No dia 31 de março de 1964, depois de perambular pela avenida Rio Branco, no centro do Rio de Janeiro, o jornalista Yllen Kerr entrou em desabalada carreira no antigo prédio do Jornal do Brasil. A cidade estava ocupada pelas tropas e um soldado na porta do prédio tentou pará-lo encostando-lhe uma baioneta no peito. “Tira essa merda daí!”, zuniu Yllen enquanto galopava pelas escadas e sumia de vista. Dizem que nasceu nesse momento a ideia do seu livro, Corra para viver, lançado no ano passado. É o primeiro e ainda único guia brasileiro para os aficionados do jogging, o esporte-diversão deflagrado pelos conselhos do dr. Kenneth Cooper e que tem ajudado um número cada vez maior de corredores a se salvar, se não de balas, pelo menos de infartos e outras doenças que assombram as grandes cidades.

Caçador submarino, motociclista, nadador, ciclista, mas acima de tudo um corredor que salta da cama às cinco horas da manhã para cumprimento do dever (quinze quilômetros por dia), Yllen Kerr é uma espécie de pioneiro dessa moda que, ao contrário de todas as outras, não morreu no verão passado. Mede 1,68 metro, pesa 54 quilos, bebe uísque e vai colhendo pontos de exclamação quando diz ter 52 anos. Aparenta 32, mas, ao mentir – pois nasceu 42 anos atrás num navio que chegava ao Brasil vindo da Escócia –, mexe com os sonhos mais profundos da multidão de corredores que suam a camisa em busca de alguma espécie de juventude eterna. Correr é um jeito de conseguir algo parecido com isso. É um excelente veículo para o estabelecimento de relações sociais e até mesmo sexuais.

Não é por outro motivo, portanto, que as maratonas estão entrando na ordem do dia. Playboy, em outubro de 1975 (“Como salvar seu coração”), novembro de 1978 (“Fique em forma neste verão”) e setembro de 1979 (“Fique em forma… e depois vá buscar o prêmio na cama”), já alertava seus leitores para as vantagens da corrida. E dá a largada este mês com uma alegre prova em São Paulo. Em novembro, o Jornal do Brasil e a Atlântica-Boavista promovem uma outra, no Rio, partindo e terminando no Leme depois de passar por Botafogo, Flamengo, Ipanema e Copacabana.

Qualquer hora é hora para praticá-lo e qualquer rua pode ser uma pista excelente. O jogging não admite desculpas do tipo “não tenho tempo” ou “não sou sócio de nenhum clube”. É claro que a calçada da praia ou pistas de corrida são melhores que ruas, mas na falta delas o corredor pode se dar muito bem até em acostamentos de estradas, onde cada vez mais corredores vêm se exercitando.

Os candidatos ao jogging devem, antes de mais nada, fazer um exame médico, principalmente se têm mais de 30 anos de idade. Alguns – muito poucos, na verdade – serão reprovados. São pessoas que têm varizes, diabetes ou lesão cardíaca grave, doenças de coluna ou que atravessam uma fase aguda de infecção. Asmáticos, portadores de enfisemas ou lesões cardíacas leves, pelo contrário, devem correr. Há exemplos dramáticos de como o jogging entrou na vida de pessoas doentes. Dez anos atrás, o dr. Paulo Moraes, médico paulistano, teve dois infartos e duas pontes de safena colocadas no coração. Ficou arrasado. Tinha 30 anos e entrou num processo de contagem regressiva: acreditava que em pouco tempo estaria morto. Naquela época não havia laboratórios especializados em exercícios e foi um outro médico, o dr. Euclydes Marques, quem o socorreu. Levou-o a um clube e mandou que ele corresse. A cada cem metros media o pulso do dr. Moraes e pensava: se não passar de 120 batidas estará salvo. Ao fim de seis meses o dr. Moraes estava correndo quatro quilômetros em menos de trinta minutos, marca excelente para qualquer corredor amador. Até hoje treina diariamente. “Estou convencido de que suas artérias coronárias se transformaram”, diz o dr. Marques, 44 anos, ele também um corredor de todos os dias desde que descobriu, horrorizado, que estava usando o carro para fazer percursos de menos de cem metros.

