Não foi exatamente o que se esperava. Mas, quem esperava o que de Caetano Veloso? Talvez tenha sido justamente o contrário: como se esperava tudo de Caetano Veloso, o que aconteceu no Teatro João Caetano, no Rio, a partir de sexta-feira da semana passada, foi exatamente como se queria. Então…
Então, antes de mais nada, Caetano Veloso entrou no palco flutuando como um mito, pronto para uma noite de glória. Na saída, nem ele nem a plateia tinham o direito de estar decepcionados. Aplaudido, exaltado, idolatrado, o Caetano Veloso de 1972 vestia uma modesta calça cor de areia, estilo “tomara que caia”, e um blusão Lee muito curto, desabotoado, com o umbigo de fora. Uma roupa no mínimo “diferente”, como a jardineira que usava ao desembarcar no Aeroporto do Galeão, terça-feira passada.
Então, Caetano Veloso ofereceu um demorado sorriso para a plateia, sentou num banquinho, pegou o violão e iniciou um dos mais extraordinários shows dos últimos tempos no Brasil.
Durante nove minutos e meio, cantou um clássico de João Gilberto, É só isso o meu baião, multiplicando o “blim, blim, blom” da antiga bossa nova até chegar fervendo ao final. Cantou depois um samba de Paulinho da Viola, Tudo se transformou. Alterou o ritmo da música, de repente, para encaixar uma frase de John Lennon, “The dream is over” (O sonho acabou). Entoou em seguida uma singela modinha no estilo nordestino, que num certo trecho repete longamente “preta, pretinha, preta, pretinha”. Em outro momento, dançou imitando Carmen Miranda. No fim, sambou junto com a plateia. Sempre sem dizer palavra alguma, seguindo ao pé da letra seu plano de só cantar o que lhe desse vontade. E, como sua vontade é imensa e ecumênica, durante mais de duas horas o público que lotou o João Caetano pôde escutar uma pequena síntese da música popular brasileira, segundo a interpretação e versão de Caetano Veloso, que colocou novas e quase sempre brilhantes roupagens em músicas conhecidas do público e apresentou também algumas de suas últimas novidades.
Sozinho ao violão ou acompanhado dos quatro músicos de seu conjunto, Caetano não fez distinção de ritmos ou de origens. Cantou músicas em inglês, uma de Chico Buarque de Hollanda (Cotidiano), outra de Zé do Norte (“E os oio da cobra verde/ Hoje foi que arreparei”), lembrou o célebre bolero Tu, solo tu, dirigiu a todo o povo brasileiro uma mensagem eloquente (“Eu agradeço/ Ao povo brasileiro/ Norte, centro, sul inteiro/ Onde reinou o baião”). E foi, certamente, o primeiro compositor a falar de si mesmo numa letra de música, de uma forma menos pedante que engraçada: “Caetano Veloso/ Que menino mais manhoso/ Que menino mais teimoso”. Na mesma letra, que parece permitir uma infinidade de variações, citou também seu companheiro da Bahia, do tropicalismo e de Londres: “Ninguém viu/ Que o cara mais genial do Brasil/ Se chama Gilberto Gil”. O “cara mais genial do Brasil”, no final do espetáculo, subiu ao palco, deu uma flor ao “menino mais manhoso”, sorriu também para a plateia e os dois, juntos como sempre, cantaram músicas de Caetano Veloso para este Carnaval.
Então era isso? Uma colagem? Um bazar? Um espetáculo sem nenhum brilho formal, até “quadrado”, seu palco iluminado por umas poucas luzes azuis e vermelhas? Para a plateia, acotovelada pelos corredores do teatro, talvez tenha sido uma surpresa. O show, tão variado, dava a impressão de querer sensibilizar a todos, desde os senhores e senhoras sentados nos melhores lugares até os meninos que se espalharam pelo chão ou que não conseguiram entrar, mas, mesmo assim, ouviram e viram Caetano cantar, quando ele foi ao seu camarim – da janela atendeu aos pedidos dos que estavam na rua. (Havia cerca de seiscentas pessoas, além dos 1.200 lugares do João Caetano, na primeira noite. Calcula-se uma renda total de 100 mil cruzeiros, somando-se o espetáculo de sexta com o de sábado e os dois de domingo. Pelo menos metade vai para Caetano.)
