O fundo da vergonha

A burocracia e as dores de um fracasso anunciado

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O que se segue são elementos para uma história de terror. Diferente de outros textos imaginosos, cheios de som, fúria e silêncios de congelar a alma, frutos da fantasia privilegiada de grandes artistas, este decepciona pelo seu enredo. É vulgar e tem a profundidade de um pires de água. Ainda assim, talvez valha a pena contá-lo, pelo puro desgosto em contá-lo. Se às vezes se parece com aquelas tramas fora do comum, é por mera coincidência, como explicavam os filmes de antigamente.

O caso relatado aqui é verídico. Quase uma notícia de jornal, não fosse o estigma de que, num jornal, a única coisa verdadeira em geral é a data. Real, “da cabeça aos sapatos”, como diria o grande ficcionista Nelson Rodrigues. Ele classificaria este relato, sem demonstrar por ele maior interesse, na categoria daquilo que chamava com desdém de “realismo torpe”. Assim classificados, seguem-se os fatos. Senhoras e senhores do júri, olhai este emaranhado de espinhos.

Dia desses caiu-me um dente. Caiu porque assim estava escrito. Cumpria o destino comum a milhões de outros dentes brasileiros, condenados à queda desde o momento em que nascem, e muito antes da hora fatal. Outros dentes deveriam segui-lo no despenhadeiro e portanto procurei salvá-los. Isso tinha um preço. O resgate exigido pelo dentista, contatado para a operação de resgate preventivo, era muito alto. Não havia como pagá-lo. Se meus dentes estão hoje onde devem estar, garantindo ao seu dono o sorriso que ele exibe mesmo nos momentos de maior nervosismo, é porque uma intenção delituosa passou a mover os seus atos.

Eu me explico, contrito. Sem direito, justificativa ou razão, movido apenas pela ganância, enveredei pela senda do crime. Tentei roubar meu Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Sabia que essa foi uma das grandes criações do doutor Roberto Campos, nos tempos felizes em que era ministro do marechal-presidente Castello Branco. A lei do doutor Roberto tungava os trabalhadores, mas ainda assim mandava pagar aos demitidos um salário, ou quase, por ano trabalhado. Obedecendo a certas regras, é claro. Entre outras restrições, incluía a falta de socorro a dentes em desgraça.

Mas eu tinha o que receber, e não me importava o motivo. Eram uns cobres depositados pela revista IstoÉ no tempo em que trabalhei lá, de dezembro de 1981 a setembro de 1984, quando pedi demissão (coisa que não se deve fazer nunca, como aprendi entre calafrios). Mesmo sabendo que, para botar as mãos no Fundo, o mais prático é morrer, deixando aos parentes o fardo de arrancá-lo das mãos do governo, trinquei os dentes na frente do espelho e prometi a eles: “Vamos lá, garotos”.

Tudo pelo social, eu sabia, não incluía sorrisos saudáveis. Mas esse entrave deveria ser para os outros. Eu não era — como não sou até hoje, na minha avaliação otimista — apenas um futuro banguela, um brasileiro comum, desses que povoam as canções de Chico Buarque e outros bambas do nosso cancioneiro popular. Minha vida não daria samba. Porque eu era também um microempresário, uma raça valente, especial, digna de hinos, e que pode sacar o dinheiro do seu Fundo para aplicá-lo nos negócios, gerando riquezas para o país. Se esses negócios se referem a cáries ou computadores, pouco importa. Foi o que pensei, no meu pecado original. Aí, tudo começou.

Eu vivia num país que possuía uma Constituição jurídica e onde reinava a paz; todas as leis estavam em vigor. Eu sempre tendera a encarar as coisas despreocupadamente, a acreditar no pior somente quando acontecia e a não me inquietar com o dia seguinte mesmo quando sua perspectiva fosse ameaçadora.

