Entronizado, Fellini se prepara para mais um plano de mestre ©John Springer Collection - Getty

Fellini, a medida do gênio

O mais aclamado diretor italiano acrescenta um novo capítulo à sua vida de cinema

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Sendo a história de Federico Fellini, Oito e meio é também um número, uma medida e uma soma: é um número de cinema, a medida de um artista e a soma dos filmes desse artista. Matematicamente certo, Fellini conta a história de um homem (ele mesmo) e de sua imaginação, sua saudade da infância, seus amores presentes e sua esperança no futuro. Marcello Mastroianni, Claudia Cardinale, Anouk Aimée, Sandra Milo, Rossella Falk e Barbara Steele compõem o elenco de Oito e meio, filme que conseguiu ser elogiado no mesmo dia pelo jornal americano New York Times e pelo russo Izvestia, ganhando – além de vários outros prêmios – o Oscar de melhor filme estrangeiro e o troféu de melhor filme exibido no Festival de Moscou do ano passado.

Oito e meio conta a vida (ou pelo menos um pedaço dela) de seu autor, Federico Fellini, que no entanto nega que o personagem, Guido Anselmi (Marcello Mastroianni), tenha alguma relação com ele próprio. É isso o que Fellini tem dito aos jornalistas, mas a mesma coisa já dissera anteriormente Arthur Miller sobre a sua última peça, Depois da queda.

Miller e Fellini são, certamente, as duas únicas pessoas que negam o tom biográfico de suas obras; o primeiro contando a história de um casamento (com Marilyn Monroe), o segundo refletindo sobre as dificuldades de um diretor de cinema (Federico Fellini). Num caso e no outro, as evidências desmentem seus autores, e, se estes insistem na negação, os motivos devem ser puramente formais. Não deixa de ser perigoso para um autor pintar o seu próprio retrato.

Mas a vida de Fellini é algo que merece ser contado; sob muitos aspectos, sua história é parecida com uma caricatura galopante de certos romancistas americanos. Ainda jovem, deixou a cidade natal, Rimini, onde nascera em 1920, e transferiu-se, cheio de sonhos, para as grandes oportunidades de Roma (a mesma coisa fizera o personagem principal de A doce vida). Seu primeiro emprego foi na revista Marc’Aurelio, que se especializava em fazer caricaturas de militares (era o tempo da guerra). Daí passou a repórter (como o personagem de A doce vida), fotógrafo, locutor de rádio e escritor de fotonovelas (seu primeiro filme, Abismo de um sonho, era uma gozação sobre os ambientes de fotonovelas). No ambiente da Itália semidestruída pela guerra, Fellini oscilava de um emprego a outro, sem saber ao certo o que queria; então apareceu um padre na sua vida. Foi uma visão fantástica.

Guido (Marcello Mastroianni) não via bem à sua frente. Cansado, sem nenhuma ideia para filmar, ele procurava algo que o reconciliasse com sua inspiração ©Tazio Secchiaroli

Do circo ao cinema
Tão fantástica que o padre era, na verdade Aldo Fabrizi, que procurava alguém para escrever os shows de uma companhia de diversões ambulante. Com a companhia, Fellini correu a Itália. Quando voltou para Roma, tinha aprendido a técnica de contar histórias e de explorar pequenos incidentes aparentemente sem importância. Sua mulher, e depois atriz, Giulietta Masina, ele conheceu nessa época. A guerra estava acabando. No meio dos destroços, a arte do cinema – uma velha paixão dos italianos – começava a dar seus primeiros passos, quase cortados pelas bombas e fuzilamentos. Era o começo de uma arte pobre, sem retoques e sem estrelas, que mudaria o panorama do cinema mundial nos anos seguintes. Era o (neo)realismo, e isso convinha a Federico Fellini.

Seu primeiro trabalho no cinema foi escrever uma história para Roberto Rossellini. Contava o episódio verídico do fuzilamento de um padre (ainda Aldo Fabrizi) e, sob a direção de Rossellini, o pequeno roteiro de Fellini transformou-se em um clássico do cinema: Roma, cidade aberta. Daí em diante, não deixou mais a profissão e compreendeu que ele, homem de mil profissões, sempre fora, sem saber, um homem de cinema. Continuou escrevendo roteiros, e alguns se transformaram em pontos altos do neorrealismo: Paisà, de Roberto Rossellini; Em nome da lei, de Pietro Germi; Milagre em Milão, de Vittorio de Sica; O caminho da esperança, de Pietro Germi; Francisco, arauto de Deus, de Roberto Rossellini; e O moinho do Pó, de Alberto Lattuada. Era hora de começar a dirigir ele mesmo os seus roteiros.

Recorte de época: reprodução da página de abertura para essa matéria, 1964 @Cinelândia

História em números
Oito e meio é o oitavo (e meio) filme de Fellini. O “meio” nada tem de misterioso. Refere-se simplesmente à estreia de Fellini na direção, em Mulheres e luzes (1950, no qual ele dividiu o serviço com Alberto Lattuada). A obra de Fellini é pequena, em número de filmes (um a cada dezoito meses), mas é a maior, em repercussão popular e artística, de toda a história do cinema. Em maior ou menor escala, Fellini sempre teve o hábito de colocar um pouco de sua própria vida nos filmes:

1) Abismo de um sonho (Lo Scceico Bianco), em 1952, com Alberto Sordi, Brunella Bovo e Leopoldo Trieste. História de uma jovem provinciana, apaixonada por fotonovelas, que vai a Roma passar sua lua de mel e lá quase põe a perder o próprio casamento, por causa de sua paixão por um herói de revista, o Xeique Branco.