A força, a sinceridade, a riqueza do espetáculo podem ter atingido o objetivo de agradar indistintamente, mas antes de tudo ele representa finalmente a conjugação do compositor, do poeta, do cantor – do artista ansioso em se comunicar com o seu público. Aplaudido na entrada como um deus, Caetano Veloso saiu sob os aplausos que não se dedicam às divindades, mas aos artistas; e, acima de tudo, às pessoas de quem se gosta. No entanto, o espetáculo desmentiu e esfriou uma outra expectativa – e, nesse sentido, ele é duplamente extraordinário. Os que esperavam uma palavra de Caetano ouviram apenas a sua voz. Vão ter que encontrar o sentido de uma eventual mensagem estritamente na música que ele apresentou.
É onde se volta ao ponto de partida: uma parte da plateia, a ala mais fervorosa e ruidosa do deus de todos os tropicalismos, certamente esperava outra coisa. A história dessa expectativa, que enriquece ainda mais o mito Caetano Veloso, na verdade estava sendo escrita desde que ele deixou o Brasil, quase três anos atrás. E ganhou um capítulo novo no dia em que ele voltou, com o espetáculo já programado. É uma pequena e reveladora história de sonhos, esperanças, ansiedades e desejos de liderança de uma juventude dourada pelo sol e pelo otimismo, em confronto com as lembranças de outra juventude banhada e angustiada pelo pessimismo. Essa história pode começar, por exemplo, numa praia, neste verão.
Na luminosa terça-feira da semana passada, ardente nos seus 35 graus e semelhante a muitas outras deste verão carioca, um movimento mais ou menos incomum passou a ser notado, primeiro nas praias, depois nas calçadas, mais tarde nos bares e apartamentos. “O homem chegou”, anunciou um rapaz ao grupo aquartelado numa montanha de areia da praia de Ipanema. Erguido pelas máquinas que trabalham na construção de uma obra de esgotos na praia, esse morro – conhecido como “Monte da Gal”, “Dunas do Barato” ou “Hippielândia” – abriga todos os dias uma pequena multidão idêntica em gostos, costumes e programação social e muito unida pela ociosidade das férias escolares (muitos, na verdade, nem estudam). O anúncio da chegada do homem foi recebido com grande alegria entre seus discípulos. Mas trouxe também alguma preocupação. De tarde e de noite, os telefonemas e encontros se multiplicaram porque, se o homem chegara, era preciso, ao mesmo tempo, descobrir como ir até ele sem pagar os trinta, vinte ou quinze cruzeiros que o domínio capitalista estipulou como preços dos ingressos a serem pagos pelos adoradores. Procurava-se “quem conhece quem, onde está aquele amigo que tem um conhecido que tem grande intimidade com o baiano que tem acesso ao homem”.
Essas mesquinhas preocupações materiais, no entanto, não conseguiram perturbar o clima de fervor e expectativa que durante os dias seguintes movimentou boa parte da juventude carioca. Em cada dez conversas de praia ou de bar, durante toda a semana, pelo menos nove continham a palavra “loucura” para profetizar a reação que inevitavelmente explodiria no templo escolhido para o homem falar ao seu rebanho. Na quinta-feira, véspera do primeiro dos quatro espetáculos, quase todas as entradas já haviam sido vendidas ou reservadas. Muitos foram para o templo sabendo que teriam de lutar corpo a corpo pelo direito de entrar e que talvez acabassem ficando na rua. Mas ninguém precisa reclamar pelo sacrifício. O homem realmente estava lá. E nunca esteve tão bem, tão caloroso, tão comunicativo, tão em paz consigo mesmo e com seu público. Caetano Veloso, 29 anos, magro como nunca, 48 quilos, 1,69 metro, estava no templo para ocupar o seu lugar, o mesmo que abandonara em 1969, quando viajou revoltado e humilhado para a Inglaterra, e do qual ninguém, durante todo esse tempo, conseguiu se apoderar.
Esse magnetismo e essa liderança, exercidos a distância, permanecem um dos capítulos misteriosos dentro do show business brasileiro. Em vez de ser esquecido, Caetano Veloso passou a ser cada vez mais lembrado e, depois, exigido. Muitos dos que foram ouvi-lo no João Caetano jamais o haviam visto pessoalmente. Uma garota de dezesseis anos dizia: “Ele é exatamente como eu pensava”. E qual era a imagem que ela tinha de Caetano Veloso? “Assim mesmo, legal.”
