O bangue-bangue da alma

Paulo Perdigão, o homem que domou Sartre, destrinchou Shane e exorcizou os fantasmas da Copa de 1950

Shane: enganadoramente simples, como costumam ser as histórias de faroeste © Paramount / Reprodução

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É isso mesmo que está escrito aí acima. Não ria, por favor. Só no último parágrafo, se achar graça na exemplar história que vai ser contada agora, misturando pólvora, filosofia, cinema, muita força de vontade, além de chuteiras — aquelas que a pátria calça nos campos de futebol, em lutas mortais contra os inimigos.
Ele é um caçador de conceitos, filmes e chutes para dentro ou fora das traves, é gente rara na praça. Chama-se Paulo Roberto Browne Perdigão. As elites da filosofia brasileira já sabem quem é, e em geral não gostam dele. Gostariam de abatê-lo filosoficamente. Acham que se trata de um arrivista, um estranho no ninho de Sócrates e Platão. Não é verdade.

O povo também o conhece, mesmo sem saber seu nome. E às vezes o odeia. É a plateia que assiste aos filmes da Rede Globo, sempre insatisfeita com o que lhe é mostrado. Essa multidão acha que quem exibe tais filmes (seja quem for) é: a) um idiota sem imaginação pago para comprar produções baratas e ordinárias; b) um tirano que manda em tudo, a seu gosto; c) um lacaio a soldo das multinacionais de cinema, com poder de impor filmes por noites e madrugadas afora. Também não é verdade. Mas é verdade que ele programa os longas-metragens da Rede Globo. Embora faça seu trabalho sem nenhuma paixão, isso não o absolve aos olhos do público. É um homem marcado para morrer.

Jornalista e crítico de cinema, Perdigão não é nenhuma dessas coisas que dizem dele — não é arrivista e muito menos o dono da programação global. É antes de tudo um mistério. Tinha planos secretos, muito pessoais, e passou boa parte da vida azeitando seu arsenal teórico, que, naturalmente, não era para ser mostrado na televisão, muito menos a soldo das multinacionais que dominam a Rede Globo. Nos últimos anos, em vez de caçar filmes raros ou vulgares, ele andou no rastro de um certo Jean-Paul Sartre, o filósofo multipensador, homem perigoso como poucos. Sartre colaborou em filmes, mas isso não tem nada a ver com a profissão do programador da Rede Globo. É só mera coincidência do enredo, como se assinalava ao final dos enredos de antigamente.

Perdigão admirava Sartre, de maneira incomparável, pois admirou pouca gente na vida. Mas seu ídolo era um fantasma, criador de vastíssima obra escrita, pois continuava envolto em fumaça filosófica. Perdigão estava certo de que era preciso capturá-lo antes que fosse tarde demais. Para que fosse explicado, para que o entendessem e, se possível, gostassem dele também. Muita gente havia tentado antes, tombando pelo caminho, ou escrevendo relatórios parciais e incompreensíveis. Poucos chegaram perto de sua presa. O filósofo de olhos tortos sempre escapava pelos desvãos da linguagem, pelos labirintos do ser e do nada, como se tivesse inventado essas palavras para uso e abuso próprios.

Sartre, vulgarmente, era dono de apenas três palavras (“ser”, “nada” e “náusea”), as duas primeiras dando título a um livro dele, dos mais famosos, O ser e o nada (de 1943) e a outra a um romance não menos celebrado, A náusea (de 1938). Essas palavras eram parentes de outros livros, como A imaginação, O imaginário ou o propriamente chamado As palavras. Sartre foi um filósofo público e abertamente político, embora se escondesse atrás dos seus textos. Baixinho, mulherengo e vesgo. Viveu a maior parte de sua vida com uma mulher notável, Simone de Beauvoir, romancista mas principalmente heroína e desbravadora do feminismo com seu livro O segundo sexo.

Jean-Paul fumava e bebia demais. Apesar disso, pensava e escrevia demais também. Seus inimigos (e eles foram muitíssimos) diziam, acidamente, que um de seus olhos errados se voltava para a direita e o outro para a esquerda. Um para o socialismo e outro para as mulheres. Estavam tentando explicá-lo. Mas Jean-Paul desprezava os que procuravam capturá-lo através de seus textos. Para confundir ainda mais, não compareceu nem para receber o Prêmio Nobel de Literatura de 1964, o máximo dos máximos do reconhecimento a um escritor.