O jogging não faz milagres. No entanto, é o espantalho mais eficiente da conjugação álcool-cigarro-gordura-bunda-na-cadeira que corrói a saúde e a resistência de executivos, burocratas, jornalistas, publicitários, advogados, arquitetos, economistas etc. etc. A corrida provoca alterações incríveis no organismo dessa gente encurralada entre a mesa de trabalho e as paredes de um bar. Desenvolve, antes de tudo, os músculos respiratórios, de modo que o corredor é capaz de respirar grande quantidade de oxigênio. E a resistência física está ligada exatamente ao consumo de oxigênio. O ator Juca de Oliveira, 45 anos, que corre há dez, sentiu no palco os benefícios do jogging. “Teatro exige muito da respiração”, diz ele, “e só em boa condição física é possível interpretar bem.”

Ao contrário do que muita gente pensa e faz, o corredor deve respirar de boca aberta, pois o nariz não tem abertura suficiente para captar o grande volume de ar consumido numa pista. Uma pessoa respira, em média, nove litros de ar por minuto, mas o atleta olímpico exige até duzentos litros nesse mesmo tempo. A corrida ativa a circulação do sangue, alargando e criando novas vias circulatórias – capilares, vasos e artérias – no corpo todo. É como tentar chegar ao centro da cidade, nas primeiras horas da manhã, contando com apenas duas avenidas. Usando outras, o trânsito – isto é, o sangue – flui melhor. O beneficiário direto é o coração. Ele ainda é o grande assassino – mais da metade de todos os óbitos são provocados pelo coração –, e tudo que puder ajudar essa formidável máquina de bombear sangue deve ser feito imediatamente. O coração de um corredor é mais forte, pois o esforço da corrida o obriga a trabalhar com vigor, aumentando o número de batidas; em compensação, quando o corredor descansa, o seu coração bate menos vezes que o de uma pessoa sedentária, na proporção de cinquenta contra oitenta pulsações. Assim descansa mais tempo. A corrida também dilata as artérias coronárias. A probabilidade de entupimento de uma artéria (quando o infarto e a arteriosclerose se tornam mais prováveis) diminui.

Para que esses benefícios sejam sentidos, no entanto, o jogging exige um pacto de fidelidade e um compromisso diário. O corredor de fim de semana é tão danoso a si mesmo quanto os motoristas domingueiros o são à segurança pública. O corredor destreinado e que se julga um atleta está sujeito a desmaios e palpitações provocados pela falta de oxigênio no cérebro e pela sua incompetência em forçar de uma só vez o que apenas deve ser feito ao longo de semanas e meses. Tirando isso, nada mais existe de perigoso na corrida.

O equipamento mais importante para o corredor fazer parte da comunidade é o seu próprio bom senso, mas um bom tênis ajuda. Os tênis são projetados nos menores detalhes para proteger a mais delicada e complexa peça envolvida no ato de correr, o pé, que tem 213 ligamentos, 38 músculos e 52 ossos. O tênis de corrida é diferente do tênis comum. Tem sola com travas de borracha, para amortecerem a pisada, e uma entressola, de substância especial, para absorver o choque. O calcanhar de aquiles do corredor é protegido por uma camada acolchoada. A tecnologia da corrida desenvolveu-se tanto que hoje há tênis construídos com a precisão de um cronômetro. Um deles, o Tailwind, tem um acolchoado de cápsulas envoltas por uma camada de poliuretano, de acordo com desenho do engenheiro aeroespacial Frank Rudy, que gastou três anos para chegar ao desenho ideal. Um outro, da Brooks, tem palmilha inflável e substituível, uma espécie de minicolchão de ar. O corredor ajusta a quantidade de ar de acordo com suas preferências.

