocupações chegaram aos recintos das universidades, e não apenas nos bancos dos alunos. O professor Affonso Romano de Sant’Anna, diretor do Departamento de Letras da PUC carioca, autor de um respeitado ensaio sobre Carlos Drummond de Andrade (Drummond: o gauche no tempo), publicou há duas semanas um extenso artigo no Jornal do Brasil para ressaltar a extrema coerência com que Chico trabalha. Segundo sua contagem, onze das doze músicas do primeiro LP de Chico e dez das doze do segundo têm como tema a própria música, o cantor e o ato de cantar: a “Rita” não teria levado apenas “seu sorriso, seu assunto, seu retrato, seu trapo” mas também “um bom disco de Noel”. Além de tudo, “deixou mudo o violão”. A mesma coisa, num outro exemplo, em Olê, olá: “Não chore ainda não/ Que eu tenho um violão/ E nós vamos cantar”. É cantando que se preenche o vazio deixado pela infelicidade. Trata-se, porém, de uma ilusão: essa felicidade está condenada a durar não mais que os três, quatro ou cinco minutos de uma canção. Por isso ele queria “E um samba tão imenso/ Que eu às vezes penso/ Que o próprio tempo/ Vai parar para ouvir”.
Segundo Sant’Anna, os marginais são constantes nas letras de Chico. “Juca”, por ser sambista, é tomado como “meliante” por um delegado. Em Meu refrão, confessa-se “sem compromisso, sem relógio e sem patrão”. E, em Bom conselho, ele revela, enfim, sua última arma para fazer ouvir o que não se quer ouvir: inverte ditados populares, causando um choque (“Aja duas vezes antes de pensar”, “Devagar é que não se vai longe”), para chegar a uma agressividade totalmente assumida pelos seus atos: “Eu semeio vento na minha cidade/ Vou pra rua e bebo a tempestade”.
Marcação cerrada: Mayrink no encalço de Chico, 1981 ©Pedro Martinelli
Essa inversão de ditados populares, com sua sabedoria tranquilamente aceita e adormecida, também é abordada por Mário Chamie, professor de teoria da comunicação na Escola Superior de Propaganda de São Paulo, num livro (A construção da linguagem popular: Chico Buarque de Hollanda) que será publicado no segundo semestre. Para Chamie, o próprio público de Chico foi apanhado de surpresa com a capacidade do poeta em traduzir seus anseios, desconfianças e angústias: “Ele é menos um ídolo e mais um intérprete de pontos de vista inarticulados”, afirma. Chico permite que o público seja coautor de suas músicas, ao propor versos intercambiáveis como os de Construção, em que a leitura de partes alternadas da letra muda o sentido da imagem, embora reforçando, tragicamente, a mesmice do destino do operário que “Se acabou no chão feito um pacote flácido/ Morreu na contramão atrapalhando o tráfego/ Morreu na contramão atrapalhando o sábado”. Segundo Chamie, a elaboração dessa e de outras letras recentes de Chico colocam-no no ponto mais alto da reflexão crítica da música brasileira: “Ele está dizendo aquilo que teríamos vontade de dizer, se interessados em dizer”.
Nos auditórios das faculdades, essa impressão parece seguramente confirmada e os dentes imponderáveis da roda-viva vão traçando, de novo, as trilhas que Chico Buarque terá que seguir num futuro próximo. Ele se sente envaidecido e ao mesmo tempo temeroso dessa sua poderosa influência. As centenas de quilômetros de estradas, percorridas em dois Opala, têm lhe rendido o bastante para os gastos de um ídolo (por apresentação, em média, tirando a parte dos outros músicos e técnicos, costumam sobrar 3 mil cruzeiros para ele) e, ao mesmo tempo, a cíclica vontade de “dar uma parada” que assalta as pessoas das quais se exige demais. Não tem mais pesadelos com plateias vaiando. Alguns de seus amigos, porém, contam que ele anda sonhando com perseguições e acorda sobressaltado no meio da noite. Anda cansado, com preguiça de ir ao cinema e teatro e sair de sua ampla cobertura na Lagoa, um ambiente cheio de plantas, quadros, gangorras e alguns jogos infantis.
O seu cotidiano carioca, que começa e termina invariavelmente tarde, é preenchido pelo futebol, pelos jogos, por suas duas filhas, Sílvia, de quatro anos, e Helena, de dois (um terceiro está a caminho), pela mulher, a atriz Marieta Severo, e pelas visitas de admiradores ou músicos como Gilberto Gil, com quem precisa preparar uma parceria para cantar em São Paulo, esta semana. “Depois a gente faz”, disseram em uníssono durante um primeiro encontro de três horas, num almoço.
É natural. Chico agora pode ter tudo, menos pressa, e vê sem amargura ou exaltação as marés de ascensão e queda impostas pela roda-viva. “Olha”, diz ele enquanto cofia o bigode, “eu posso enfrentar a Censura até um certo ponto porque sou um cara conhecido. Poderia fazer um LP inteiro só com músicas de amor, mas não tenho vontade. Uma porção de músicos novos fica soterrada com as proibições e ninguém se importa, porque ninguém os conhece. Eu posso fazer o que eu faço na medida em que sou conhecido. Agora… quando eu não fizer mais sucesso… quando o sucesso passar… bom, daí dane-se.”