Não quis o dinheiro nem a glória do Nobel quando cunhou mais uma de suas frases lapidares: “Não basta recusar prêmios. O importante é não merecê-los”. No fim da vida, vendia o jornal de extrema esquerda Rouge na porta da fábrica de carros Renault, usando sapatos sem meias, no inverno. “O homem é uma paixão inútil”, dizia. Que utilidade teria ele? Por que não usava meias no frio? Melhor: que inutilidades teria a dizer àquela altura, debaixo de tanta neve? Muita gente saiu atrás dessas respostas, sem encontrá-las.

O mistério não acabou (talvez não acabe nunca), mas os curiosos pelos desvãos da mente têm agora algumas pistas. É que Paulo Roberto acertou suas contas com Jean-Paul. Depois de vinte anos, sua perseguição implacável foi relatada num livro de 294 páginas, Existência e liberdade Introdução à filosofia de Sartre (Editora L&PM, 1995). O caçador, fã de filmes de faroeste, tremia de medo do chapéu às botinas, que aliás nunca usou. “Só vou terminar meu texto no dia em que estiver morto”, dizia dramaticamente, como nos bangue-bangues nos quais se mata ou morre. Isso foi quando começou a tomar as primeiras notas que lhe serviriam de orientação para uma travessia que era de desanimar qualquer ser pensante.

Testemunha acidental na tragédia do Maracanã, em 1950: “Foi o único momento histórico de que participei em toda a minha vida” © EFE / Reprodução

Morto, este sim, em abril de 1980, aos 74 anos, Sartre foi enterrado no duplo papel de ser enigmático e de figura pública, num desses artifícios talvez provocados pelas “aventuras da dialética” (o intrigante título de um livro do seu amigo e no fim da vida desafeto, o filósofo Maurice Merleau-Ponty). Sartre era um colosso, dialeticamente ou não. Legou ao mundo muito mais do que uma pedreira conceitual, produzindo uma das mais extensas massas de escritos de que se tem notícia, abrangendo da filosofia ao teatro, do romance à crítica literária, de roteiros de filmes à correspondência e jornalismo. Legou também um padrão de comportamento intelectual, de integridade fora do comum.

Autor publicadíssimo em todo o mundo, foi também muito popular no Brasil, entre os anos 1950 e 1960. Aqui (e em outros lugares também, para fazer justiça) não quer dizer que tenha sido entendido. Desconfiou-se até que todo mundo leu Sartre muito cedo ou tarde demais.

Paulo Perdigão leu muito cedo e não entendeu nada. Um dia resolveu esclarecer esse assunto que o espicaçava entre uma sessão de cinema e outra. Começou a tomar satisfações, folheando a obra máxima de Sartre. Ela era suprema como prestígio; poucos seres mortais a leram, mas isso não tem importância, porque também muito pouca gente tomou conhecimento dos escritos de Albert Einstein sobre a teoria da relatividade, que revolucionou o mundo da física. Isso sem mencionar Ulisses, de James Joyce, o maior romance não lido de todos os tempos.

L’Être et le Néant (O ser e o nada) é um calhamaço de 722 páginas, gerado nos recônditos da mente de Jean-Paul, então com 38 anos, no ambiente trágico da França ocupada pelos invasores nazistas, bombardeada por terra e ar (enquanto o país pegava fogo, Sartre conseguia pensar não no morticínio, mas nas transcendências. Um espanto). Muitos anos depois, Paulo Roberto, diante do livro, não desanimou em tentar conhecê-lo apesar do subtítulo ameaçador (“Ensaio de ontologia fenomenológica”). Aí entendeu menos ainda. E não se conformou. Pelo contrário, ficou curioso com o enigma contido naquele compêndio vetusto, de capa cinzenta, com o selo de qualidade Gallimard.

O conteúdo, como avisavam a capa e o título, se destinava a “técnicos”, donos do saber — filósofos e assemelhados, sem dúvida. Paulo Roberto não era filósofo nem algo parecido. Gostava de cinema e de praia. Surpreendentemente, decidiu partir para o confronto com o volume ameaçador, sem saber que isso tomaria os melhores anos de sua vida, título de um filme famoso dos anos 1940. Era matar ou morrer (entender), título de outro filme, dos anos 1950. As imagens passaram pela sua cabeça. Seria um duelo de titãs, nome de faroeste, também dos anos 1950. Este, como muitos do gênero que Paulo Roberto tanto aprecia, colocava em choque forças desiguais, as do muito forte contra as do muito fraco. E assim as coisas se passaram.
Eles começaram a caminhar, lentamente.

