@ Benício / Reprodução Playboy

A grande guerra da noite

Nos embalos da pista, um emocionante duelo para criar as festas mais brilhantes do mundo

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Muitas são as lendas que envolvem a noite, mas a mais estranha de todas é a de que ela não tem fronteiras. Tem tantas que, numa noite de janeiro de 1976, quando a francesa Régine Zylberberg abriu no Brasil suas casas no Rio e Salvador, o coração do brasileiro Ricardo Amaral estava de luto. Três anos depois, quando Ricardo desceu em Paris para inaugurar sua casa no prédio do lendário Lido, foi a vez de Régine mergulhar na tristeza. Os dois Régine’s brasileiros procuram recriar um pouco do esprit parisiense sob a lua ardente dos trópicos. O Le 78 é uma batucada ribombando em plena Avenue des Champs-Élysées.

De champanhe em champanhe, os dois vêm desde então dançando pelo mundo afora um animado balé de ásperos contornos nacionalistas. As pessoas simples, que na sua simplicidade não distinguem uma discothèque de outra, pensam que dá na mesma frequentar os Hippopotamus, de Ricardo, ou os Régine’s. Engano. Optar por um ou outro significa sair em determinadas colunas sociais, e não nas demais; equivale a ter por alguns instantes turmas diferentes, às vezes hostis entre si; pode render elogios ou reprimendas no dia seguinte. “Meu objetivo é a glória”, afirma Régine, e seus frequentadores acreditam nela. “Quero ser e serei uma lenda.”

Ricardo jamais fez uma declaração de fé retumbante como essa. Mas seus amigos contam que Régine “encheu-se de ódio” por ele quando os Hippopotamus abriram. Era inevitável que os dois se cruzassem em alguma festa, pois a noite brasileira ainda não é assim tão variada. Quiseram fotografá-los juntos, e Régine desapareceu em desabalada carreira. Ricardo, dizem seus amigos, àquela altura nem estava mais no lugar. É impossível verificar a veracidade dessa história porque Régine está segura de seu posto de rainha da noite e se refere com desdém aos que competem com ela: “Não tenho concorrentes”. Consciente, porém, da dureza do seu julgamento, corrige: “A noite é uma profissão muito difícil. Nela, somos todos profissionais”.

Por via das dúvidas, dizem também os amigos de Ricardo, Régine preferiu referir-se a ele como “esse senhor” na noite em que a Avenue des Champs-Élysées estava entupida de carros em volta do ex-Lido. A abertura de Le 78 foi um acontecimento que a imprensa francesa noticiou copiosamente, registrando na ocasião nada menos que 7.800 pessoas e 780 fotógrafos profissionais – um para cada grupo de dez convidados. Do mesmo modo, a inauguração dos Régine’s brasileiros foi o acontecimento de maior impacto do ano, quando nada pela confusão causada pelas cartas-convites e telegramas mandados pelo correio. As colunas sociais, especialmente as de Salvador, tiveram que ser mobilizadas para explicar que os portadores de telegramas eram mais convidados que os portadores de simples cartas. À frente da casa, estava a estonteante Lauretta (ler “Lorretá”) que, do alto do seu 1,80 metro, declarou: “Espero que o povo brasileiro goste do Régine’s”.

Chocados, alguns jornais oposicionistas denunciaram o “bando de pavões” que fez fila para aproveitar a luxuriante boca-livre patrocinada por Régine. Mas o prestígio da dona das casas jamais deixou de crescer no Brasil e fora. Nos últimos vinte anos, expandiu seu império de Paris a Santiago, de Genebra a Nova York, totalizando quinze casas. Em 1981 pretende apresentar um Régine’s Show na China e terá novas filiais em São Paulo, Los Angeles e Miami. Depois, em Cingapura, Hong Kong, Houston e Chicago.
Do seu lado, Ricardo Amaral também vai em frente. Nos últimos quinze anos, entre uma grande variedade de negócios que incluíram uma firma especializada em aluguel de TV para hotéis e a construção dos primeiros tobogãs cariocas, abriu os Hippopotamus do Rio, São Paulo e Salvador e avançou para Paris, onde administra o Le 78, da Compagnie Internationale d’Espectacles, pelo salário de 1,35 milhão de francos (cerca de 20 milhões de cruzeiros) por ano. Associado a grupos locais, vai funcionar em Buenos Aires e Nova York. Num lance audacioso, roubou de Régine sua relações-públicas, Danuza Leão. Régine e Ricardo começam 1981 em grande estilo, abrindo filiais em São Paulo, cidade que uma pesquisa feita pela cadeia de hotéis Hilton indicou como dona de uma das cinco mais movimentadas noites do mundo.