Ainda assim, achei excessivo o que imediatamente exigiram de mim. Dezoito papéis. Apensos (anexados, juntados) a um processo que se arrastou por sete meses; nem assim tão numerosos eles ajudaram a liberar o Fundo. Fizeram mais do que isso — forçaram minhas visitas a um casarão decadente e descascado, numa ladeira de São Paulo, em busca de notícias sobre o andamento do processo. Lá no casarão descascado juntei-me a outros delinquentes como eu. Eles formavam filas silenciosas que se estendiam pela calçada, debaixo de sol ou chuva. Um porteiro caolho e careca, com um palito alojado numa orelha, exigia “a senha” a quem quisesse entrar no casarão. Poucos tinham uma senha. Naturalmente, dada minha importância, recebi uma. Mas, de posse dela, e já dentro do prédio, fiquei sabendo que meu processo havia sido “desentranhado”. Isso queria dizer que eu havia batido na porta errada.

Sempre é possível saber alguma coisa, com paciência. Como o Banco Nacional da Habitação (BNH), administrador do Fundo, havia falido, apesar de tantos bons serviços prestados à nação, eu deveria procurar a Caixa Econômica Federal, herdeira do BNH. Foi o que fiquei sabendo no prédio descascado, junto com uma advertência: que eu não aparecesse na Caixa-BNH sem ter como provar o motivo pelo qual queria gastar meu próprio dinheiro. Estou perdido, pensei, num repente de paranoia inexplicável.

Foi minha primeira sensação de desamparo nessa história que se tornaria tenebrosa. E se eu fosse apanhado? No entanto, meus dentes tremiam de ansiedade. Eu precisava do dinheiro. E ninguém podia provar nada contra mim (eu podia, mas isso não vem ao caso). Arregacei as mangas. Peguei a papelada de volta e decidi, com valentia: tinha que arrumar outra estratégia para assaltar o banco. Bancos só são assaltados, lembrei, rindo da piada velha, porque é lá que está o dinheiro. Então, mãos à obra.

Tenho amigos influentes. Uns dois ou três, acho. Se conseguisse conversar com alguma Autoridade, com o aval de um amigo influente, essa Autoridade com certeza compreenderia o meu caso e ele se resolveria a contento, sem nenhum prejuízo para o erário público. Dito e quase feito. Recomendado por alguém influente, de fato cheguei um dia a uma Autoridade da Caixa, num vigésimo andar da avenida Paulista. O sol acabara de descer sobre os vizinhos cumes dos edifícios, e seus raios banhavam o meu rosto, transmitindo-lhe um suave tom avermelhado.

Como esperava, a Autoridade não só ficou penalizada com o que lhe contei como ainda me convidou a sentar e tomar um café. Examinou, distraída, a papelada que lhe apresentei, suspirando “hmmmmmm” diante de certas passagens mais picantes. Estou salvo, pensei. Até que a Autoridade me devolveu a papelada, sem me olhar, e disse:

— Não dá para fazer nada. Te aconselho a arrumar uma nota fiscal aprovando a despesa. Qualquer nota, qualquer despesa. Em nome da sua empresa, claro.

A Autoridade estava certa. Concordei para sair dali o mais rápido possível. De preferência pelo elevador de serviço, para não ser facilmente identificado. Porque lei é lei, embora pessoas de má-fé, como eu, às vezes pensem o contrário. Mas segui as recomendações da Autoridade, à qual agradeci, deixando um papel com o meu telefone, que ela jogou em cima da mesa, sem olhar. Suas últimas palavras, já na porta do elevador, foram: “Mas em que jornal mesmo você trabalha? Deixa o número”.

Fui outra vez à luta. Depois de algumas semanas de pesquisa, encontrei facilmente uma marcenaria de subúrbio que me vendeu uma nota fiscal de móveis e cadeiras, que passaram não só a fazer parte das minhas instalações imaginárias como também — e isto é o que interessava — do meu novo processo.

Enquanto há vida há esperança, pensei, não sei por quê.

Embora sem um tostão nos seus cofres, o prédio do Banco Nacional da Habitação (administrado pela Caixa), no centro de São Paulo, é uma fortaleza de concreto cinza-chumbo e vidro fumê admiravelmente protegida por guardas de metralhadora em punho. Os ladrões não frequentam o local porque sabem que lá não há o que roubar, mas as pessoas desqualificadas, como eu, e além disso mal informadas, sempre tentam. É o único banco onde dois vigilantes plantados na porta perguntam a quem pensa em entrar: “Aonde você vai?”. (A mim, pelo menos, pelo aspecto e elegância no trajar, chamaram de “senhor”. Sejamos justos, pelo menos uma vez na vida.)