De um lado, o temível Jean-Paul, fundador do existencialismo, uma filosofia desesperançada mas amplamente aceita pelas melhores cabeças pensantes quando apareceu, no depressivo pós-guerra europeu. No entanto, Sartre era tido como aliado do Mal e lançador de modas inconvenientes e de frases explosivas, algumas de grande infelicidade. Nos anos seguintes produziu várias. “O marxismo é uma filosofia que não pode ser ultrapassada”, uma delas. “O anticomunista é um cão”, outra. Mas proclamava isso protegido pelas botas firmes de quem pisoteou séculos de tradição filosófica. Tinha lá seus argumentos na algibeira.

Do outro lado, o temerário Paulo Roberto, carioca, jogador de peladas na praia de Copacabana, autor de dois livros, um sobre futebol e outro sobre um filme. Tudo indicava que um massacraria o outro, facilmente. No entanto, Paulo Roberto tinha seus trunfos. Era famoso também — tanto quanto Jean-Paul — como conquistador que atirava bilhetinhos às moças das janelas de seu carro. Não se sabe se o galante Sartre fez isso alguma vez.

O embate seria escandalosamente desigual. Sartre — quer dizer, a sabedoria — não era mais o Mal, mas o Bem, na avaliação tardia dos filósofos de profissão. O Mal passou a ser Perdigão — quer dizer, a ignorância. Mas algo os unia, por um detalhe genético-metafísico que o filósofo tinha na cabeça e o jornalista tem na alma: a obsessão. “Sartre era teimoso e Perdigão também é”, diz o filósofo Gerd A. Bornheim, autor do livro Sartre: metafísica e existencialismo.

Raro registro de um homem de múltiplas faces ©Maria Lucia Rangel

Ele assegura: “Este ensaio de Perdigão já nasceu definitivo dentro da bibliografia filosófica brasileira”. Se tivesse ouvido esse comentário, Sartre teria arregalado seus estranhos olhos, de puro espanto. Um filósofo dizendo ser “definitiva” alguma coisa produzida por um jornalista, além do mais carioca! Pois é. Perdigão roeu as unhas para acabar seu texto tecido durante duas décadas, entre ironias dos amigos. “Você jamais chegará lá”, avisavam. “Não terá coragem. Você morrerá antes.” É o que diziam os amigos. Dos inimigos não se sabe. Até que um dia o livro foi dado como terminado, entregue a uma editora e publicado.

Existência e liberdade é uma obra-prima de paciência, método e trabalho braçal, tanto quanto intelectual. Dividido em duas partes (Individualidade e Sociabilidade), onze capítulos e flashes compactos sobre temas como o ser, o eu, o tempo, a luta de classes e o sentido da História, entre muitos outros, não é pouca coisa nessa área rarefeita dos estudos filosóficos no Brasil. Ela só foi agitada recentemente, num episódio também fora dos padrões, com a publicação de um livro do professor José Arthur Giannotti, Apresentação do mundo — Considerações sobre o pensamento de Ludwig Wittgenstein. Mas são duelos diferentes, o de Giannotti com Wittgenstein e o de Perdigão com Sartre, pelo perfil dos envolvidos.

Giannotti é um pistoleiro profissional, dos mais temidos lá pelo Oeste dos meios acadêmicos. De temperamento forte, apresenta-se sempre com voz poderosa, armado de vasta munição teórica, e semeia o terror entre as bancas que examina, até mesmo quando delas faz parte a grande dama da filosofia brasileira, Marilena Chaui (mais detalhes desse duelo de titãs no capítulo seguinte, sobre Giannotti). Paulo Roberto, ao contrário, examina filmes e livros. Não espalha o terror entre alunos, diretores ou atores de cinema, apenas os critica. Desarmado, é um franco-atirador, um menino do Rio, louro e de ascendência inglesa, um cinemaníaco antes de tudo. Basta acompanhar um pouco da sua biografia para entender.

Na infância ele desenhava caprichosas histórias em quadrinhos sobre temas bíblicos. Um dia desmaiou de emoção nos braços do seu ídolo Ademir, apelidado “o queixada”, grande jogador de futebol dos anos 1940 e 1950, que o socorreu numa contusão em uma pelada de praia. Paulo Roberto, depois, catou um pedaço da unha de Ademir, perdido num lance mais violento, e o guardou em casa num vidro de formol. Crescido, faria outros guardados extravagantes.

Estamos agora de volta ao duelo, na Avenida Existencial, seguindo as linhas traçadas pelo destino. Antes, nas ruas da vida, Jean-Paul morava na rive gauche parisiense — entre outros endereços — e Paulo Roberto no alto Leblon, depois na Gávea. Não que fizesse diferença. Eles não se conheciam. Um escrevendo o livro sobre o outro. O outro, célebre por já ter escrito sobre os outros (“o inferno são os outros”, disse em outra frase lapidar). O duelo prometia e cumpriu. O lado mais fraco exibia uma inocente aparência e muito pouco cacife para ter chegado até ali, na audácia de afrontar o grande homem.