Em boa companhia: Régine recebe De Niro © Rogério Ehrlich

As novas casas se chamam Pauliceia Desvairada e Régine’s e trazem, cada uma, a marca de seus donos. A primeira, na cada vez mais chique avenida Faria Lima, confirma o gênio de Ricardo Amaral em tirar ouro das pedras e em fazer arder uma chama onde antes só havia cinzas. A segunda – um conjunto de cinco ambientes, também na Faria Lima – faz jus às ambições espetaculares de Régine, cujo grande sonho é ver seu nome coruscando em alguma marquise da Broadway. A inauguração vai contar com um show de Charles Aznavour e uma lista de convidados que inclui o príncipe Faiçal, da Arábia Saudita, Omar Sharif, Farrah Fawcett, Alain Delon, Ryan O’Neal e Sean Connery.

A história dos dois lugares é um pouco a história do temperamento de Ricardo e Régine. Em 1965 a era do boliche estava acabando no Rio e o jornalista Ricardo Amaral havia ganhado a concorrência de arrendamento do estádio de remo da lagoa Rodrigo de Freitas (isso quando era colunista da Última Hora, jornal que fazia oposição feroz ao então governador Carlos Lacerda). Dois anos depois profetizou: “Aqui vai nascer um clube privé, até a gente ver que ainda é cedo para ter clube privé no Brasil”.

Assim surgiu a inesquecível boate Sucata, não sem que o seu criador soubesse antecipadamente todo o futuro do lugar. Previu que a Sucata seria um templo da música brasileira (lá Gil e Caetano fizeram seus mais agressivos shows tropicalistas, encerrando a temporada quando foram presos), depois um palco para shows de mulheres seminuas (Oswaldo Sargentelli foi um dos promotores da casa), uma “outra coisa qualquer” (virou Papagaio) até sucumbir (sucumbiu). Papagaio era também o nome da discothèque paulistana que naufragou e que Ricardo entregou a seu primo e amigo Nelson Motta, para ressurgir resfolegando em 1981 com o nome de Pauliceia Desvairada. Nelsinho, jornalista e autor de Música, humana música (artigos) e coautor da porta-bandeira das Frenéticas, Perigosa, é o dono do Noites Cariocas, 20 mil metros quadrados ao ar livre, no morro da Urca. Descreve a nova casa como “chocante mesmo”: tubos de neon colorido, cadeiras e bancos de pele de onça, palco de pele de zebra, teto azul-marinho com estrelas que piscam com luz negra. “É uma casa que choca o bom gosto.”

