Glauber e Mayrink na última de uma série de entrevistas realizadas no hotel Sol Ipanema, em julho de 1980, onde o diretor morava com a família ©Adalberto Diniz
A história não filmada de A idade da terra, na qual o mais polêmico cineasta brasileiro enlouqueceu artistas e produtores, passando por Hollywood e Moscou, até chegar ao Festival de Veneza
Glauber Rocha abriu os olhos. Eram seis horas da manhã no Rio de Janeiro e, ainda meio dormindo no quarto do hotel Sol Ipanema, folheava um jornal. “Eu vou morrer”, gemeu para si mesmo, bocejando, ao atender ao primeiro telefonema do dia. “Preciso de um milhão”, avisou a quem queria falar com ele do outro lado do fio. Estava quase na hora de sair para trabalhar e já ficavam lhe pedindo uma entrevista antes que o sol nascesse. Ele mesmo, na véspera, havia combinado esse horário, mas tinha esquecido. Que milhão ele queria àquela hora quase de madrugada?
Acabou de acordar, cuidou dos dois filhos pequenos, conversou com a mulher e saiu do hotel, onde vivia com eles havia algumas semanas. A manhã de 30 de julho de 1980 estava muito quente e Glauber muito cansado, já cedo. Havia passado nove anos, quase três só em filmagem e montagem, cuidando de A idade da terra, e esperava que nas horas seguintes daquele dia a história estivesse liquidada. Preparava-se para a última sessão de montagem do filme, que seria feita no laboratório Líder, em Botafogo. E depois? “Eu vou embora”, disse várias vezes, enquanto olhava o mar da janela de um táxi. Passou num apartamento onde havia morado antes, para pegar algumas coisas que tinha deixado lá, e seguiu rumo à sede da Embrafilme, no centro, onde iria preencher sua ficha de inscrição para o Festival de Veneza, que começaria no mês seguinte. De tarde chegou de táxi ao estúdio em Botafogo para seu último combate com A idade da terra.
Não era um momento qualquer. Glauber se trancou na sala de montagem para ajustar o som de um avião com música e finalmente livrar-se do calvário vivido por ele e sua equipe. Esse martírio começou quando eles aterrissaram em Salvador para as primeiras filmagens daquele que seria o mais mitológico dos filmes brasileiros desde que Mário Peixoto dirigira Limite, quase cinquenta anos antes. Glauber estourara orçamentos, brigara com os amigos e estava cada vez mais sozinho. Enlouquecera sua equipe e deixara os técnicos do estúdio à beira de um colapso nervoso. De grande expectativa do cinema brasileiro no dia em que começou a ser filmado, 8 de dezembro de 1977, A idade da terra transformara-se em pesadelo dos tecnocratas da Embrafilme, a empresa estatal de cinema, fornecedora de cheques que a produção de Glauber devorava impiedosamente.
A verba inicial de 6 milhões de cruzeiros inchara para quase 17 milhões naquele dia do acabamento do filme e subiria facilmente aos 20 milhões quando as cópias chegassem às salas de cinema. Complicando tudo, ninguém sabia que tipo de filme era A idade da terra. Os atores davam versões contraditórias, às vezes incompreensíveis, e o presidente da Embrafilme, o diplomata Celso Amorim, que pagava as contas, também não contava do que se tratava a obra a que assistira solitariamente. Amorim e Glauber escapavam sempre que perguntados a respeito. “Só vendo”, diziam, misteriosamente.
A idade da terra já era lenda muito antes de ser filmado. Seria o primeiro — e único — filme dirigido por Glauber desde que voltou para o Brasil, em 1976, sob a generalizada suspeita de que estava louco.
Vista, a mais radical façanha artística de Glauber Rocha, o último filme que fez, comporta muitas interpretações. Não havia roteiro no papel e portanto não surgiu um enredo perceptível na tela. Os personagens de A idade da terra são metafóricos, como sempre o foram seu criador e outras criaturas anteriores. A mais famosa delas, Antônio das Mortes, “metaforiza”, como diz seu autor, o exército reacionário que destrói mas que descobre a revolução nessa destruição. As novas criações de Glauber “metaforizam” também personalidades tão variadas como Zumbi dos Palmares (o Cristo do sertão interpretado por Antonio Pitanga), Tiradentes (o Cristo urbano representado por Tarcísio Meira), Peri, criatura de José de Alencar (o Cristo índio na pele de Jece Valadão), o capitão Carlos Lamarca (o Cristo guerrilheiro feito por Geraldo Del Rey) e o imperador César (Maurício do Valle). Este, ao contrário de crucificar, é crucificado pelos quatro cristos. Fica por conta da imaginação da plateia o que fazem todos esses cristos transitando entre Salvador, a primeira capital do Brasil, Rio de Janeiro, a segunda, e Brasília, a terceira.
É claro que A idade da terra já era lenda muito antes de ser filmado. Seria o primeiro — e único — longa-metragem dirigido por Glauber Rocha desde que voltou para o Brasil, em 1976, sob a generalizada suspeita de que estava louco. O sinal dessa loucura seria sua suposta adesão ao governo que o prendera em 1970 e o induzira ao exílio no ano seguinte. Quando foi embora, era quase um santo da revolução, uma espécie de mártir. Quando voltou, era um apóstata que renegava suas origens revolucionariamente santas. Glauber interpretou os dois papéis com a intensidade máxima de seu temperamento barroco. “Se quiser fazer política, vou ser deputado estadual pela Arena (o partido do governo) na Bahia”, afirmou, em mais uma provocação. A inteligência brasileira arrepiou os cabelos, que naquela época tinha. Glauber foi morar num apartamento pequeno em Ipanema, onde a sala de visitas vivia cheia e a cozinha vazia. Começou a falar e a escrever numa intensidade de dar espanto, mesmo para um falastrão e redator compulsivo como ele. Assim, em pouco tempo a obra oratória e literária de Glauber Rocha começou a ficar tão volumosa que muitos se esqueceram de que ele era, antes de tudo, um cineasta. Mas as palavras e textos de Glauber impressionam tanto quanto seus filmes.