Mas, diante da reposta, qualquer resposta, informam que é preciso uma senha. Às vezes eles dão a senha na hora, às vezes mandam voltar no dia seguinte. De posse da senha, é possível conquistar muitas coisas. Por exemplo, o direito de sentar ao lado de uma pequena multidão que espera com seus papéis na mão. Ninguém reclama. Sabem que são pessoas afortunadas porque diariamente, por volta do meio-dia, as portas se fecham e aos que ficam de fora só resta a esperança de tentar de novo num outro dia. Consegui penetrar na fortaleza três vezes e em nenhuma delas vi alguém sair do guichê com seu caso resolvido. Faltava um papel, sempre. Coitados, pensei, segurando minha senha cor-de-rosa (também existem verdes, mas não se sabe por quê). São gente do povo. Não são microempresários produtivos como eu. E se, depois de transpor a porta, tiver tanta sorte como a que tive com os dois guardas escolhidos para vigiar-me, posso sentir-me confiante quanto ao resultado final.

— O próximo — disse a mulher do guichê, sem olhar para a fila.

Era eu. Do outro lado do vidro, a funcionária baixava e levantava a cabeça, conferindo cada folha do processo com o meu rosto. De repente, segurou com força minha carteira profissional, separou-a dos outros papéis e examinou-a com atenção. Acho que chegou a sorrir, mas não tenho certeza. Não, o dinheiro não me seria pago. Pausadamente, explicou:

— A lei mudou. Depois da abertura do processo, o senhor voltou a trabalhar com carteira assinada por quatro meses. Não pode tirar o dinheiro para usar na sua firma de jeito nenhum.

As pessoas atrás de mim na fila assistiram à cena, sempre mudas, como eu. Não havia mesmo nada a dizer. Eu havia sido pego em flagrante. Vi a sentença do que para mim significava a morte brotando ainda daqueles lábios. Vi também, durante uns instantes de horroroso delírio, as ondulações brandas e quase imperceptíveis dos cortinados negros que revestiam as paredes da sala. E a minha vista pousou sobre sete compridas velas colocadas em cima da mesa. Uma náusea de morte passou pelo meu espírito. Compreendi, assim, que não tinha nenhuma esperança a esperar deles. Então, como uma fina nota musical, passou-me pela imaginação a ideia do delicioso repouso que nos espera no fim do mundo.

— O próximo — a mulher disse, encerrando a conversa.

Eu estava extenuado… mortalmente extenuado por aquela longa agonia. Saí do prédio — tive muita sorte em não ser detido pelos guardas — e sumi com a papelada numa lata de lixo. Mas sabia que isso apenas aliviava o peso debaixo dos meus braços, não a mancha na alma. Tentei refletir sobre o começo da minha história. Há coisas que não compreendo. Mas isso não significa nada. Posso prosseguir. Tudo o que tenho a fazer é ficar atento. Vou pensar bem no que eu disser antes de ir em frente. Dada a ameaça do desastre, pararei um pouco para me examinar bem. É isso que eu queria evitar. Mas não há outro jeito. Que jeito de raciocinar!

Isso foi em fevereiro de 1987. Nos meses seguintes, entrei com outro processo, por desemprego. Para fugir do perigo de comparecer outra vez aos balcões do banco, e ser finalmente reconhecido, entreguei a tarefa a um contador, o Genivaldo, prometendo a ele a porcentagem que quisesse no dinheiro do Fundo, desde que conseguisse recebê-lo por mim. O sindicato e três firmas respeitáveis atestaram o meu desemprego e a falta de vagas para gente como eu, pelo menos naquele momento. Tais documentos reforçavam a certeza de que me encontrava em tão triste estado não por vadiagem, como poderiam pensar, mas por fatalidade do mercado, como poderiam ler nos jornais. Um golpe perfeito, finalmente.

