O poderoso chefão é um documento em três vias: violência, finanças e uma certa saudade dos bons tempos. Duas delas são velhas conhecidas da vida cinematográfica americana; a outra surgiu das necessidades do momento. Com a primeira, conquistou-se o Oeste e combateram-se os gângsteres, gerando, na tela, dois magníficos gêneros de filme. Com a segunda, foi possível manter os terrenos ganhos e expandir-se para outros. Com a última, enfim, nasceram os exercícios suspirantes, quando nada mais havia a conquistar e o público escapava dos cinemas em proporções cada vez mais alarmantes. É um tripé exemplar: o público, segundo ensinam as experiências mais recentes, ama o passado, mesmo o passado que não viveu e conhece apenas de fotografias e discos de 78 rpms.
A essa sedução antiga e romântica, além disso, o milionário espetáculo da Paramount acrescentaria outras. A história de uma família como tantas outras: ela se comove com o casamento da filha, bebe vinho e come massas numa grande mesa. É o retrato de um patriarca a caminho do túmulo, envolvido numa aura de inexplicável e enternecedora melancolia. É uma epopeia de homens de negócios e, também, uma bela demonstração de amizade entre pessoas que se sentem ligadas a um mesmo destino. Acima de tudo, é a mais recente coroação do trabalho de um ator, Marlon Brando, a tal ponto característico que por alguns momentos fará voltar os tempos em que havia “filmes de Emil Jannings” e “filmes de Paul Muni”, e não filmes de diretores ou de estúdios.
Como praticamente todas as famílias mostradas modernamente na tela, de Vidas amargas (de Elia Kazan) a Rocco e seus irmãos (de Luchino Visconti), a de O poderoso chefão (de Mario Puzo, escritor, e Francis Ford Coppola, diretor) é surpreendida num momento de crise. O velho don Vito Corleone (Marlon Brando), um titã dos primeiros anos do século, chega à década de 1940 ainda firme no comando da família e dos negócios. No dia do casamento de Connie (Talia Shire), filha de don Corleone, os negócios rotineiros continuam sendo tratados na sala do chefe da família. São pedidos de vingança e favores, sussurrados ao pé do ouvido, todos atendidos pelo bondoso patriarca. Ele, no entanto, ao oferecer a mão para o ritual de beijos agradecidos, não poupa a ninguém a humilhação de lembrar sempre quem é o maior de todos. Exerce o poder com a displicência e os bons modos de quem jamais foi sequer posto em dúvida.
Semelhante autoritarismo não poderia durar. A filha casou-se com o miserável traidor, Carlo (Gianni Russo); um outro filho, Fredo (John Cazale), é francamente débil mental; e um terceiro, Sonny (James Caan), impulsivo demais para que se possa confiar nele. O último, Michael (Al Pacino), descreve para a namorada (Diane Keaton) os métodos violentos que a família emprega no seu trabalho (cassinos, prostituição, bebidas) e comenta: “É a minha família. Não sou eu”.
Duvall, Brando e Coppola: fraternidade manchada de sangue ©IMDb
Estava enganado, como praticamente todos em cena também se enganaram. As quase três horas de duração do filme vão mostrar como o velho Corleone, insensível às previsões do seu conselheiro e filho adotivo, Hagen (Robert Duvall), fecha os olhos ao negócio do futuro: narcóticos. Por não querer entrar nesse ramo, que considerava “sujo”, don Corleone é baleado. A guerra, como as dos últimos meses em Nova York, não demora a explodir e, de morte em morte, toda a estrutura familiar será refeita.
Michael, após a morte do pai (uma sequência patética e admirável, com o velho brincando no jardim com um dos seus netos), será o novo chefão. Durante o batizado de seu sobrinho, Michael, piedoso, reza enquanto os seus capangas vão assassinando, numa espiral de cabeças e peitos explodindo em sangue, todos os rivais ainda em volta.
O que levou Michael a tomar o lugar do pai, que não queria imitar e até mesmo condenava? Aparentemente, a falta de quem o substituísse. No fundo, porque a imagem do velho o atraiu como um ímã: ele era o espírito da família, o superpai com quem não fosse como ele e que prezava os valores familiares tanto, se não mais, quanto os dólares que ganhava e os negócios criminosos. “Não é coisa pessoal, da família”, distinguem sempre todos os personagens. “É coisa de negócios.” E tome bala.
A diferença entre o chefão I e o chefão II está na própria passagem do tempo que assinala a queda de um e ascensão do outro. A voz sussurrada e os gestos delicados do primeiro desaparecerão nas frases secas e na frieza calculista do segundo, exatamente como a América ainda saudosa de outros tempos assiste, imponente, à complexidade cada vez maior de todos os sentimentos e todos os negócios, incluindo os da Máfia. O desfile de automóveis, cartazes de shows (num deles: “Uma nova dupla, Dean Martin & Jerry Lewis”), trajes e atitudes pontuam precisamente essa troca de calendários. Michael, quando dizia no começo à namorada ser diferente da família, era ainda o soldadinho condecorado na guerra e que dispunha de música (de Nino Rota) para seus namoros. Michael, casado por conveniência (não há verdadeira família sem filhos), no fim, mente e diz a verdade à mesma mulher com o ar igualmente neutro. O resto é silêncio.
Nesse álbum de família, o retrato de Marlon Brando ganharia a moldura de ouro ©IMDb
Talvez a conjugação de tantos temas emocionais – pai, mãe, irmãos, envelhecimento – com outros, mais práticos (ascensão, independência, riqueza), tenha sido um peso excessivo para a fluidez do filme. Mas é provável também que essa intenção não figurasse nos planos de quem quer que seja: era o bastante que funcionasse, ainda que fazendo o barulho de uma geladeira velha. Coppola, ao contrário dos diretores de antigamente, teve uma formação especialmente cinematográfica (está com 33 anos e cursou a escola de cinema da Universidade da Califórnia) e resolve profissionalmente um problema filosófico nem tão simples nem tão cômico: quando não se vai para a frente, o jeito é andar para trás.
As tragédias poéticas (Vidas amargas) e políticas (Rocco e seus irmãos) relatadas nas duas famílias, de Kazan e Visconti, certamente devem ter comovido o estudioso Coppola. E só. A sua, antes de tudo, é uma tragédia de melodrama. É um pastiche de muitos estilos diferentes, impessoal mas essencialmente pragmático.
Na verdade, O poderoso chefão pretende seguir outros modelos. O mais evidente deles é a esteira de uma tradição hollywoodiana moderna: de Bonnie and Clyde aos cowboys envelhecidos e dignos de piedade de hoje em dia, de Resgate de uma vida (quarenta anos de filme policial concentrados numa antologia de bolso) à A última sessão de cinema (os anos 1950, espiritual e estilisticamente revividos), vêm surgindo provas de que o cinema, nesses imaginários exercícios de memória, pode significar para os espectadores exatamente o mesmo que um álbum de fotografias.
Nesse álbum, o retrato de Marlon Brando certamente ganharia a moldura de ouro. Seu personagem, vivo e sensível, todo calcado no estilo de maquiagem e impostação que praticamente não se usa mais nos filmes modernos, é uma joia da antiguidade, brilhante e rica, valiosa porque cada vez mais rara.