Sem bolsa de estudo, sem pesquisadores, sem nada a não ser sua vontade, Paulo Roberto foi copiando a mão trechos dos livros do outro. Eles eram fascinantes, mas muito complicados, às vezes. Perdigão estendeu fios em seu apartamento e dependurou os textos lá, como num varal, agrupando-os por temas. Sartre não se preocupava em botar seus pensamentos em ordem. “Como demonstramos”, resumia, encarando plateias com seus olhos dúbios, e todos ficavam assim conversados. Quem iria contestar o grande homem? Teria que ser um pistoleiro carioca, e foi ele mesmo quem tomou a palavra.

Perdigão achou tudo aquilo “uma bagunça” e decidiu fazer uma faxina. “Demonstramos onde?”, irritou-se diante do ponto-final que Sartre colocava nas suas preleções. Paulo Roberto saiu procurando para descobrir onde “se demonstrava”. Por isso, seu livro presta um serviço aos que, compreensivelmente, nem tentaram chegar lá. “Há uma ordenação crescente e progressiva, indo do mais simples ao mais complexo, mas essa estrutura crescente não se acha nos textos de Sartre”, diz Perdigão. “Creio que esta é a primeira tentativa de compor a filosofia dele de forma didática”.

Essa última palavra — “didática” — Sartre teria odiado e dispararia pelo menos uma bala fenomenológica na cabeça do menino do Rio. Paulo Roberto revidaria com outro tiro, modestamente, explicando que seu trabalho é apenas jornalístico (uma mentira: é muito mais, mas Jean-Paul nunca ficará sabendo). Um trabalho feito propositalmente sem estilo, sacrificado em nome da objetividade. Essa clareza pode ser tanto o trunfo quanto a perdição de Existência e liberdade. Em vez de deixar o rei nu, ele o veste com interpretações. Perdigão é realista. Acha que seu livro não interessará a ninguém, salvo a um ou outro estudante de filosofia. Sendo o que é, não é nada.

Neste ponto ele se reencontra com o produtor e o objeto de estudo. De fato, a quem interessaria O ser e o nada, exceto ao próprio Sartre e à sua volúpia em escrevê-lo? Não se dirige ao público porque se trata de uma questão de teimosia pessoal tanto do autor brasileiro como do pensador francês. Essa teimosia de Perdigão já rendera antes dois belos livros, solitários como este e como este acachapantes na minúcia, no método — mesmo que pendurado em varais — e na paixão com que foram escritos. Um deles trata de um filme e o outro de um dia, nos dois casos devidamente autopsiados. Vale a pena lembrá-los, quando nada para situar historicamente a trajetória do caçador em busca de troféus raros.

O primeiro se chama Western clássico — Gênese e estrutura de Shane (Editora L&PM, 1985) e é um caso único de livro dedicado exclusivamente a um filme, aqui rebatizado de Os brutos também amam. Nesse livro se leva a paixão às últimas consequências, coisa rara em críticos, de cinema ou não, sempre racionais. “Foi amor à primeira vista”, lembra Perdigão sobre a primeira vez em que viu Shane, no dia 8 de abril de 1957. “Desde então nunca cansei de reexaminá-lo, à luz de conhecimentos novos, descobrindo nele categorias e dimensões ainda por explorar, uma riqueza inexaurível e renovável como o próprio saber que pode ser investido em seu conhecimento.”

Ele aprendeu muito com esse filme. Assistiu a Shane inúmeras vezes, “de perder a conta”, como diz, no cinema, em vídeo e numa moviola em casa, onde congelava as imagens para melhor estudá-las e até modificá-las. Nas suas próprias palavras, bombardeou Shane com “uma salada danada, sob todos os ângulos”. Os temperos dessa salada são excitantes porque a história contada em Shane é enganadoramente simples, como costumam ser as histórias de faroeste.

Para quem esqueceu ou nem viu, segue-se um resumo de seus 118 minutos. Shane (Alan Ladd), cavaleiro solitário e misterioso, chega a um vale do Wyoming, vindo não se sabe de onde e rumo a não se sabe qual lugar, e pede água na fazenda de Joe Starrett (Van Heflin). Ele vive ali com a mulher Marian (Jean Arthur) e o filho de 9 anos, Joey (Brandon deWilde). Os Starrett, como todos os pequenos proprietários do vale, estão ameaçados de expulsão pelos grandes fazendeiros, que contratam um pistoleiro vestido de negro, com sorriso de caveira, Jack Wilson (Jack Palance), para atemorizá-los. Enquanto incentiva a união dos pequenos donos de terras, Shane se afeiçoa à família Starrett, para a qual passa a trabalhar. Mas evita brigas. Quando Wilson fuzila um dos pequenos fazendeiros, Shane decide enfrentá-lo e o mata num duelo de saloon, sob o olhar admirado do pequeno Joey. Depois, a despeito dos pedidos do menino, vai embora e desaparece no horizonte, exatamente como chegou.