“Legal”, sem dúvida. A moça, como muitos outros moços e moças, via no palco exatamente aquilo que gostaria de ver. “Legal”, para os um pouco mais velhos, era também rever a imagem de um artista que venceu, que chegou assim como quem não queria nada, cantou em programas de auditório, passou fome, brilhou em festivais, disputou (e ganhou) testes de memória musical na televisão, para depois ser aplaudido ou contestado com violência. Nesse tempo, quase quatro anos atrás, já era “legal” Caetano Veloso de roupas de plástico colorido, cantando, dançando e gritando ao som de guitarras elétricas. “Legal”, mais tarde, é o sujeito que escreveu Irene na prisão, lembrando a irmã mais nova e dizendo “eu quero ir, minha gente, eu não sou daqui”. É também o artista de sucesso que deixa o país de cabelos raspados, vai para uma terra estranha, aprende a compor em inglês e, como diz a contracapa de seu LP britânico, “não perdeu a alma ao trocar de língua”.
Ao descer no Brasil, terça-feira passada, Caetano Veloso declarou: “Eu estou legal”. Mas nem tudo parece muito legal em volta dele. Em primeiro lugar, o compositor Caetano Veloso, célebre pela quantidade de músicas que escuta e memoriza desde pequeno, não encontra agora muita coisa que o emocione, dentro ou fora do país. Acha alguns compositores “engraçados” (uma de suas palavras-chave atualmente, como “gênio” e “maravilhoso”) e permanece esperando algo tão importante como o primeiro disco de John Lennon sem os outros Beatles, Plastic Ono Band (proibido no Brasil). Em segundo lugar, não existe apenas Caetano Veloso. Existe, queira ele ou não, o caetanismo, ou o culto a um ídolo de quem o fiel sempre espera atitudes extraordinárias. Ele não está disposto a fazer coisas extraordinárias. Seu show, como ele mesmo diz, não pretende mais que ser o veículo para que cante as músicas de que gosta. Só isso. Deveria bastar. Mas, como além de Caetano existe o caetanismo, não basta. E é onde os aplausos gerais ao artista começam a desafinar.
Quatro anos atrás, quando o tropicalismo começava a ser reconhecido como o primeiro sinal de vida da música brasileira desde, pelo menos, a bossa nova (no começo dos anos 1960), o movimento trouxe não apenas novos conceitos musicais. Impôs também novos padrões de comportamento. O impacto da música de Caetano Veloso e Gilberto Gil sobre o público jovem tinha forte molho de contestação. Quando os dois começaram a usar roupas coloridas, deixaram crescer os cabelos e faziam no palco movimentos acrobáticos então considerados “muito loucos”, essa série de atitudes gerou um fenômeno de repetição em massa. E não somente os compositores que se orientavam musicalmente pelo tropicalismo, mas também a plateia, passaram todos a ser uma coisa só, um fictício “estado de espírito”. Era uma plateia rabugenta, quase tão desprezível, em termos de originalidade e sinceridade, quanto a outra que se opunha ao movimento. Escreveu na época um cronista de música: “Não adianta um débil mental pegar uma caixa de fósforo e batucar samba. Ele estará sendo apenas chato. Da mesma maneira, não adianta um débil mental pegar uma guitarra e deixar crescer os cabelos. Ele estará sendo ridículo”.
Embora as coisas não sejam, como de hábito, assim tão simples, alguns críticos veem no tropicalismo um movimento que fez mais mal do que bem à música brasileira. Certamente, fez bem a Caetano e Gil. Provavelmente, deixou muito órfãos, em plena primeira infância, quando os pais resolveram sair do país. O conjunto Os Mutantes é apontado como exemplo clássico. Visto a princípio como “um conjunto fantástico que o Caetano descobriu” depois de 1969, Os Mutantes passaram a ser apenas um conjunto que Caetano Veloso um dia descobriu, embora não precisasse.
O público, ao mesmo tempo, também ajuda a formar um ídolo, e a exigir dele que aja à sua imagem e semelhança. Os tropicalistas de 1968 exigiam contestação. Os caetanistas de 1972 querem contemplação. Os tropicalistas de 1968 faziam longos discursos e defendiam-se com teorias nem sempre exemplarmente claras. Os caetanistas de 1972 não têm teorias e expressam-se num vocabulário de meia dúzia de palavras: curtição, barato, incrível, descolar, bicho e, referindo-se ao estado de felicidade interna que querem atingir, desbundar.
A agitação pela chegada de Caetano Veloso, nos primeiros dias, parecia orientar-se justamente para esse estado. Mas que pistas teriam esses novos fãs para acreditar que Caetano Veloso seria o seu guru?