Na volta ao Brasil, ele odiou o Rio no estilo furioso que acabou lhe rendendo tantos dissabores ao longo da vida: “É um porto velho decadente, um embarcadouro apodrecido que soçobra num mar de merda”, recitou ele lentamente, melodiosamente até, com pausas e entonações, vestindo cuecas e olhando pela janela de seu quarto de hotel, ao repórter Nirlando Beirão, que o entrevistava para IstoÉ sobre política cultural. Em outras ocasiões, Glauber fuzilou os amigos: “Os cineastas a quem eu dei filmes, mulher, crítica favorável, tudo, me traíram”. Profeta da esquerda, foi pregar num jornal governista, o Correio Braziliense, que lhe pagava comida e hospedagem em troca de artigos. “Sou um homem pobre e doente”, escreveu no Correio Braziliense o mais aclamado cineasta brasileiro de todos os tempos. “Querem acabar comigo.”
Queriam mesmo? Ele tinha certeza. Glauber Rocha voltou para o Brasil para viver um grande filme — o maior de todos, o de sua própria vida. Quando desembarcou, tinha a seu crédito um currículo internacional. Quatro filmes feitos lá fora (dos quais só Cabezas cortadas, espanhol, passaria nos cinemas brasileiros) e uma disposição inesgotável para a polêmica. Chegou como renegado porque dissera em Roma, em 1974, que o governo do general Ernesto Geisel desembocaria em algum tipo de abertura. Escreveu essa profecia numa carta ao jornalista Zuenir Ventura, que a publicou na revista Visão, provocando uma polêmica sensacional. E como Glauber saberia que Geisel, emparedado numa alma militar e alemã, acabaria mesmo promovendo a sua famosa abertura “lenta, gradual e segura”? Fontes de informação junto ao governo ele certamente não tinha. Em vez disso, esbanjava intuição.
Dono de uma voz poderosa e grave, Glauber não economizava na eloquência e persuasão ©Adalberto Diniz
Os psicanalistas políticos de esquerda (os de direita não acharam nada) se deleitaram quando Glauber, mais tarde, explicou que sua crença se baseava no fato de que Geisel, como ele, era protestante, além de ter nascido sob o signo de Leão, o que achava um bom presságio. Além do mais, era parecido com cineastas que admirava, o alemão Fritz Lang e o americano John Ford. Ford e Lang dirigiram grandes filmes com um tapa-olho, pois haviam perdido uma vista em acidentes. Era um indício a mais, segundo Glauber: o do olho. Um pode valer mais do que dois. Outro cineasta que idolatrava, o espanhol Luis Buñuel, embora enxergasse normalmente (mas era surdo e por isso não punha música nos seus filmes), tinha os olhos saltados para fora das órbitas. Isso, segundo o missivista, lhe daria uma condição especial, a de ver mais e melhor. Glauber também tinha olhos que pareciam se projetar para fora de suas cavidades, cravando-se nas órbitas dos outros. E dono de uma voz poderosa e grave, que não economizava. Se nada disso bastasse, conversava pegando no braço ou ombro de quem o ouvia. Era persuasivo. E impressionante.
Depois que anunciou suas ideias sobre olhos, signos e religião, para se explicar politicamente, Glauber se transformou num dos maiores sacos de pancadas da história cultural recente no Brasil. E da reverência com que o tratavam à piedade foi apenas um passo. “Pobre Glauber! Pobre Glauber”, repicou em manchete fúnebre o semanário esquerdista Movimento. O “pobre Glauber” realmente parecia perdido. No seu apartamento de Ipanema juntou pedaços de negativos que lhe foram dados pelos amigos — ele ainda tinha alguns — e alimentou a esperança de filmar alguma coisa.
Quando o pintor Di Cavalcanti morreu, em outubro de 1976, Glauber leu a notícia no jornal, telefonou para o fotógrafo Mário Carneiro e correu ao escritório do cineasta Nelson Pereira dos Santos para pegar uma câmera emprestada.
Era o primeiro cadáver na sua trajetória. Retirou o véu que cobria o rosto do defunto, gritou com as pessoas contritas no velório e ligou para o poeta Carlos Drummond de Andrade para dizer que Di não havia morrido porque sorrira para ele, estendido no caixão. O filme que nasceu nessas circunstâncias, com dezessete minutos de duração, era atordoante a partir do título, Ninguém assistiu ao formidável enterro de sua última quimera, somente a solidão, esta pantera, foi sua companheira inseparável, tirado de um poema de Augusto dos Anjos. Conhecido depois apenas como Di, o curta-metragem recebeu um prêmio no Festival de Cannes, mas, no Brasil, saiu logo de circulação por força de um processo aberto pela família do pintor. A Embrafilme comprou a produção por 300 mil cruzeiros e depositou-a na Cinemateca do Museu de Arte Moderna do Rio, onde só pode ser vista mediante condições muito especiais (estudantes, pesquisadores, com pedidos por escrito). Glauber usou o dinheiro da Embrafilme para pagar à equipe e atravessar três meses à espera de novo trabalho.
Quando Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, pediu o roteiro do filme, Glauber indignou-se: “O roteiro que vá à puta que o pariu! Quem faz roteiro é você!”