Ao narrar essa história com personagens e situações consagradas, o diretor George Stevens, segundo Perdigão, “supriu Shane de uma complexidade psicológica, uma sofisticação estética e uma densidade temática então incomuns na primitiva pureza do gênero”. Passando e repassando o filme por variadíssimos crivos, ele levantou o lado anacrônico do personagem, sua “fadiga de viver” entre dois mundos — do velho Oeste, seu berço, e o novo, que não lhe dá lugar.

No que chama de “uma das primeiras manifestações dadas no cinema americano da insatisfação social e sexual da mulher”, lê-se a minuciosa descrição de como Marian passa a enfeitar-se para Shane, o intruso a quem deseja e teme, e usa um velho vestido de noiva para dançar com ele. Ela precisa de um “novo homem”, e não mais do marido rude e assexuado, cuja impotência é sugerida quando ele defende a casa usando uma espingarda sem munição.

Considerado por toda a crítica como o filme mitológico por excelência, ao centrar sua narrativa na altura do olhar maravilhado do menino que vê a chegada e a partida do grande herói, Shane despertou em Perdigão uma suspeita de outra ordem, como expressão materializada do sonho: “Não se pode esquecer que Shane surge e desaparece somente perante Joey, a criança que vive suas fantasias, o andrólatra com quem o espectador se identifica, por sua própria memória de infância. Todo o filme, afinal, não seria mais do que a história de um sonho do menino?”.

Segundo a análise de Perdigão, para quem “Shane é Cristo, no sentido de sua paixão e como símbolo de justiça divina feito homem”, o filme é uma tragédia com um encerramento duplamente doloroso. Shane, ao contemplar o massacre que provocou no saloon, é um homem que fracassou no seu projeto de abandonar as armas e morreu por dentro. Quem parte é um homem morto; quem fica — gritando em vão “Shane, volte!” — é uma criança desenganada, cuja infância acabou e que se rende a isso na última cena, quando murmura: “Adeus, Shane”.

O outro acerto de contas de Perdigão chama-se Brasil e Uruguai — Anatomia de uma derrota (L&PM Editores, 1986) e é uma documentadíssima reconstituição, factual e psicológica, do fatídico 16 de julho de 1950, quando 200 mil pessoas assistiram no Maracanã ao jogo em que o Brasil deu adeus à taça de campeão do mundo, ao perder para o Uruguai por dois a um, e disseram todos esses 200 mil, mesmo sem dizer: “Isto não pode estar acontecendo. Estamos sonhando um pesadelo”.

Paulo Roberto tinha 11 anos e estava lá, levado pelo pai, mais para desfrutar do lanche preparado pela mãe do que para ver futebol. Ao longo dos anos, a imagem dos passos e dos rostos silenciosos deixando o Maracanã perseguiu-o sem dó. “Foi o único momento histórico de que participei em toda a minha vida”, diz. Então chegou sua vez de perseguir e encurralar mais um fantasma. Pela riqueza de pesquisa, pela multiplicidade de abordagens e interpretações, pela fúria paciente com que desmontou um episódio encravado como espinho na sua memória de criança, Perdigão mostra, de algum modo, que nem tudo se perdeu naquele jogo.

Pelo contrário: “É verdade que Ghiggia mirou com cuidado o gol de Barbosa. É verdade que, num simples instante inesperado, Ghiggia, como um ladrão da tarde, roubou para sempre o nosso triunfo. Mas também é verdade que Ghiggia errou o alvo: o gol que nos derrotou não acabou com a vida brasileira nem decretou a morte do futebol brasileiro”. E finalmente ganhou-se algo fora do campo, na dimensão da arte literária propriamente dita.

Leia-se Perdigão numa de suas decifrações dessa “tragédia grega do Terceiro Mundo”, como ele diz: “A derrota transformou um fato normal (a vitória do Brasil) numa narrativa excepcional. É mesmo necessária para que o fascínio perdure. Sófocles e Eurípides ficariam deslumbrados com a harmoniosa grandeza dessa patética epopeia conduzida pelas veleidades do destino. Dela teria feito Nietzsche um libelo contra a existência de Deus, e Jung uma prodigiosa exegese do inconsciente coletivo. Nada faltaria a Wagner para compor um fulgurante monumento operístico. Porque, de todos os exemplos históricos de transe nacional, a Copa de 1950 é o mais belo, o mais apoteótico: é um Waterloo dos trópicos, e sua história o nosso Götterdämmerung (crepúsculo dos deuses)”.