Um corredor de talento, porém, passa sem essas coisas. E um grande campeão, o etíope Abebe Bikila, humilhou seus rivais durante os Jogos Olímpicos de Roma, em 1960, disparando pela pista com os pés descalços. Yllen Kerr, em Corra para viver, ensina que todos nós somos modestos atletas de rua e não devemos pensar em competir com os deuses da pista, que habitam outras galáxias. Calçado com seu tênis, e vestindo não mais que um calção de náilon (que seca o suor mais depressa) e uma camiseta furadinha (que favorece a ventilação), o corredor está perfeitamente equipado. As regras são poucas. Não se deve apoiar o calcanhar em primeiro lugar, pois isso certamente provocará dores. Há quem prefira pisar com a ponta dos pés, o que em geral imprime maior velocidade à passada, e os que colocam a planta do pé inteira na pista. Pouco importa, porque nos primeiros dias, com qualquer um dos métodos, devem aparecem bolhas, distensões e inflamações. Fazem parte do jogo.

Mais importante do que isso é estabelecer um programa de treinamento pessoal, pois o corpo de cada pessoa é único. Só você pode estabelecer a velocidade e a distância ideais para seu organismo, mas existem regras de bom senso que servem para todos. Os iniciantes não devem correr mais de uma vez por dia, nem mesmo todos os dias, no começo. Corredores de primeira classe só depois de cinco ou seis anos passaram a correr duas vezes por dia. No começo deve-se correr três vezes por semana, aumentando a frequência até que ela seja diária. Uma forma prática de saber se está havendo algum exagero é esta: tomar o pulso logo depois da corrida e verificar se ele está acima de 220 menos a sua idade (o pulso de uma pessoa de 30 anos de idade deve portanto bater 190 vezes por minuto). Cinco minutos depois, no máximo, a pulsação deve voltar à normalidade. Isso significa que você está em forma, gastando pouco tempo para se recuperar.

Não existe dieta ideal para o corredor que seja diferente daquela que todos sabem ser a melhor para a saúde: peixe, carnes grelhadas, vegetais, frutas, ovos e queijo. A distância e a velocidade são alvos que devem ser modificados gradativamente, pois nada fará com que você corra mais depressa se o seu corpo não pedir isso. Enfim, esse manual simples de sobrevivência na selva do asfalto exige principalmente que não se metam os pés pela cabeça: o corredor inteligente deve descobrir o tamanho de suas passadas para tirar todo o proveito do suor de cada dia.

Na pista, poder, fama, beleza e sexo

Nos últimos anos, aderiram às corridas brasileiros de vida e personalidade tão diversas como o ex-presidente Emílio Médici, de 75 anos, e o milionário Antenor Mayrink Veiga, de 23 anos, que dispara todo começo de noite, de sua casa, no Flamengo, até o Leblon. Essas corridas podem proporcionar rápidos reencontros sociais, como os de Antenor com Danuza Leão, frequentadores da noite cariosa, ou de Médici com o deputado José de Magalhães Pinto, 71 anos, frequentadores do poder político. Estrelas de brilho variado iluminaram as pistas de corrida do país nos últimos meses, de Fafá de Belém a Dina Sfat, de Bete Mendes a Rosamaria Murtinho. Nem todas aguentam. Danuza Leão, por exemplo, grande promessa de corredora, sucumbiu às obrigações da noite e da boate Hippopotamus, onde é relações-públicas.

Muitos correm por vaidade, mas o jogging brasileiro já passou dessa fase para se consolidar como hábito estável, praticado às vezes anônima e solitariamente por fervorosos corredores. Hélio Bicudo, advogado paulista, ex-procurador do Estado e famoso em todo o país desde os tempos em que corria atrás do Esquadrão da Morte, tentando enquadrá-lo na Justiça, acha que nada substitui o jogging. Aos 58 anos, pesando 45 quilos, o franzino Bicudo corre todas as manhãs pela pista de atletismo do Clube Atlético Paulistano para sua performance de quatro quilômetros cronometrados em vinte minutos. Operado do coração há seis anos, ele é um propagandista declarado do jogging e faz comparações: “A ginástica e o tênis ajudam a manter a forma, mas não trazem o mesmo benefício”. José Inácio Werneck, jornalista de 43 anos, um dos organizadores da maratona Jornal do Brasil/Atlântica-Boavista, corre há três anos para poder fazer o que gosta: comer e beber, mantendo a saúde. “Regime, jamais!”, decidiu. Seu entusiasmo é hoje tão grande que ele levou a mulher, Dawn, para uma maratona em Londres em que ela tirou o 97º lugar entre 230 participantes, depois de correr 3 horas e 28 minutos. Werneck é também um dos fundadores da Corja (Corredores do Rio de Janeiro), entidade que pretende difundir no país a prática da corrida.