Foi quando um segundo cadáver entrou na sua vida, de forma trágica, numa noite de março de 1977, quando Anecy Rocha, sua irmã, caiu no poço de um elevador. Antigo repórter policial na Bahia, Glauber passou a percorrer a noite do Rio em busca de “pistas” que esclarecessem a morte da irmã, mulher do cineasta Walter Lima Jr., a quem acusou de ser o “assassino”. Escreveu um arrazoado de nove páginas tentando provar à polícia que se tratava de crime e não de acidente. Transformou-se numa figura patética e dolorida, gritando em vão por todos os cantos: “Eu tenho um cadáver dentro de casa e o próximo será o meu!”.
Anecy, a adorável atriz de A grande cidade e O amuleto de Ogum, seria de certa forma ressuscitada por Glauber no seu romance Riverão Sussuarana, em que apresenta ao público um terceiro cadáver: o dele mesmo, enquanto cineasta. Riverão deveria ser a estreia de um romancista que se pretendia profissional. Ao cinema que o renegava respondia com um texto de 288 páginas contando a história de um grupo de jagunços que se uniam ao escritor Guimarães Rosa para a luta contra o imperialismo. Rosa mantém relações sexuais com uma mulher do bando e usa seus conhecimentos de médico para fazer um aborto. No final, de arma na mão, adere ao tiroteio contra o estrangeiro Kaster Bracker, que quer roubar urânio brasileiro. A epígrafe do livro, do próprio Rosa, era provocadora: “Minha literatura é para os bois”.
Quando Riverão saiu, porém, Glauber já desistira de ser romancista. Passou adiante seus textos Jango, uma tragedya e O testamento da rainha louca, para cuidar de A idade da terra. A “tragedya”, de setenta páginas, foi entregue numa pasta vermelha ao diretor Luís Carlos Maciel, com uma justificação: “Só você pode encenar isto, porque é gaúcho”. O texto trata da vida do ex-presidente João Goulart no exílio. Maciel agradeceu. Achou que poderia render um grande espetáculo, apesar de dificuldades como as contidas numa cena em que aparecem discutindo quase todos os líderes políticos do mundo. O Testamento, roteiro romanceado de 120 páginas, tem quinze personagens em conflito — um coronel, seus capangas, beatos e um americano que vem aqui comprar terras — e foi entregue a Neville d’Almeida, o diretor de A dama do lotação e Os sete gatinhos.
Pródigo em abastecer de textos diretores, jornais e editoras, Glauber porém não tinha, para ele mesmo, um script de A idade da terra. Quando o cineasta Roberto Farias, então presidente da Embrafilme, o chamou à sala de reunião, em maio de 1977, querendo um roteiro para estudar o financiamento, Glauber se indignou: “O roteiro que vá à puta que o pariu! Quem faz roteiro é você”, gritou ele para o diretor de Assalto ao trem pagador. Acalmado pelos amigos, sentou-se e bateu à máquina quinze laudas sem nexo para dar andamento ao pedido.
Glauber não estava brincando. A idade da terra teve tantas versões datilografadas e correspondeu a fases tão diferentes da vida de seu autor, que o filme finalmente mandado ao Festival de Veneza nada tem a ver com o resumo apresentado a Roberto Farias nem ao que Glauber já havia oferecido a produtores internacionais cinco anos antes. Em 1972, ano 1 da epopeia que seria seu último filme, Glauber vinha de uma temporada em Cuba e queria usar a palavra “terra” para formar uma trilogia com seus filmes Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967). Produtores ingleses e franceses deram-lhe 10 mil dólares de adiantamento e Glauber viajou para o Chile, onde se encontrou com Norma Bengell e prometeu filmá-la, nua, correndo ao lado de um guerrilheiro na cordilheira dos Andes.
De volta à França, apresentou um projeto que custaria 20 milhões de dólares e foi logo rejeitado como “improduzível”. Desiludido, deixou Paris em 1973, a convite de Rodolfo Echeverría, diretor do Banco Nacional Cinematográfico mexicano, interessado em financiar o projeto. O México, além de ter criado um cinema tragicômico, cultiva a tradição de abrigar cineastas sem pátria e sem dinheiro. Foi lá que o russo Sergei Eisenstein rodou seu belo, infeliz e inconcluso Que viva México, entre 1931 e 1932, e o espanhol Buñuel viveu dezoito anos de sua fértil carreira internacional.
Sem um roteiro para filmar, Glauber atacava os burocratas da Embrafilme ©Adalberto Diniz
Glauber passou um mês excitado com a promessa de Echeverría, até que ouviu por telefone: “A Censura proibiu o roteiro”. Irado, deu entrevistas denunciando a “ditadura mexicana” e lhe sugeriram, sutilmente, que fosse embora do país. Irano Garcia Borges, chefe da censura e vilão da história, saiu também dando entrevistas para se explicar: “O filme não tem pé nem cabeça”, disse. Glauber voou para Roma, dirigiu o curta-metragem Claro e estava disposto a esquecer o assunto quando A idade da terra voltou a lhe dar coceiras. Desprezou os roteiros anteriores e viajou para Moscou, onde não conhecia ninguém. Do hotel, ligou para a Mosfilm, a empresa estatal de cinema, comunicando que havia chegado. Durante seis dias foi visitado por uma funcionária de nome Natasha, especialista em Machado de Assis, que lhe mostrou as praças e monumentos da cidade.
Pediram-lhe referências e ele deu as que achou melhores: “Luís Carlos Prestes, secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro, deve ter ouvido falar de mim”. O Cavaleiro da Esperança não apenas ouvira falar como compareceu a uma sessão dupla de Deus e o diabo e O dragão da maldade contra o santo guerreiro (de 1969, último filme de Glauber antes do exílio), numa das salas VIP da Mosfilm. Prestes foi embora, elogiando, e Glauber voltou ao seu hotel, esperando. Quando o chamaram para conversar pediram, naturalmente, que trouxesse um roteiro. Glauber inventou um roteiro falado, de uma hora, traduzido por Natasha para os burocratas da Mosfilm, que não se impressionaram. Glauber tentou degelá-los com uma comparação audaciosa: “Aconteceu comigo o mesmo que aconteceu com Eisenstein no México!”. Houve mais uma exibição de Deus e o diabo na Mosfilm. Os tecnocratas gostaram outra vez. Mas deixaram claro outra vez que queriam um roteiro — ou isso, ou nada. E aproveitaram para avisar, educadamente, que o inverno estava chegando.