Ele estava no estádio, na tarde da tragédia, levado pelo pai, engenheiro muito severo, temido pelo filho, e brincava. Nas suas lembranças, esse momento histórico aparece “como um piquenique embalado pelos baiões de Luís Gonzaga tocados nos alto-falantes”. O menino ainda não sabia, mas o adulto procurou entender “o espaço confinado” em que se deu o jogo. Relembrado hoje, o Maracanã se desenha na memória de Perdigão como um cenário lúgubre. Nas suas palavras: “Uma tenebrosa angústia exala de cada desvão do espaço percebido: a forma arredondada das arquibancadas que se fecham, elevadas, sobre os jogadores; a imobilidade da multidão que testemunha o drama dentro do campo; a indiferença de pedra dessa construção em forma de taça que, ameaçadora, se projeta sobre os homens travando no gramado sua exasperada refrega […]. Não poderia haver iconografia mais adequada para esse drama que sufoca e silencia: é uma descida ao inferno”. A infância de Paulo Roberto, como aconteceria depois com o menino Joey de Shane, começou a morrer ali, entre a impotência e a “indiferença de pedra do lugar”.

Talvez por isso, Paulo Roberto cresceu para se tornar jornalista muito especial, escrevendo reportagens como as que fez para Manchete, saturada de niilismo e alusões a Albert Camus, Sören Kierkegaard e à filosofia do desespero em geral, depois da morte do pai. O goleiro Barbosa, o homem mais infeliz do Brasil no dia 16 de julho de 1950, talvez sentisse a quem se referiam essas citações, mesmo sem compreendê-las. Perdigão recolheu material e editou um filme “obsessivo e melodramático” em super-8, o máximo de tecnologia na época, depois da morte da mãe. Escreveu até um conto tragicômico, “O dia em que o Brasil perdeu a Copa”.

Nessa ficção, depois adaptada ao cinema no curta-metragem Barbosa, com Antônio Fagundes, ele viaja numa máquina do tempo até o dia do jogo, invade o campo para avisar o goleiro do perigo da arrancada de Ghiggia aos 33 minutos e 30 segundos do segundo tempo e avisa: “Olha o Ghiggia!”. Barbosa vira-se para o lado de onde partira a voz, pergunta “O quê?”, e toma o gol. O Grande Culpado pela derrota, portanto, chamava-se Paulo Roberto, um menino.

Na realidade dos fatos, Perdigão reconstituiu o clima da época — ano de eleições presidenciais no Brasil — e os sentimentos contraditórios que animavam os dois times. O lado brasileiro foi mais fácil de identificar. Ninguém mais queria saber dessa coisa de inferioridade nacional, do estigma do país sem glória e da sociedade “impura”. Simplesmente não havia desculpa para a derrota. O técnico Flávio Costa, muitos anos depois, foi confrontado com discos, descobertos por Perdigão na Rádio Nacional, que transcrevem, minuto a minuto, tudo o que se passou no Maracanã. Serena e certeiramente, ele comentou para Perdigão: “O Brasil perdeu dentro do campo porque Ghiggia correu 140 metros com a bola sem ser interrompido”. Foi — ironia suprema — com um chute “fraco e torto” que ele calou o Maracanã.

Alguns espectadores brasileiros, estoicamente, aplaudiram os uruguaios. Jogadores da celeste Olímpia, ouvidos por Perdigão, disseram que não só a raça em campo mas também o acaso estiveram ao seu lado. “Se jogássemos cem vezes contra o Brasil depois, nós perderíamos cem vezes”, afirmou Obdulio Varella, capitão do time uruguaio e comandante da vitória. Assim, se Ghiggia tivesse errado o chute, nada teria acontecido, a não ser a banalidade do fato previsto. Mas não é desse material que se fazem as tragédias genuínas, como percebeu Perdigão. Ele acha que as tragédias, por mais dolorosas que sejam, são terapêuticas.

É bom notar que Paulo Roberto não gostava, como não gosta até hoje, de futebol. Nunca mais voltou ao Maracanã para ver um jogo. No entanto, não terminou sua história aí. Reescreveu quase inteiro Anatomia de uma derrota, gastou um ano em novas pesquisas — a primeira edição foi preparada em um mês — e vai lançar com muitas fotos, em papel cuchê, numa editora uruguaia, suas novas descobertas (a L&PM promete publicar essa nova edição, em português). Também não acha Shane o maior filme de todos os tempos, capaz de merecer um livro como o que fez.