Ricardo ciceroneia Sinatra @Ricardo Amaral / Memórias

Já o Régine’s paulista, que abre as portas em março, segue o raffinement estilo anos 1930 e a tradição empresarial da dona. A abertura de um empreendimento de Régine no Brasil é quase uma nova missão francesa: traz cultura. Traz, pelo menos, o decorador e arquiteto François de Lamothe, responsável pelo finíssimo visual das casas. Ao contrário de Ricardo Amaral, que torrou 3 milhões de cruzeiros para pôr roupa nova no velho Papagaio, Régine não está gastando um tostão de sua bolsa no suntuoso conjunto de cinco casas (dois bares, dois restaurantes e uma pista dançante que ela vai rebatizar com um nome menos puído que o de discothèque: será uma dance folie). Como no Rio e em Salvador, onde se associou aos hotéis Méridien em troca de know-how e royalties, ela vai entregando as contas para a Cothel (Companhia de Hotéis Turísticos), empresa do grupo Selecta (projetos agropecuários, construção civil). Ivan Velloso Pontes, da Cothel, paga e explica: “Para nós, é mais um negócio. Estamos interessados em investir na noite”.
Na verdade, talvez seja mais do que isso. O presidente do grupo, Naji Robert Nahas, gosta da noite, é amigo de celebridades internacionais e combina partidas de bridge por telefone com Omar Sharif. Por isso o valor do investimento – 2,5 milhões de dólares, de recursos próprios – não traz embaraços ao grupo, que de resto confia no currículo de Régine, impecável no mundo inteiro.

As inaugurações quase simultâneas do Pauliceia e do Régine’s mostra que o destino caprichou não apenas em colocar Régine e Ricardo em campos opostos, mas também em uni-los. “Régine tem talento e garra”, diz Jean Castel, dono do Chez Castel parisiense e o mais novo recém-chegado ao Rio, onde abriu uma casa. “Ricardo tem tenacidade e ímpeto”, informa José Hugo Celidônio, jornalista e empresário da noite. Os dois sabem de quem estão falando. Nos anos 1960, Castel entregou a Régine o Whisky à Gogo, uma casa moribunda, e abriu o caminho para que ela se transformasse em rainha da noite. Celidônio era dono do Flag carioca e associou-se a Ricardo para a similar paulista da casa, assistindo depois à marcha do sócio rumo a casas maiores e mais internacionais. Além disso, Régine e Ricardo já estiveram sob as mesmas asas – mais exatamente as da Panair. Ela veio ao Brasil pela primeira vez em 1964, num grupo que incluía Françoise Dorléac, Catherine Deneuve, Porfirio Rubirosa – “o mais notável e impressionante frequentador das minhas casas”, lembra ela – e sua então mulher, Odile, todos trazidos por Wallinho Simonsen, filho de Mário Wallace Simonsen, boss da TV Excelsior e da Panair. Ricardo era secretário de Wallinho e, enquanto Régine chegava, ele partia para a Europa, aonde foi contratar Gilbert Bécaud para a televisão do grupo.

Na época, Régine já estava no batente noturno e Ricardo quase. Régine, concebida na Argentina e nascida na Bélgica, de pais pobres, tinha 14 anos quando arrumou o primeiro namorado, de 16. A guerra estava quase acabando, mas antes disso o rapaz foi posto num trem, rumo a um campo de concentração. Ela decidiu então que nunca mais seria infeliz.
Casou-se aos 16 anos com um operário marroquino que quis mandá-la ao psiquiatra para curá-la de sua mania de pensar em riqueza. Jamais se curou. Uma amiga, a escritora Françoise Sagan, disse à imprensa que Régine, no trabalho, pode ser “egocêntrica, perfeitamente mal-intencionada, às vezes feroz”. O Chez Régine abriu em 1960. A dona aprendeu o twist com um grupo de dançarinos de West Side Story e quando a moda passou, depois de sacudir toda a França, a casa ficou. O New Jimmi’s, diz ela, marcou sua passagem para a era da organização. Foi com informações das próprias locomotivas internacionais que organizou o seu precioso fichário (20 mil pessoas têm carteirinhas Régine’s no mundo). Hoje resume o império Régine numa palavra: “Estabilidade”. É muita coisa nesse ramo em que boates abrem ao cair da tarde e estão falidas quando o sol desponta.