Glauber não se abateu. De Moscou voou para Hollywood, com escala em Paris, onde saltou para desfazer um casamento “que já estava enchendo o saco”. Ele tinha amigos no mundo dos astros e estrelas: Martin Scorsese, o diretor de Taxi Driver, e Francis Ford Coppola, o perdulário que abalara a indústria com os 40 milhões de dólares que havia torrado em Apocalypse Now. Hollywood, seguindo também uma tradição, continuava sorrindo para os estrangeiros. O francês Louis Malle estava lá filmando Pretty Baby e o checo Milos Forman preparava sua versão do musical Hair, depois de seu sucesso com Um estranho no ninho. Scorsese começou a circular com Glauber e o apresentou ao presidente da United Artists, Michael Medavoy, que o recebeu com uma saudação do mais puro nonsense. “Vi Terra em transe. É fantástico. Parece um filme de Antonioni”.
Robert De Niro, testemunha dessa cena, contou depois que Medavoy parecia sinceramente interessado em Glauber, embora só conhecesse seus filmes de ouvir falar. O presidente da United, no entanto, bateu na mesma tecla que infernizara Glauber em outros países. “Manda o roteiro que eu produzo seu filme”, disse. Glauber ficou passeando pela cidade com a namorada, Connie, enquanto tentava produzir mais um script. Foi jantar na casa de Milos Forman e este o recebeu de braços abertos e veneno na língua: “Quem diria, Glauber Rocha em Hollywood! Você ficou louco? Você é comunista, o que está fazendo aqui?”. Terminada a brincadeira, chamou Glauber num canto e sussurrou: “Isto aqui é o paraíso dos diretores socialistas!”.
Não era. Medavoy, frustrado com o roteiro que Glauber lhe mandara, foi polido mas sincero: “Seu filme é a favor da revolução socialista e contra o imperialismo. Isso nós não podemos admitir”. No entanto, ponderou, se Glauber estivesse interessado em algum outro tipo de trabalho, faroestes ou filmes de aventuras, coisas assim, movimentadas, voltariam a conversar. Não conversaram mais. Derrotado, Glauber terminou o encontro com uma provocação: “Vocês não financiariam no Brasil com o dinheiro que têm retido lá?”. Claro que não. Nove entre dez produtores de Hollywood não financiam filmes de Glauber Rocha. O décimo também não.
Sozinho, em Moscou, deu sua única referência: “Luís Carlos Prestes deve ter ouvido falar de mim”.
Foi quando voltou ao Brasil, para descobrir que sua peregrinação estava longe do fim. Tentou antes uma produção mais simples. Em novembro de 1976 entregou à Embrafilme o pedido do financiamento de O guarani, ao custo de 4,6 milhões de cruzeiros; em abril de 1977 mandou trocar esse pedido pelo de A idade da terra, avaliado em 8,5 milhões de cruzeiros, mas a empresa queria que ele baixasse o orçamento para 3,6 milhões. Glauber estava em Brasília, escrevendo um artigo para o Correio Braziliense, quando lhe telefonaram do gabinete de Ney Braga, ministro da Educação. O ministro parecia emocionado. Chamou Glauber de “grande intelectual”, mas como resposta foi encostado na parede: “Vou poder fazer meu filme ou não? Me diga, senão eu saio do Brasil agora e vou para a Bolívia”. Ney Braga prometeu que tomaria providências e em junho Glauber apresentou novo orçamento, de 6 milhões de cruzeiros.
Em setembro, o pedido recebeu parecer favorável, mas o dinheiro não apareceu. Segundo Glauber, só havia um caminho: tomar o poder. Assim, numa manhã de outubro, ele chegou ao prédio da Embrafilme, no centro do Rio, avisou ao porteiro que era o novo presidente ali, sentou-se na cadeira de Roberto Farias e, por telefone, começou a convocar os cineastas para “uma reunião importantíssima”. Ligou para Farias e lhe disse: “Olha aqui, Roberto, eu acabei de ocupar a direção da Embrafilme. O senhor está demitido porque está me sacaneando”.
O golpe de outubro passou à história do cinema brasileiro em versões conflitantes. Na de Glauber, todos os personagens falam e gesticulam muito. Na de Farias, apenas discutem. Na de Glauber, Farias chegou à sede da Embrafilme e exclamou: “Eu me demito mesmo! Vou embora daqui! Você voltou ao Brasil para me destruir!”. Na de Farias, essa cena é fictícia. Ele se lembra, sim, de Glauber gritando pelos corredores e admite que o invasor tenha mesmo se sentado em sua cadeira, “como muitos outros fizeram”. Mas defende-se dizendo que A idade da terra teve um tratamento até certo ponto preferencial, na medida em que exigia mais dinheiro que outros projetos.
Além disso, alega, mais de um ano depois, concluídas as filmagens de A idade da terra, Glauber mandou-lhe uma carta declarando que “em vinte anos de cinema, pude realizar, pela primeira vez, um filme com liberdade econômica e artística”. Glauber deixou a sala que ocupara avisando que Farias ficara lá, “abaladíssimo”. Nesse ponto os dois concordam. Farias se sente “aliviado” por ter deixado a Embrafilme para preparar um filme, Pra frente Brasil, padecendo da mesma via-crúcis na qual Glauber perdeu tempo e paciência: pediu 25 milhões de cruzeiros à estatal e a nova diretoria lhe acenou com apenas 11 milhões.