Foi, de certa forma, um alívio. Estar desempregado não é crime. E, afinal, não havia sido tão ruim assim. Meus dentes estavam em ordem, graças a um empréstimo bancário que aumentou em 225% o preço cobrado pelo dentista. E o Fundo, de qualquer forma, continuava sendo meu.

A última vez que tive notícias dele foi em abril de 1987. Valia, por três anos e nove meses de trabalho, Cz$ 84.000,00 — um décimo do salário mensal de um marajá da PM paulista, por exemplo — e ia rendendo juros modestos na agência central do Bradesco. Em outubro, recebi a papelada de volta, mandada pelo contador. Ele telefonou pedindo desculpas. Andava ruim da cabeça, disse, e não conseguia mais comparecer a nenhum guichê para saber do andamento do processo, cuja solução havia sido adiada para o primeiro trimestre de 1988. Não, não queria dinheiro. Não queria nada. Sugeriu que uma pessoa mais jovem, quem sabe, poderia ter mais sorte que ele. De nada, tchau, boa sorte. Deus o abençoe, Genivaldo, grande figura humana, onde quer que você esteja.

Uma das maiores e mais súbitas tempestades de que se tem memória registrou-se aqui, trazendo como resultado uma série de ocorrências das mais estranhas e singulares. Pouco antes das três, a imobilidade do ar tornou-se tão opressiva e o silêncio tão esmagador que a buzina de um carro ou o ladrar de um cão podiam ser ouvidos distintamente. Mas tais circunstâncias não são de forma alguma incomuns durante o mês de novembro.

Foi quando passei pelo Bradesco, no centro da cidade, e pedi um outro extrato do Fundo. Só para saber. Embora fosse inalcançável, ele ainda estava lá. Poderia um dia servir para cobrir as despesas de um casamento que já tenho, a prestação de uma casa própria que não quero ou de um enterro que esconjuro. É melhor que nada.

O funcionário do Bradesco me olhou com estranheza. Depois, falou:

— Aqui não tem nada.

Então, sem nenhuma outra advertência, irrompeu a tempestade. Com uma rapidez que na ocasião pareceu incrível e depois a todos se afigurou impossível, toda a natureza entrou em tremenda convulsão.

Ao som dos trovões eu sorri, sem nenhum constrangimento em mostrar os dentes, e em tom paternal expliquei a situação ao funcionário. Tinha, sim. Tinha até extrato anterior provando que tinha. Nesse caso, concordou o funcionário preenchendo uma requisição, é só passar aqui de novo dentro de trinta dias.

Saí debaixo do temporal e roguei aos céus de chumbo:

— Que a terra lhes seja pesada. A todos eles.

Ninguém me ouviu, nem atendeu ao meu rogo ímpio. Em casa, mais calmo, tentei outra vez refletir sobre o começo da minha história. Retirei então meus papéis de dentro de uma gaveta e intrigou-me o fato de que em todo aquele copioso material dificilmente poderia selecionar um documento autêntico. Nada mais que uma enorme quantidade de laudas datilografadas. Certamente não encontraria alguém que as aceitasse como prova de tão singular história.

Agora, o papel do banco está aqui na minha frente.

Não é um extrato. Pode ser uma advertência. Um boletim de ocorrência, um laudo pericial, um atestado de insanidade, um vazio, qualquer coisa. Seja lá o que for, mostra que fui apanhado outra vez. É o que está escrito no papel: “Conta desativada. Favor trazer comprovantes de que…”.

Ainda havia algum recurso? Existiam objeções que ainda não se tinham levantado? Certamente. A lógica é inabalável em vão: não resiste a um homem que quer viver. Onde estava o juiz que eu nunca vira? Por momentos imaginei ver, terrivelmente exagerados, os lábios dos juízes, que se me apresentavam brancos (mais brancos que a folha em que traço estas linhas) e delgados até o grotesco, afilados na intensidade de suas expressões enérgicas… de resolução implacável… de rigoroso desprezo pelo sofrimento humano.

— Como um cão — pensei.

Era como se a vergonha fosse sobreviver a mim mesmo.

Texto revisto e ampliado pelo autor em 2000.