Gloria Swanson, louca, posa para as câmeras achando ser a grande estrela que foi no passado em Crepúsculo dos deuses (1950), de Billy Wilder ©IMDb

Das telas para a memória

Brilho eterno de uma mente com lembranças

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Antigamente os teóricos do cinema pregavam a existência de um “específico fílmico”, uma coisa que só poderia ser encontrada numa tela de cinema, e nunca nas demais artes. Tinham alguma razão, mas o populacho não queria nem saber de teorias estéticas. O povo se lembrava mais é dos momentos emocionantes que lhe deram cenas como as de corsários enfrentando heróis navais, de caubóis e de índios se trucidando, e de muitos, muitíssimos beijos. Como o de Kim Novak e James Stewart num dos maiores e mais demorados já vistos, em Um corpo que cai (1958), quando a câmera gira em torno do casal, que por sua vez gira num tablado, e tudo gira com letreiros de gás neon verde ao fundo. As plateias ignoraram outros grandes momentos da obra-prima de Alfred Hitchcock e guardaram aquele, terrível, dele colando os lábios nos de uma mulher que supunha morta. Era uma cena para não se esquecer.

Annie Girardot, acuada, no clássico de Visconti ©IMDb

O cinema está cheio desses momentos inesquecíveis, nem importa que tenham aparecido em filmes sem importância, como em A mosca da cabeça branca (1958), de Kurt Neumann, quando o personagem transformado em mosca cai numa teia de aranha e grita com a cabeça que lhe resta, antes de ser devorado: “Socorro!”. Esses supremos momentos, de terror ou ternura, valem só num certo lampejo de tela. Se não fosse assim, a memória já teria apagado o final de um dos filmes mais ridículos já feitos, Sansão e Dalila (1949), de Cecil B. deMille. Foi quando o cego-canastrão Sansão (Victor Mature) estende os músculos e derruba os pilares do templo cheio de infiéis. Impressionante mesmo para plateias infantis, que ficaram com a cena traumática nas suas lembranças. Crescidas, essas plateias guardaram na cabeça outros instantes de arrepiar. Descobriram, por exemplo, que pontos altos de alguns filmes ressuscitam em outros, por incrível que pareça.

Foi assim que viram um dos momentos clássicos do cinema, a cena no massacre do povo em O encouraçado Potemkin (1925), do russo S. M. Eisenstein, ressurgir brilhantemente num policial de 1987 feito por Brian de Palma, Os intocáveis, com um bebê num carrinho despencando pela escada e tudo. Plágio consciente, sim, pois De Palma imita tanto os outros que se tornou inimitável. Mas outras cenas para não se esquecer reaparecem de formas mais sutis. Lembram do final de O grande golpe (1956), de Stanley Kubrick, quando o derrotado assaltante Sterling Hayden vê o dinheiro de seu roubo sendo levado pelo vento numa pista de aeroporto? Lembram também do fim de O tesouro de Sierra Madre (1948), de John Huston, quando o derrotado ladrão Humphrey Bogart vê o ouro que roubou levado pelo vento do deserto? Pois é. Nada se perde, tudo se transforma. São os chamados “momentos privilegiados”, como os chamou o escritor James Joyce, quando tudo transcende além de seus contextos.

Aqui estão alguns deles no cinema, entre músicas e lágrimas, além de outros sentimentos.

– Annie Girardot abre os braços como crucificada para que Renato Salvatori a esfaqueie e mate em Rocco e seus irmãos (1960), de Luchino Visconti.

– A suprema humilhação quando Peter Lorre pergunta a Humphrey Bogart por que ele o despreza e Bogart responde: “Eu o desprezaria, se pensasse em você”, em Casablanca (1942), de Michael Curtiz.

– Jack Lemmon vestido de mulher revelando ao seu pretendente por que não pode se casar com ele, ouvindo como resposta “Ninguém é perfeito”, em Quanto mais quente melhor (1959), de Billy Wilder.

– Marcello Mastroianni, em sua decadência final, encara numa praia um grande e misterioso peixe em A doce vida (1960), de Federico Fellini.

– Um morcego ataca um rato numa parede e o sangue escorre entre guinchos em Farrapo humano (1945), de Billy Wilder.

– Marlon Brando discursa aos romanos sobre o assassinato de Júlio César e subverte o povo em Júlio César (1953), de Joseph L. Mankiewicz.

– A câmera se afasta do porta-malas de um carro, onde há uma bomba, sobe e passa por prédios e o carro enfim explode diante de um posto de gasolina, tudo numa tomada sem cortes em A marca da maldade (1958), de Orson Welles.

– Joel McCrea, já velho, tomba ferido de morte ante seu companheiro Randolph Scott, também velho, no faroeste Pistoleiros do entardecer (1962), de Sam Peckinpah, e diz: “Nos veremos em breve, sócio”.

– Charles Chaplin, vestido de Adolf Hitler, brinca com um globo terrestre como se fosse uma bola em O grande ditador (1940), de Charles Chaplin.

– Dorothy Comingore canta ópera sem talento, composta por um maestro talentoso, Bernard Hermann, ante holofotes e plateia atônita, num momento esfuziante em Cidadão Kane (1941), de Orson Welles.

– John Wayne, racista feroz, quer matar sua sobrinha meio índia (Natalie Wood), mas se arrepende, levanta-a nos braços e diz: “Vamos para casa”. Em Rastros de ódio (1956), de John Ford.

– Vivien Leigh come legumes arrancados da terra e jura: “Nunca terei fome de novo”. Em … E o Vento Levou (1939), de Victor Fleming.

– Lamberto Maggiorani (ator não profissional) chora ao lado do filho depois de ser flagrado como gatuno em Ladrões de bicicletas (1948), de Vittorio de Sica.

– Gene Kelly se molha todo, sapateia e levanta a voz em Cantando na chuva (1952), dirigido por ele mesmo e Stanley Donen.

– Rita Hayworth tira as luvas, canta, dança e enfeitiça a plateia em Gilda (1946), de Charles Vidor.

– Visto do alto, um posto de gasolina pega fogo e explode ante o ataque de seres alados, que parecem aviões de guerra, em Os pássaros (1962), de Alfred Hitchcock.

– James Dean leva dinheiro e chora aos pés do pai, que o repele em Vidas amargas (1955), de Elia Kazan.

– As bicicletas conduzindo crianças voam sob o comando de um alienígena em ET: o extraterrestre (1982), de Steven Spielberg.

– O gorilão King Kong, seu olhar triste e sua morte em três versões, de 1933, 1976 e 2005. É só escolher.

– Doris Day num palco cantando Ten Cents a Dance, linda e tristíssima em Ama-me ou esquece-me (1955), de Charles Vidor.

– Janet Leigh entra num chuveiro e é esfaqueada e morta por alguém, caindo de olhos abertos e deixando seu sangue escorrer num ralo, em Psicose (1960), de Alfred Hitchcock.