Encurralado: Glauber temeu ser assassinado por um velho amigo jornalista ©Adalberto Diniz
A lentidão burocrática ajudou a alimentar em Glauber a ideia de que estava sendo perseguido. A morte da irmã o atormentava, dia e noite. Ele chegou “ao desespero”, como disse, ao saber que o financiamento havia saído, mas que Roberto Farias viajara para a Europa, pois, segundo lhe disseram, “preferia a morte” a assinar a papelada de A idade da terra. Perseguição, morte. Glauber não esquecia que, depois que Anecy caiu no poço do elevador, o próximo cadáver dentro de sua casa seria o dele. Era o que não se cansava de avisar.
(Um parêntese — Glauber Rocha estava de bermudas, sandálias e uma camisa branca desabotoada, deixando ver os vastos pelos do seu peito, quando desceu ao bar do hotel Sol Ipanema para dar esta entrevista. Era uma noite chuvosa e às nove horas ele sentou-se ao lado do repórter para falar. Não havia mais ninguém em volta. Glauber tomou um chope, dois copos de água mineral e um café, que sorveu só pela metade. Fumou meio cigarro. Ele tinha problemas intestinais ou uma úlcera, nunca explicou, e por isso bebia quase nada. Mas estava exuberante, como sempre, na disposição para a oratória. Sua voz ecoava pelo salão vazio. Pena que não houvesse plateia. Estava sentado num sofá que terminava na parede. Não poderia sair de lá a não ser que o repórter se levantasse para lhe dar passagem. Quer dizer, era um homem encurralado num beco sem saída.
O repórter gravava a conversa num equipamento novo na época, o microcassete, emprestado por um amigo, e não sabia operar aquilo direito. Quando a primeira fita acabou, no começo da prosa de Glauber, não conseguiu abrir a caixinha da nova fita. Pediu ajuda a um garçom. Uma faca, um garfo, alguma coisa que cortasse o adesivo plástico que protegia a fita. Glauber continuava falando, mesmo sem gravação. O garçom trouxe um facão enorme e o repórter o usou, desastradamente, para esfaquear a embalagem, enquanto avisava ao entrevistado: “Vai falando”. Ele passou a falar menos e quando a fita foi finalmente colocada no lugar o entrevistado estava mudo. Mudo e com a pele amarelo-clara, cor que os amigos sempre identificavam nele em momentos de tensão. Com o gravador de novo ligado, não queria abrir a boca. Seus olhos saltados estavam cravados no facão, deixado na mesa ao lado.
Aí falou: “Pede para ele tirar esta faca daqui”. O garçom tirou e a conversa continuou, de novo animada, por mais quatro fitas. Foi só muito tempo depois, com Glauber já morto, que o repórter se deu conta da cena de terror que foi aquela entrevista. Glauber deve ter intuído que finalmente seria morto, e o cenário do bar do hotel vazio, com ele espremido contra a parede, era o lugar certo. O assassino, sem testemunhas, seria um jornalista conhecido dele, que já almoçara em sua casa e além disso acompanhara profissionalmente as filmagens de Terra em transe, encarregado de produzir noticiário para a imprensa. Perfeito. O crime absoluto, sem suspeitos nem testemunhas. Devem ter sido essas as imagens que invadiram a cabeça de Glauber e o deixaram pálido, sem que o repórter percebesse que estava diante de um homem marcado para morrer. Ele se despediu cordialmente e marcou para a manhã seguinte uma nova entrevista, aquela que se abriu com a frase bocejante de sono: “Eu vou morrer”.
Morreu exatamente um ano e vinte e dois dias depois da conversa de mais de três horas no hotel. As microfitas tiveram que ser devolvidas ao seu dono, depois de transcritas. Ele as usou em outras entrevistas e depois jogou fora. Perderam-se para sempre.)
Fechado o parêntese, os es ex-ministros João Paulo dos Reis Velloso e Petrônio Portella mais uma vez ouviram pelo telefone a voz exaltada de Glauber e prometeram: “Tenha paciência”. A produção, enquanto isso, esquentava os motores. Vários produtores já haviam desistido de se associar a Glauber, temendo pelo pior, até que um dia ele entrou na sede de uma produtora carioca, a CPC (Centro de Produção e Comunicação), numa casinha na Urca, e perguntou: “É aqui a produtora?”. Olhou o prédio, as paredes, as portas. Depois, deixou na mesa de Carlos Alberto Diniz e Tizuka Yamasaki, dois dos sócios da CPC, um calhamaço de quatrocentas páginas intitulado “A idade da terra”. E comunicou: “Vocês vão produzir o meu filme, entenderam?”.
“Faz aí uma sapatão, agente da CIA, qualquer loucura”, ordenou Glauber a Norma Bengell.
Eles entenderam. A CPC era uma firma nova, tinha a seu crédito a administração de cinco filmes de Nelson Pereira dos Santos e do hit de Hector Babenco, Lúcio Flávio, o passageiro da agonia. O trabalho com Glauber, decidiram, seria importante para o currículo da empresa. O dinheiro finalmente havia sido depositado e Glauber estava na Bahia, preparando as primeiras locações. A equipe foi formada no Rio, com as despesas já por conta da CPC, mas Glauber continuava alegando por telefone que não encontrara as locações certas e portanto não poderia começar as filmagens. Tizuka, que depois se consagraria como diretora com Gaijin, acabou embarcando para Salvador para começar o que ela hoje chama de “um período de grande sofrimento”.