Só que esses dois episódios o folclorizaram e se grudaram como cracas na sua biografia. Essa crença pode ser atribuída, por exemplo, ao fato de que fez um curta-metragem, Paraíso perdido, reunindo imagens inéditas da hecatombe futebolística, que descobriu em arquivos na Argentina e no Uruguai, com a narração original dos locutores de rádio na época. Tinha música épica de Miklós Rózsa, composta para um filme sobre gladiadores da Metro, e o retrato do próprio Paulo Roberto abrindo e fechando a narrativa, num ponto de interrogação.

Tem mais. Na primeira das quatro vezes em que foi a Jackson Hole, no estado de Wyoming, local das filmagens de Shane, recolheu preciosidades. Desembarcou no Rio com pedaços do que restara dos cenários, pedras e terra do lugar. Muito estranho, acharam os homens da alfândega. Perdigão os enganou dizendo que era geólogo e que sua carga se destinava a estudo. E era mesmo, mas não no sentido geológico ou aduaneiro. Era fetiche. Depois, ele chegou ao ápice de seus exorcismos, ou de sua mitomania, quando modificou o final de Shane. No filme, o garoto avisa ao herói que um capanga está de tocaia dentro do bar onde ele acabou de abater o sinistro pistoleiro de negro. Perdigão filmou a si mesmo, em vídeo, sentou-se numa mesa de bar e se encarregou de avisar Shane do perigo, depois de suprimir o menino da narrativa. É baleado e cai duro. Morreu pelo seu herói.

Outra conta acertada, portanto. Depois de faroeste e futebol, sobrou a filosofia. Seria interessante saber o que diriam os dois pistoleiros um ao outro, se alguma vez tivessem se encontrado cara a cara. Sartre não entenderia se, num esforço, compreendesse; poderia até analisar o porquê desse seu perseguidor. Mas isso não é possível saber. Se ainda vivesse, Jean-Paul veria Paulo Roberto debruçado numa velha máquina de escrever mecânica, da marca Olympia, em noites insones, tendo à sua frente as páginas de O ser e o nada.

Ele traduziu esse livro para o português, baseado no original e ajudado por versões em inglês e em espanhol, gastando uma ou duas páginas em cada avanço e a 5,50 reais por página. Fazia por gosto, apesar do desgosto de encontrar centenas de palavras erradas ou fora do lugar nas versões que consultou. Ele as consertou todas, uma por uma, dependurando-as no varal para secar e recolhendo-as no dia seguinte. Nisso se foram três anos. Em 1997, O ser e o nada foi publicado pela Editora Vozes, 54 anos depois de vir ao mundo, e um ano depois chegou à sexta edição, com 12 mil exemplares vendidos. Um fenômeno, por se tratar de um texto técnico.

Por isso, deveria ter sido um acontecimento no mundinho da filosofia nacional. Mas não foi. Ninguém reclamou da tradução de uma obra assim, chegando ao Brasil com formidável atraso, mas em compensação tampouco se elogiou. Os filósofos profissionais comentaram que “está bem”, e ponto-final. E por que eles, do ramo, não traduziram o livro de Sartre antes de Perdigão? Por preguiça. Pelo desejo de permanecerem donos do poder, exercido sobre seus alunos, aos quais condenaram a ler o texto em resumos feitos por eles mesmos ou em espanhol, em que El ser y la Nada existe há muito mais tempo. E por dificuldades técnicas também, com certeza — e Perdigão que o diga.

Quando um crítico de cinema, um jornalista além do mais, meteu mãos à obra, os filósofos brasileiros ficaram de certa forma enciumados, pois alguém invadiu sua reserva de mercado. Sartre em francês era propriedade particular deles. Socializada em português, perdeu importância porque caiu na vala comum, se é que pode ser comum uma vala de tal profundidade fenomenológica. Não que alguém fosse ler aquilo em português. O livro é assustador em qualquer língua. Lá está escrito, nas palavras vertidas por Perdigão, o seguinte:

“É verdade que se pode conceber de outro modo a complementaridade do ser e do nada. Pode-se ver um e outro dos componentes igualmente necessários do real, mas sem ‘fazer passar’ o ser ao nada, como Hegel, nem insistir, como fizemos, na posteridade do nada: ao contrário, se colocará acento sobre forças recíprocas de expulsão que ser e não-ser exerceriam um sobre o outro, o real sendo, de certo modo, a tensão resultante dessas forças antagônicas. É para essa nova concepção que se orienta Heidegger.”