2) Os boas-vidas (I Vitelloni), em 1953, com Alberto Sordi, Franco Interlenghi e Leopoldo Trieste. Crônica de um grupo de rapazes de província (que bem pode ser Rimini, cidade natal de Fellini) em que quatro deles terminam casados e o quinto parte para Roma, cheio de sonhos e pesaroso em deixar sua terra.

3) A estrada da vida (La Strada), em 1954, com Giulietta Masina, Anthony Quinn e Richard Basehart. A vida numa companhia de diversões ambulante, que percorre as estradas da Itália. O primeiro sucesso internacional de Fellini e o começo de uma série interminável de prêmios.

4) A Trapaça (II Bidone), em 1955, com Broderick Crawford, Franco Fabrizi e Richard Basehart. As artimanhas e golpes de um grupo de trapaceiros profissionais, os “bidoneiros”, espécie de gente muito comum na Itália. Fellini mostrou conhecê-los bem.

5) Noites de Cabíria (Le Notti di Cabiria), em 1957, com Giulietta Masina e François Périer. Ascensão, queda e recuperação de uma prostituta, num ambiente de rua, chuvas, milagres e trapaceiros. A maior consagração popular de Fellini. Ganhou centenas (repetindo: centenas) de prêmios em todo o mundo, e continua ganhando.

6) A doce vida (La Dolce Vita), em 1960, com Marcello Mastroianni, Anita Ekberg etc. O maior escândalo da história do cinema e, justamente, um dos maiores filmes do cinema. Um repórter levado, de episódio em episódio, a todos os vícios da moderna sociedade. No fundo, pensa voltar à sua província natal; isso é impossível.

7) Episódio de Boccacio 70, ainda inédito no Brasil. Primeiro trabalho em cores: Oito e meio.

O melhor dos mundos
Fellini tem dito aos jornalistas que o personagem de Oito e meio, Guido Anselmi, não é ele mesmo por ser um retrato precipitado, uma tempestuosa cópia sem revisão. É uma meia verdade. Guido Anselmi é um diretor de cinema, e Fellini o surpreende no momento em que se prepara para começar mais um filme. Seu trabalho anterior fora um sucesso sem precedentes (A doce vida também foi um sucesso sem precedentes) e agora ele está num desagradável dilema: não tem absolutamente nenhuma ideia na cabeça. Está cheio de dúvidas, vacilações e desencantos. Uma profunda confusão o envolve, e não se trata de uma confusão passageira: é toda uma vida em revolta, convertida numa vasta desorganização.

Oito e meio é um pouco da vida agitada de Guido, na qual se misturam imagens da vida passada e da vida presente. A ação se passa em uma estância de férias, onde Guido vai buscar um pouco de repouso e tentar encontrar-se outra vez com a inspiração. Ali desfilam os rostos de sua vida: a esposa, a quem não mais ama; os colegas de ambiente cinematográfico; a amante vulgar, superficial e um pouco “grossa”. Está também Claudia Cardinale (encarnando-se a si mesma), a quem Guido contempla como uma imagem quase impossível de pureza; e um ou outro rosto de criança, surgido nos labirintos da memória e arrancados de sua própria infância.

Há muitos outros rostos familiares a Guido: os padres, as mulheres que lhe davam banho, os professores que surravam os alunos desobedientes, a prostituta repulsiva que tentava os meninos na praia (a primeira imagem do pecado). Mas não são mostradas apenas imagens do passado e do presente: há também visões de um mundo imaginário e feliz, como por exemplo a de que a monogamia cederá seu lugar a um harém, dando ao homem a oportunidade de verificar que os caminhos da felicidade são, de algum modo, os caminhos que levam à infância, época em que as mulheres dão banho nos meninos. Há dezenas de outros rostos e situações, mas é impossível descrevê-los no papel.

A ideia de fazer Oito e meio, ao que parece, estava na cabeça de Fellini havia muito tempo. Três novelistas (Brunello Rondi, Ennio Flaiano e Tullio Pinelli) começaram a trabalhar no roteiro em 1961. Raramente viam Fellini, que já lhes explicara o que queria. Quando tudo ficou pronto, Fellini reuniu o material e ordenou as histórias a seu gosto, unindo-as e acrescentando-lhes mais uma parte, que ele mesmo escrevera. A colocação disso tudo em cena, sob as ordens de Fellini, começou logo depois.

Entendida ao pé da letra, a história de Oito e meio, sendo autobiográfica, deixa transparecer que Fellini vive atualmente uma crise de criação. É por isso que as suas negativas quanto ao caráter autobiográfico do filme são apenas uma meia verdade. Pois Oito e meio, biografia, é um filme tão rico que não importa se mostra um personagem em luta para criar. Nesse ponto – e só nesse – Oito e meio confirma o desmentido do autor, pois o pouco inspirado Guido Anselmi não é, nem poderia ser, o próprio Federico Fellini.