Glauber não quis vê-la. Disse que estava doente e passou três dias assim, trancado num quarto de hotel. A cada pessoa da equipe que desembarcava em Salvador correspondia o agravamento do estado de saúde do diretor. A produção conseguiu convencer Glauber a se mudar para o hotel onde toda a equipe estava hospedada e onde Tizuka, de plantão, mantinha a porta do seu quarto aberta, vigiando o corredor. “Uma hora Glauber passou, olhou para dentro do meu quarto e não teve jeito senão entrar”, lembra ela. Nada se resolveu ali. Diniz, o diretor de produção, num quarto ao lado, fazia contas e já sabia o que o esperava. Ainda no Rio, quando Glauber passava todos os dias no escritório da CPC para trocar páginas do roteiro por outras, ele avisara: “Em três semanas vamos torrar todo o dinheiro”. Glauber só tinha uma resposta: “Comunica à Embrafilme”. Diniz comunicava e ouvia de Gustavo Dahl, superintendente de comercialização: “É, vamos ver”.
A equipe só se reuniu em Salvador quando Glauber se declarou curado de todas as suas doenças. E foi num clima de entusiasmo que partiram todos para as cenas iniciais de A idade da terra, no dia da procissão de Nossa Senhora da Conceição da Praia. Glauber vestia calção, com uma parte da bunda aparecendo. Jece Valadão, com uma calça de mescla surrada, camisão branco e um cocar de índio na cabeça, estava emocionado. Havia largado tudo no Rio — sua casa, seu prestígio conseguido em mais de sessenta filmes e sua próspera produtora, a Magnus — desde que Glauber o procurara para falar de A idade da terra.
Foi um encontro literalmente transcendental. Glauber contou a Jece que havia estado na casa de tia Neiva, a espiritualista de Brasília, onde teve “umas visões” de homens andando a cavalo e ouvira um conselho: “Por que não põe Jece Valadão no filme?”. Glauber queria que Jece fizesse “um Jesus Cristo apocalíptico” e o obrigou a ler a Bíblia, em vez de um roteiro. E ali, no primeiro dia de filmagem, com a procissão andando e Glauber filmando, Jece tratou de improvisar suas falas até que um congregado mariano chegou até ele e convidou-o em voz baixa para que desse o fora.
“Some daqui que você só faz filme pornográfico”, ordenou. Jece murmurou entre dentes: “Não saio de jeito nenhum. Meu trabalho é sério. Se fosse pornográfico convidaria sua mãe e sua irmã para contracenarem comigo”. Provocado, foi sendo cada vez menos Jesus Cristo e cada vez mais Jece Valadão. Até que um homem forte, de paletó, lhe encostou um revólver escondido no bolso e ameaçou-o de morte. Jece, tomado de pavor, ergueu a voz:
— Silvério, você vai me dar um tiro aqui, diante desta testemunha, que é padroeira da Bahia!
A multidão se animou. Jece pegou a deixa e continuou o discurso:
— Porque eles pensam que a santa é deles. A santa não é de ninguém! A santa é do povo!
Glauber estava fascinado. A câmera rodava e Sílvia Alencar, encarregada do som direto, caiu em prantos porque não conseguia gravar bem nem o discurso de Jece nem as ordens de Glauber. Foram todos salvos pela polícia até a sequência seguinte, no Museu de Arte Sacra da Bahia, onde durante três horas Glauber insultou e foi insultado pelo professor Valentin Calderón, diretor do museu, que proibiu a filmagem dentro do prédio. “Fascista! Quando estou na Bahia quem manda sou eu!”, gritava Glauber. “No museu mando eu! Ou ele ou eu!”, esbravejava Calderón para os enviados do governador Roberto Santos, mandados ali em missão pacificadora.
Os jornais baianos, e depois os de todo o Brasil, relataram o episódio e Glauber não se fez de rogado. Reacendera nele a velha chama e, enquanto filmava, dava entrevistas martelando a cabeça dos que imaginavam ser A idade da terra um filme como todos os outros. O de Glauber era determinado “pelo fluxo do inconsciente coletivo e por isso não tem roteiro prévio”. Ligava-se à “psicanálise transversal”, obedecia a uma “montagem nuclear” e era, além de tudo, “o produto estético-ideológico da democracia relativa do presidente Geisel”.
Então, os locais de filmagem começaram a se transformar em campos de batalha. O primeiro a tombar foi José Pinheiro, o “Pintinho”, maquinista respeitado de muitos filmes do Cinema Novo, calejado pelas câmeras que carrega e pelos cenários que monta. A equipe trocou presentes de Natal e Glauber deu a “Pintinho”, que não fuma, uma caixa de charutos. Ouviu desaforos como resposta e mandou demiti-lo. Em Brasília, para onde a equipe se transferiu depois de um mês na Bahia, os motoristas de órgãos do governo que emprestavam seus carros à produção foram proibidos por Glauber de se sentarem para comer nas mesmas mesas da equipe.
Esses motoristas seriam, como tantos intelectuais espancados antes por Glauber, agentes da CIA. Pedro de Moraes, um dos fotógrafos, ouvia quase todas as noites que era “o pior retratista do mundo”. Johnny Howard, câmera e americano de nascença, caiu doente, gemendo de dor, depois de passar a noite carregando o equipamento de cinemascope para filmar todas as escolas de samba do Rio, terceiro e último local das filmagens. Howard estava sendo boicotado pelos técnicos brasileiros. Segundo ele, passavam gelatinas e vaselinas em suas lentes e as imagens saíam todas borradas. Pediu ao diretor que desse um jeito naquilo (“Ou eu ou eles”, exigiu) e Glauber deu. Disse que gostava muito do trabalho de Howard, mas, tendo de escolher entre um profissional colonizador e os colonizados, preferia ficar com os colonizados e que o gringo fosse embora. E ele foi. Glauber acredita que essas coisas acontecem porque o ato de filmar cria problemas político-militares terríveis. “Sou prussiano com os atores”, reconhece. “Não admito indisciplina.”