Ricardo não tem tristezas de infância: fez um rinque de patinação aos 17 anos em Campos do Jordão. Foi dono do Augusta News (hoje desaparecido) e colunista da Última Hora, em São Paulo, onde nasceu, e no Rio de Janeiro, antes de exercitar sua imaginação rumo a novos negócios. Dizem os amigos que ele é uma “máquina de ideias”. José Papa Júnior, o empresário paulista, concorda, pois homenageou Ricardo numa cerimônia na sede do Serviço Social do Comércio justamente por considerá-lo “um grande criador de mercados”. Além da firma de aluguel de aparelhos de TV, Ricardo trouxe golfinhos amestrados para se apresentarem na lagoa Rodrigo de Freitas e reformou bares históricos, como o Zepelin, indiferente às pragas que lhe rogou a boêmia de Ipanema. Fracassou num único empreendimento, a cadeia de lanchonetes Rick, na qual tinha como sócio o futuro e hoje ex-ministro Mario Henrique Simonsen.

Foi de Ricardo, também, a ideia de levar os tobogãs para o Rio, depois de vê-los funcionando em São Paulo. Ficou observando, fez as contas e concluiu: “É o dinheiro mais fácil do mundo. Paga o investimento em uma semana”.
Dono de uma produtora de cinema (República dos assassinos, policial de Miguel Faria Júnior, é um dos seus filmes), Ricardo voou para Londres em 1978 numa viagem patrocinada pelo uísque Buchanan’s. Lá reuniu um grupo de amigos jornalistas – Celidônio, Telmo Martino, Daniel Más, Sérgio Monte Alegre – em Knightsbridge para uma reunião à base de caviar. Disse então a eles, revelando sua relação com o dinheiro: “Dinheiro serve é para isto. Para a gente gastar e se divertir com quem gosta”. Disse mais: que “a vida tem que ser um grande playground”. Aos 39 anos, casado com Gisele e pai de dois filhos, um de 10 e outro de 12 anos, ele não tem feito outra coisa senão tentar cumprir essa sua crença.

Eles usam black-tie: Geraldo e Maria do Carmo Mayrink prestigiam o Régine’s, no Rio © Arquivo pessoal

Régine, 51 anos de idade, casada com Roger Choukroun há onze e mãe de um filho do primeiro casamento, diz que jamais se cansa – “jamais, jamais!” – e aglutina todos os colunáveis de cada lugar a que chega. Voando ou em algum hotel, sabe todos os dias, via telex, do movimento de suas casas, quem esteve lá e quem faltou. Cantora e dançarina, tem uma agência de publicidade, uma loja de roupas na Rue de Seine, em Paris, uma linha de gravatas e uma marca de perfume, Zoa. Não teme ser considerada extravagante. Os press releases de sua própria empresa definem a organização como devotada ao “puro elitismo”. No mais, possui 550 pares de sapatos.

No Rio, em Paris, Nova York, Buenos Aires e agora em São Paulo, o destino de Ricardo e Régine é o mesmo: vender a noite como o último refúgio do brilho, da classe e da exclusividade. Os nomes mais ilustres de cada uma dessas cidades são assíduos. Os Matarazzo, os Scarpa, os Lacerda Soares, os Monteiro de Carvalho, os Gouthier, os Mendes Caldeira, os Mayrink Veiga, a TV Globo inteira e o jornalista Justino Martins frequentam um ou outro lugar (só Jorginho Guinle, que é único, consegue estar em ambos ao mesmo tempo). São infiéis. O Hippo e os Régine’s adorariam arrancar de cada um deles uma opção definitiva, mas a noite brasileira perderia muito do seu encanto se houvesse blocos de clientes separados e impermeáveis. Afinal, quem estaria na mesa para contar como foi a festa da noite anterior na casa rival?

Régine e Ricardo poderiam, no entanto, reunir-se para corrigir alguns insistentes senões em suas casas (que as pessoas simples, na sua simplicidade, acham tão iguais na dança, no acrílico e no vidro fumê). Poderiam estudar o fim das carteirinhas, que andam caras (12 mil cruzeiros) e já não são tão exclusivas. Poderiam estabelecer uma política comum, por exemplo, quanto ao uso de tênis, permitido no Hippo e tolerado com reservas no Régine’s. Poderiam estudar uma maneira menos desagradável de examinar os fregueses, abolindo a janelinha na porta. Poderiam…

Infelizmente, é impossível convidá-los para a mesma mesa.