Millôr Fernandes, como Werneck e Bicudo, diz que os benefícios com a corrida são incontáveis. Millôr está com 57 anos, começou a correr há três e cinco dias por semana faz entre cinco e oito quilômetros na areia, entre Ipanema e Leblon. Millôr sugere que o corredor iniciante deve começar andando, progredir lentamente e só correr de verdade depois de cinco ou seis meses. O prêmio é uma enorme sensação de bem-estar, uma espécie de barato sem a contrapartida da intoxicação deixada, por exemplo, pela erva maldita.

É mais ou menos o que diz, em outras palavras, outra corredora famosa, a poetisa-modelo Bruna Lombardi, que pode ser vista de manhã, nos jardins do Morumbi, perto de sua casa, correndo atrás de dois cachorros, uma husky siberiana e um pastor-alemão. Bruna, de 28 anos, corre exclusivamente por prazer e senta na beira do caminho tão logo começa a ficar cansada. “Não me imponho nada”, explica. “O importante é se soltar como uma criança, sem pensar em termos de disciplina.” Essa displicência atlética é compensada, no entanto, com a ginástica, a dança e brevemente com um time de futebol só para mulheres, o Beleza Pura, que Bruna está fundando para jogar no campo da sua casa em Embu.

Elizângela, a Sandra de Plumas & paetês, joga no time de Bruna (não no de futebol): não conhece os códigos dos corredores, fuma e só corre para manter a forma. Com 25 anos, pode ser vista na praia do Pepino, às sete horas da manhã, para escapar do sol, que segundo ela envelhece as pessoas e faz mal à pele.

Nenhum desses corredores sossegados se compara, porém, à placidez cultivada nos altos escalões governamentais em Brasília. A despeito do bom exemplo do presidente João Figueiredo (que aos 62 anos corre, faz equitação e ginástica na hora do almoço), um ministério gordo e ofegante dirige os destinos da nação. As exceções correm por conta de Murilo Macedo, do Trabalho, de 57 anos, jogador de tênis e corredor, e César Cals, das Minas e Energia, de 54 anos, que corre todas as manhãs. No mais, só o secretário particular do presidente, Heitor Aquino Ferreira, de 44 anos, se anima a vestir uma malha de ginástica. Com ela, Aquino corre todos os dias, na avenida das Nações, geralmente depois que deixa o Palácio do Planalto e parte em direção à Granja do Riacho Fundo, onde mora.

Todos os corredores concordam que a vida sexual melhora com essa prática. O dr. Euclydes Marques explica que a qualidade do ato sexual se aprimora porque um corpo treinado nas pistas se cansa menos nas batalhas em campos de paina. Millôr concorda que o exercício físico só pode fazer bem aos amantes, mas avisa que “sexo não é coisa para amadores”. E outra corredora insistente, a atriz Clarice Piovesan, que há anos dispara pela floresta da Tijuca com o marido, Stênio Garcia, pensa mesmo que a hora do jogging é a melhor de todas para tratar de assuntos das crianças, do trabalho e resolver “problemas existenciais, como na Grécia Antiga”.

Clarice e o marido fazem amor depois da corrida, que prepara o corpo para uma transação “sem preconceitos nem barreiras”. Nem sempre, porém, ela tem tempo de fazer as duas coisas. “Nesse caso”, escolhe ela, “faço só amor mesmo.”

_{Com Suzana Junqueira}