Deveria estar previsto em algum roteiro, portanto, que ele e Norma Bengell se enfrentariam num duelo mortal. Os sinais disso, fortes como cicatrizes, podiam ser vistos a olho nu na biografia de ambos. Como Glauber, que foi um dos fundadores do Cinema Novo em 1962, com seu filme Barravento, Norma Bengell inscreveu seu nome nas origens do mesmo Cinema Novo também em 1962, ao interpretar Os cafajestes, de Ruy Guerra. Também como Glauber, ela foi presa e exilada nos anos 1970. E, mais uma vez como ele, voltou para o Brasil para retomar a carreira com grande dificuldade e ainda mais sob a suspeita de que enlouquecera — como Glauber teria enlouquecido —, pois havia tentado se matar em Paris. A campanha feminista radical que fez aqui, ao voltar, seria um atestado a mais de sua insanidade. Algum roteirista, mesmo o mais piedoso, poderia achar que daria certo esse encontro de egos dilacerados? Mas assim foi escrito, e assim foi feito.
Norma chegou à Bahia de carro, aconselhada por Glauber, que prescreveu a viagem por terra para que ela “se encharcasse de Brasil”. Ele lhe prometera um papel no Chile, no qual ficaria nua com a cordilheira dos Andes no fundo e um guerrilheiro ao seu lado. Não deu certo, mas ela ainda se lembrava. “Por que não agora? Era uma esperança”, contou depois. Estava ansiosa por reencontrar “o ser livre solto no ar”, o “poeta que rompe estruturas”, como ainda hoje o chama carinhosamente. Glauber recebeu-a com entusiasmo, mas com poucas palavras. “Você vai ser uma rainha. Lê aí umas mulheres afro-asiáticas”, ele lhe disse.
Assim como todos os atores de A idade da terra, Norma tinha uma noção muito vaga de seu personagem. Inventou uma certa Afro-Alemoíndia e duas vezes tentou filmar, sem conseguir. O diretor mandou: “Faz aí um sapatão, agente da CIA, qualquer loucura”. Ela decidiu imitar a si mesma. Com a voz sexy dos tempos em que era vedete de Carlos Machado, cantou um frevo de sua autoria: “Como eu queria fazer pra você/ Uma canção de amor/ Onde existissem arcos floridos, mares vermelhos/ Céus coloridos”. Glauber desaprovou e ela partiu para a expressão corporal. Jogou a cabeça para baixo, foi subindo devagar e quando sentiu a câmera quase em close, gritou:
— Mata!
Glauber ficou possesso. Norma fez então o papel de um índio, que se transformava numa feminista e dava um grito de guerra. Foi despedida. Protestou: “Não quero. Não quero e não vou ser despedida”. Trancou-se no camarim e folheou um livro com fotos de africanos maquiados. Fez trancinhas nos cabelos, com búzios nas pontas, pintou o corpo todo de marrom, teceu uma tanguinha de palha e dependurou colares de Iansã para tapar um pouco os seios. Tizuka animou-a: “Vai lá, você está linda”. Sofreu e gritou: “Querem cortar minha cabeça. Eu vou me matar”. O coro, no centro do palco, também gritava “Ai, meu Deus!”. Norma abriu a porta do camarim e entrou no lugar da filmagem. “Ai, meu Deus, digo eu”, pensou.
O diretor não a reconheceu. “Você aí, vem cá”, ordenou.
Havia no palco mulheres fantasiadas de amazonas e ela se dirigiu para um trono enfeitado com penas de pavão e avestruz. Foi quando um outro fenômeno paranormal baixou sobre o filme. Norma ouviu, vinda do meio do coro, uma voz que lhe soprava: “Filma! Filma!”. Sentou no trono e começou a emitir sons, captados do além de Iansã. Esses sons guiaram as palavras que ela disse: “Espaço, espero, escuto”. Glauber finalmente a reconheceu, ficou irritado, mas depois a chamou num canto para dizer: “Vi o material. A rainha reina outra vez”.
Nunca mais se falaram. Norma obrigara Glauber a pôr em prática a sua pregação de que a arte é livre e, portanto, deveria ser livre para todos. Por isso, teria que ser punida. Filmou mais duas sequências e foi demitida de novo. Dessa vez aceitou. E no espelho do camarim deixou escrita com batom a lápide de sua passagem pelo filme: “Norma Bengell, 1935-1978”.
Nem Jabor, velho amigo de Glauber, aguentou: “Hei de matá-lo com minhas próprias mãos”, rugiu.
Glauber trombou com o elenco inteiro, prussianamente. Tarcísio Meira, que exigiu os diálogos por escrito, ficava desconcertado com a dureza das ordens. Glauber sustenta que essa dureza foi um método para destruir a imagem de galã de Tarcísio e assim captar “a esquizofrenia do personagem”. Maurício do Valle, o assustador Antônio das Mortes de filmes anteriores de Glauber, é um homenzarrão de sensibilidade infantil, capaz de chorar mas também de bater na equipe inteira. “Tive com ele um relacionamento de malandragem”, admite Glauber. Quanto a Antonio Pitanga, velho amigo do diretor, foi tratado com toda a intimidade e aspereza que essa condição lhe dava. Se duvidasse quanto ao seu personagem e sua fala, e demonstrasse isso, Pitanga ouvia primeiro a voz de Glauber ordenando ao fotógrafo “Corta!” e em seguida dirigindo-se a ele:
— Mas o caralho! Se você não é ator eu te fodo! Seu escroto! Negro burro!