A intelectualidade ligeira da praia de Ipanema não fala mais de Godard, nem de psicanálise, nem do Cinema Novo, nem dos caminhos do marxismo ou dos rumos da literatura. “Na Montenegro ainda se fala dessas coisas”, diz um dos habitantes das “Dunas do Barato”, “mas aqui nós estamos noutra, muito melhor.” A “outra”, segundo esse habitante e a maioria dos que o acompanham na escalada diária das dunas: a música como sonoridade, a disponibilidade em relação à vida, as experiências pessoais, o aprendizado do corpo, a macrobiótica. E, acima de tudo, a vontade de não intelectualizar, e sim de fazer. São adolescentes, universitários, hippies, jornalistas com emprego fixo ou não, músicos. Em comum, entre eles, só parece existir um ponto: a compreensão da sua própria individualidade. Na terça-feira, nessa amostra em miniatura do que deve ser hoje o rebanho de Caetano Veloso, a notícia de sua vinda chegou a sufocar a conversa mais constante entre eles: seus planos de irem todos para a Bahia.
A notícia chegou a se insinuar como uma esperança. Seria o líder voltando para reunir seu povo e contar histórias, oferecer soluções definitivas para todos os problemas, iluminar as cabeças? As suas apresentações no Brasil servirão para reunir, pela primeira vez em um só local, todas as pessoas que optaram por um determinado jeito de viver? Ele dará o sinal de que chegou a hora de organizar um novo tipo de movimento político-social, mais calcado no comportamento que nas teorizações?
Debaixo do sol, essas perguntas foram surgindo sem atingir resposta alguma. Nenhuma delas passou pela cabeça de Luís Carlos Maciel, o colunista do Pasquim e diretor da nova revista de música Rolling Stone (que vai para as bancas nesta semana), antigo admirador de Caetano, de Gil e do tropicalismo. Diz ele: “Caetano chega para mostrar que não tem nada a dizer, nenhum caminho a indicar, nenhuma solução a mostrar. As suas opiniões estão nas suas músicas. Passamos a vida toda teorizando em torno da música de Carnaval, sua importância para a preservação da música brasileira em geral, papos desse tipo. Caetano não teoriza, ele faz. Um exemplo disso é esse disco de Carnaval, gravado em Londres (O Carnaval de Caetano, compacto duplo). O seu próprio comportamento deixa bem claras as suas intenções. Ou não intenções”.
O jornalista Torquato Neto, que fez as letras das músicas de Caetano Soy loco por ti, América e Mamãe coragem, entre outras, declara: “Vivemos três anos de estagnação. Não surgiu nada em lugar nenhum. Estava tudo parado. Não se criava nada. 1969 foi o ano de Luciana. Em 1970 tivemos uma BR-3. No final do ano passado, as coisas começaram a melhorar. Agora é a hora de dizer novamente chega. Uma nova linguagem está sendo descoberta. Um novo público está surgindo. Está todo mundo se organizando em torno da ideia geral da liberdade, em todos os níveis. É hora de voltar ao trabalho de criação”. E, dirigindo-se a um certo tipo de caetanismo de hoje, Torquato Neto adverte: “Quem quiser ficar curtindo, que curta. Mas a hora é de ficar ligado nas coisas, dar o recado, a sugestão, o toque. Caetano surge mais como uma afirmação desse estado de espírito, dessa alegria, dessa disposição para a vida”.
Existe de novo, portanto, o célebre “estado de espírito”.
Caetano Veloso encarnará realmente essa nova era? Ele próprio acha que não: “Eu não quero assumir nenhum tipo de liderança. Quero só cantar as minhas músicas, para as pessoas verem que continuamos cantando e trabalhando. Não existe mais nenhuma esperança de organizar as pessoas em torno de um ideal comum”.
No entanto, ele já falou como uma espécie de pastor. Em 1968, no auge da explosão do tropicalismo, dizia Caetano Veloso aos seus discípulos: “É preciso entrar em todas as estruturas. E sair de todas”. No mesmo ano, qual um Moisés enfurecido, ele bramia insultos contra a plateia que o vaiava na apresentação de É proibido proibir. E perguntava, num desafio: “Mas é isso que é a juventude que diz que quer tomar o poder? Vocês estão por fora! Se vocês em política forem o que são em estética, estamos feitos!”. A prisão de Caetano Veloso, meses depois, passou a ser um fato político com ressonâncias estéticas. Teve uma repercussão ainda mais profunda junto ao público, inevitavelmente dividido entre caetanistas e anticaetanistas (a bandeira desses últimos, também chamados puros, na época, era Chico Buarque de Hollanda). A divisão terminou quando Caetano Veloso foi solto e partiu para a Inglaterra. De longe, ele passou a sentir saudade do Brasil. E o Brasil sentia saudade dele. Foi perdoado pelos antigos adversários.