O tradutor sacrificou noites de orgia e prazer (como ir ao cinema e depois jantar com amigos, por exemplo) para se debruçar nesse trabalho. Millôr Fernandes teve uma experiência parecida. Lembra que estava traduzindo um texto de Shakespeare, num Carnaval qualquer, e ouvia os reco-recos e os tamborins pela sua janela. O povo pulando lá fora. Ele, dentro de casa, feliz com o fato de que só um único Millôr estava fazendo aquilo. Ainda mais com Shakespeare. Só os dois.

Tudo isso seria muito divertido, em alguns casos, digno de admiração, em outros, e muito bonito, em todos os sentidos, se Paulo Perdigão não tivesse também que cuidar da vida. Consolidou fama de hipocondríaco (“Não é verdade, eu realmente tenho todas as doenças”, brinca, para desmentir a fama) e por ter um tal pavor de avião que recusou contratos de trabalho para não ter que voar. Dizem até que, numa viagem dos Estados Unidos para o Brasil, o passageiro ao seu lado lhe perguntou, num momento de turbulência, que horas eram. Paulo Roberto, aterrorizado, chegou a pensar em olhar o relógio, mas recusou-se a dar a informação. Na sua cabeça teria se passado a seguinte cena de filme de terror: “O relógio do passageiro Paulo Perdigão marcava 22 horas e 33 minutos, hora em que o avião caiu”.

Aos 61 anos, namorando enfim uma antiga paixão de tempos de ginásio, Márcia, ele é pai de Luís Paulo, engenheiro de 29 anos, e Fernanda, desenhista industrial de 24. Passa os dias diante de um vídeo. É dali que retira seu sustento e é ali que encarna, sem querer, o papel de vilão num filme imaginário, que poderia ser batizado de O homem que eu devia odiar de madrugada. Há 28 anos Perdigão é o programador de longas-metragens da Rede Globo, provocando a fúria em milhões de telespectadores, que gostariam de assistir a outras coisas em vez das que ele escolhe e manda para o ar. Sartrianamente, vive no dia a dia o ensinamento de que a liberdade não é fazer o que se quer, mas o que se pode — no caso dele, assistir na íntegra ou em parte a cinco filmes por dia, que chegam aos borbotões em sua casa, fazer uma escolha e depois indicar os horários em que devem passar. Isso não quer dizer que as escolhas e recomendações sejam obedecidas, porque a Globo — e não só ela — serve a uma entidade voraz chamada “mercado”.

Esse “mercado” pede miolos estourados, carrões explodindo em chamas, Charles Bronson e seu bigode que deveria ser interditado pelo departamento de saúde, artes marciais, histórias de guerra e terror, drogados furiosos, policiais de Los Angeles ou Chicago com manchas no passado, tudo isso até no horário nobre. “Passo a maior parte do meu tempo vendo vídeos, fora os filmes a que assisto nos cinemas. É um trabalho que me dá horror”, diz o dono da noite televisiva. A Rede Globo, Perdigão se horrorize ou não com isso, tem 3.500 títulos no seu arquivo. Ele já viu todos eles, sabe o que significam e onde encontrá-los. Por isso, tornou-se peça-chave no império global. É um homem que sabe demais.

Ele tem consciência de que manda barbaridades para o ar, mas busca desforras. O ser e o nada foi seu último revide. Outros virão. Andam tentando-o com propostas do arco da velha, para um pistoleiro do seu calibre. Uma seria a de traduzir outro Sartre, menos metafísico e mais materialista do que O ser e o nada (mas nem por isso mais simples), Crítica da razão dialética, publicado em 1960. Pensou no assunto e recusou. Outra foi a de “botar em ordem” os pensamentos de um dos inspiradores de Sartre, Martin Heidegger (1889-1976), o autor de Ser e tempo e A questão da coisa, entre outras amenidades filosóficas. Se não bastassem tantas inquietações em sua obra de pensador, Heidegger, um superstar no mundo da filosofia, ainda carrega o estigma de ter colaborado com o nazismo, com todo o respeito pela sua estatura genial. Um novo varal, heideggeriano, para desmontar e exibir tal pensamento, para o bem e para o mal? Paulo Roberto está pensando no assunto.

Nos livros de Sartre, o homem é uma paixão inútil. Nos de Heidegger, o homem está sempre sozinho para interrogar-se sobre si mesmo e seu próprio ser. Nos de Perdigão, o homem por trás de cada linha vive de duelos de vida ou morte, travados com a pesquisa e a escrita. Esse homem é antes de tudo um trabalhador.

Texto revisto e ampliado pelo autor em 2000.