A falta de dinheiro continuava crônica e uma visita aos locais de filmagens feita por Alex Ponti, filho do produtor Carlo, não resultou em nada. Glauber jantou com ele em companhia de Gustavo Dahl e Olivier Perroy, responsável pela Filmar, empresa paulista na qual os Ponti têm interesses. Alex queria propor alguma espécie de acordo sobre a distribuição internacional do filme, mas Glauber repeliu a proposta secamente.
Depois, informado por Diniz de que havia apenas cerca de 321 mil cruzeiros em caixa, explodiu: “Porra! Você nem sabe o número certo?”. Diante das contas, continuou, irritado: “Não me interessam as contas. Me interessa o comportamento!”. Diniz foi à casa de Gustavo Dahl e entregou os pontos: “Não dá mais”. Gustavo concordou, mas fez um pedido: “É. Vê lá o que você consegue com ele”.
Por incrível que pareça, as filmagens terminaram. Exatamente, embora com enorme atraso, no dia 6 fevereiro de 1978. A idade da terra deveria ter cinco horas de duração e a Embrafilme, que começara com 30% da produção, tornou-se gradativamente dona integral da obra. A equipe, que chegara a ter 37 pessoas, resumiu-se no final a três: um montador, um administrador e o diretor. Glauber passou os catorze meses seguintes montando os enormes blocos do filme, tentando reduzi-los e dar-lhes uma ordem.
Em abril de 1979, Roberto Farias e Gustavo Dahl deixaram a Embrafilme. A nova diretoria providenciou injeções suplementares de dinheiro para que a produção não naufragasse de vez. A amizade com a CPC acabou em gritaria, com Glauber esmurrando mesas e jogando livros para todos os lados. “Eu não posso trabalhar assim com essa calma!”, repetia. Desapareceu de vez da casinha na Urca batendo a porta, bradando já na rua “Relações rompidas! Relações rompidas!”. Glauber andava pálido, os cabelos eriçados, os olhos, antes saltados, afundados em cansaço.
Celso Amorim, o novo presidente da Embrafilme, costumava visitá-lo na moviola em que fazia seu trabalho de Jó. “O filme até que não saiu tão caro”, dizia Amorim, “pois 20 milhões de cruzeiros a preços internacionais significam menos de 400 mil dólares — um centésimo do custo de Apocalypse Now”. Foi o primeiro espectador da versão definitiva, reduzida afinal para duas horas e meia.
Em maio, quase no fim dos trabalhos, o pai de Glauber morreu. Ele ficou outra vez deprimido porque sonhava mostrar-lhe A idade da terra. Seu contrato de trabalho agonizava e se sentia mais uma vez abandonado. Precisava cuidar da vida, pensou. Estava com 41 anos, ganhava 50 mil cruzeiros por mês de salário e a família aumentava.
Do começo ao fim de A idade da terra Glauber teve três filhos, dois deles com sua então mulher, Paula Gaitán, que é a cenógrafa do filme. Temendo um ato terrorista contra ela e as crianças, mudou-se para o hotel em Ipanema. Decidiu: assim que A idade da terra ficasse pronto iria com a família para o Festival de Veneza e depois passaria outra temporada na Europa. O Brasil, definitivamente, lhe dava desgosto. Dizia em todo lugar que “este país está fodido” e reclamava dos programas de televisão, numa crítica em que cunhou uma de suas inúmeras frases célebres: “A TV não tem linguagem; o único personagem importante das novelas é a porta da sala”.
No estúdio em Botafogo ele era esperado, portanto, com alguma ansiedade para o ato final de A idade da terra — a conclusão da odisseia. O meio cinematográfico, que costuma ser especialmente impiedoso com seus gênios, verdadeiros ou falsos, apostava que aquele momento não chegaria jamais. O ambiente lá estava crispado de tensões e ressentimentos. Cineastas estreantes e anônimos sentiam-se no direito de mandar Glauber “à puta que o pariu” quando ele atrasava seu horário de saída da sala de montagem, impedindo que as futuras obras-primas deles entrassem lá para serem acabadas. Arnaldo Jabor, velho amigo, quase foi agredido a pescoções quando disse que “só podia ser brincadeira” a obsessão de Glauber com atentados planejados contra ele. Jabor, que tem dois metros de altura e estava no estúdio dublando seu filme Eu te amo, rugiu:
— Eu hei de matá-lo com minhas próprias mãos!
Glauber chegou às três horas da tarde, não cumprimentou ninguém e às três e meia trancou-se com o técnico de som, Nelson, para ajustar o tal som de avião misturado com música. Parecia um filme já visto antes. A cena da vida real era absurdamente igual a outras desde o longínquo dezembro de 1977. “Você está louco!”, gritava Nelson. “Assim não é possível! Você quer destruir o estúdio, quebrar os aparelhos!”
Às cinco em ponto Glauber deu os trabalhos por encerrados e saiu da sala, em silêncio, e outra vez não se despediu de ninguém da fila de cineastas e montadores que estavam ali só esperando que fosse embora. Essa nova geração também se manteve quieta diante do dinossauro — jovem ainda, mas pré-histórico — que se afastava. Glauber murmurou que sentia saudade de casa e só queria, naquele momento, estar no hotel, com a mulher e os filhos.
Vestido num terno cinza amarrotado e numa camisa branca desabotoada que deixava os vastos pelos do peito à mostra, comeu uma empada com guaraná no balcão da padaria em frente ao estúdio. Parecia feliz. “Ficou um filme muito bom”, ele disse, palitando os dentes. “Muito bom mesmo”, repetiu na calçada, enquanto acenava para um táxi. Entrou nele e foi para casa.
Texto revisto e ampliado em 2000. Essa versão estendida traz notas de bastidores, detalhes que não entraram na edição impressa, além de um inusitado depoimento do autor.