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E era natural. Quando viajou, em junho de 1969, Caetano Veloso já era o mais fértil, inventivo e surpreendente letrista brasileiro. Já era também, e de maneira cada vez mais acentuada, um audacioso compositor de música, capaz de experimentar desde um simples acompanhamento de violão até a mais complexa rede de fios elétricos das guitarras de seus músicos. Era um fino poeta da banalidade: “Você/ Precisa saber da piscina/ Da margarina/ Da Carolina/ Da gasolina” (Baby). Era um crítico feroz, irônico: “Eles aconselham/ O dia de amanhã/ Eles desde já/ Querem ter guardado/ Todo o seu passado/ No dia de amanhã (Eles). E um lírico, de uma força e contenção de fazer pensar em Carlos Drummond de Andrade: “No dia em que eu vim-me embora/ Minha mãe chorava em ai/ Minha irmã chorava em ui/ E eu nem olhava pra trás. No dia em que eu vim-me embora/ Não teve nada de mais” (No dia que eu vim-me embora).
Sua capacidade como músico não parece menor, nem facilmente esgotável. Compondo em praticamente todos os ritmos e mudando frequentemente sua própria música entre uma apresentação e outra, ele não precisa mais que um violão e a própria voz para tecer variações melódicas. A “vestimenta” que o maestro Rogério Duprat adicionou a muitas de suas músicas, durante o período tropicalista, jamais escondeu o corpo saudável que existia por detrás delas.
Um músico que assistia ao ensaio de Caetano e seu conjunto, na quarta-feira, comentava: “É esquisito. Ele fica olhando para não se sabe onde e de repente sai com o tom certo. Parece que tem uma pauta invisível no lugar onde ele está olhando, e que só ele vê”. Reconhecido como poeta e como músico, Caetano Veloso mostra agora, no novo show, que é também um cantor poderoso e versátil, capaz de sussurrar uma canção sem torná-la sonolenta ou de gritar um ritmo sem se tornar estridente. “É o que eu mais gosto de fazer”, diz ele, “mas jamais consegui cantar direito em shows e em discos. Ficava muito nervoso, muito tenso, e as coisas tinham que ser feitas depressa. Em casa sempre cantei maravilhosamente. Então, em Londres, onde ninguém me conhecia e eu não conhecia ninguém, perdi o nervosismo.”
Depois dos três dias de espetáculo, encerrando uma semana particularmente feliz dessa juventude disponível e disposta a lutar pela sua permanência no paraíso da eterna infância, Caetano Veloso, a superestrela, vai cantar em São Paulo, Recife e Salvador. Na Bahia, desta vez, ele planeja também tomar a primeira providência prática para que seu ponto de partida venha um dia a ser, realmente, o seu ponto de chegada.
Além de comprar um terreno para construir a casa onde vai morar (não sabe quando; viaja para Nova York em março, sem data para voltar), ele pretende colocar no lugar certo as pessoas certas. Isto é, em Salvador devem ficar todos os músicos do “grupo baiano”: Gil, Gal Costa, o conjunto Novos Baianos, os guitarristas Macalé e Lanny, João Gilberto. E talvez realize seu desejo de ser pai. Casado há quatro anos, carinhoso com a mulher, Dedé, e com todas as crianças que estejam por perto, já podia ter filhos. “Mas a Dedé me pediu um tempo”, diz Caetano com ar pensativo.
Na praia, terminado o espetáculo, o comentário voltou de novo a ser um só. Caetano, o anjo invisível durante dois anos, estava longe de novo, a caminho da Bahia. Mas, desta vez, o mal não era irreparável. O plano de todos é ir também para a Bahia e continuar lá a festa. O colunista Luís Carlos Maciel, a esse respeito, fala o que qualquer um dos que esperavam a chegada do novo messias diria: “Não há mesmo nada a dizer. O verão está maravilhoso, o Carnaval baiano vai ser fantástico, com todas as pessoas em Salvador. E a vida continua”.