Claudia Yanomami Andujar

Ela procurava o caminho de si mesma, eles queriam viver como sempre viveram. Dezoito anos e milhares de fotos depois, o encontro de uma jovem de origem europeia com a tribo mais primitiva da Amazônia é um documento precioso

Claudia espera que os Yanomami conduzam seu próprio destino: "Eu sei – e eles também – que jamais serei uma índia” ©Claudia Andujar / IMS

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Davi Kopenawa Yanomami, o líder indígena que ganhou o prêmio ecológico Global 500 das Nações Unidas no ano passado, tem uma certeza: “O homem branco está andando no escuro, está cego pelo brilho do ouro e por isso não enxerga a gente”. Claudia Andujar, a jovem fotógrafa que num dia de 1958 desceu numa aldeia Karajá, em Goiás, com uma câmera Rolleiflex e a curiosidade que a acompanhava havia muito tempo, também tem a sua: “Em qualquer coisa que eu faça, seja fotografia ou defesa dos direitos humanos, procuro justiça. Sofri decepções até certo ponto da minha vida e meus primeiros contatos com as populações indígenas foram, nesse sentido, uma procura de mim mesma”. A Rolleiflex, primeiro, e o equipamento mais sofisticado da profissional que estreou nas páginas famosas da revista Life, depois, revelaram a Claudia o que ela estava procurando talvez desde os tempos de menina na pequena cidade de Oradea, na fronteira entre a Romênia e a Hungria, para onde se mudou cedo vindo da Suíça, e nos Estados Unidos, países onde viveu antes de chegar a São Paulo seguindo os passos da mãe, viúva (o pai, engenheiro, morrera num campo de concentração na Alemanha).

O encontro de Claudia com o que resta da comunidade indígena no Brasil – 5 milhões de pessoas, na época em que o país foi descoberto, hoje reduzidas a 220 mil, distribuídas entre 170 povos que falam outros tantos dialetos e línguas – parecia, no entanto, um desses romances impossíveis de acontecer. De um lado, a filha única de uma minúscula família profundamente marcada pela guerra, ex-estudante de psicologia em Nova York e que chegou ao Brasil, mais precisamente a São Paulo, para ensaiar os primeiros passos do que prometia ser uma brilhante carreira no mundo das revistas de moda e das grandes editoras. De outro, um povo entregue à própria sorte, perdido em regiões remotas e do qual só se tinha notícia através de periódicos massacres por parte dos brancos (vários índios foram explodidos a dinamite, no fim dos anos 1950, num episódio denunciado pela imprensa e que causou vergonha e indignação nacionais).

“O meu primeiro contato com os índios me marcou tanto que voltei lá mais duas vezes”, lembra Claudia sobre o dia em que chegou até os Karajá. Nos anos seguintes, e dessa vez visitando uma tribo eleita por ela, os Yanomami, ela voltaria muitas e muitas outras vezes – tantas que perdeu a conta. E tão marcantes, também, num outro sentido, que acabou sendo proibida pelo governo brasileiro, dois anos atrás, de visitar os 8,2 milhões de hectares onde vivem os Yanomami, num território que se estende das cabeceiras do rio Orinoco, na Venezuela, para além do traçado da rodovia Perimetral Norte, em Roraima, no chamado Maciço das Guianas. Quem pensa que é o fim do mundo, um lugar inacessível e sem valor, está enganado. Lá, Claudia julga ter encontrado um sentido para sua vida e seu trabalho. Lá, os Yanomami – 10 mil pessoas em território brasileiro, outras 10 mil na Venezuela – vivem há séculos cercados por uma floresta que carrega, para eles, a ideia de lar, de lugar ao qual se pertence, “a terra da minha gente”. Lá, enfim, está se estabelecendo nos últimos anos mais um entre os vários Eldorados de que o Brasil padece em ciclos periódicos – desta vez, uma terra prometida e revelada do espaço pelas fotos dos satélites do projeto RadamBrasil de aerofotogrametria, que em 1975 detectou a existência de minerais valiosos como ouro, cassiterita, radiativos e terras raras.

Assim como os Yanomami, Claudia Andujar também está jurada de morte pelos garimpeiros @Claudia Andujar

O resto aconteceu de repente, como se a vida antiquíssima que os Yanomami e seus antepassados levavam na região não valesse nada. Claudia Andujar estava de equipamento novo, na virada dos anos 1960 para os 70. Preparava reportagens para a revista Claudia e participava de uma edição histórica da extinta Realidade sobre a Amazônia, publicada em 1971 (com os editores recusando tratar da questão indígena, mas pondo na capa uma foto de um índio, por insistência dela), quando muitas tribos se preparavam para viver – sem saber disso – um período de mudanças dramáticas. Foi naquele ano que Claudia entrou em contato pela primeira vez com uma comunidade Yanomami. Ela comenta: “Foi naquela época que compreendi que queria me dedicar a um trabalho mais aprofundado, me desligar um pouco do lado comercial da fotografia”. Conseguiu uma bolsa de estudos da Fundação Guggenheim para passar um ano entre os Yanomami. Na verdade, ficou menos que isso, mas voltou muitas outras vezes e continua voltando – mesmo sendo persona non grata para o governo – à terra cuja posse ela quer ver garantida para seus primitivos ocupantes. A fotografia comercial perdeu, provavelmente, uma estrela. Os índios ganharam uma aliada. E a arte fotográfica, posta a serviço de uma causa, ficou mais rica com um minucioso trabalho de documentação que já dura dezoito anos e ainda está muito longe do fim.

“Se, por um passe de mágica, os problemas dos Yanomami fossem resolvidos, eu poderia dormir tranquila, mas ainda assim haveria muito que fazer”, diz Claudia, coordenadora da Comissão pela Criação do Parque Yanomami (CCPY), entidade fundada por ela e outras dez pessoas na década passada e que a partir de um pequeno escritório em São Paulo e do trabalho de quatro funcionários, mantidos por doações nacionais e internacionais, mobiliza parlamentares, imprensa e a sociedade civil. Não é um trabalho fácil. “Acho que o Parque, do jeito que a gente concebeu, não vai mais acontecer”, admite Claudia. “A situação fugiu ao controle do próprio governo. Criou-se um problema social que nem o governo sabe mais como resolver.” Em junho último, e pela primeira vez em dois anos, Claudia conseguiu quebrar a proibição governamental e visitou terras Yanomami em companhia de parlamentares recrutados por uma das várias entidades que apoiam a CCPY, a Ação pela Cidadania. E o que ela viu é pior ainda do que suas fotos vêm testemunhando desde 1971.

“Estamos cercados de garimpo por todos os lados”, disse Davi Kopenawa. E ameaçou: “Estou avisando a todos os parentes: se o branco entrar na terra, podem matar. Na minha tribo somos atrasados, somos primitivos, lá todo mundo anda nu. Não têm estudo, mas andam na linha. Eu não tenho medo. Porque nasci para defender meu povo”. A questão mais grave, no entanto, é saber até que ponto esse povo pode ser defendido. Abandonados pela Funai (que tem setenta funcionários para cuidar dos 32 mil índios da Amazônia, com apenas um deles – o próprio Davi, chefe do posto Demini – falando a língua local), alguns Yanomami têm preferido trabalhar com os garimpeiros em troca de alimentos e remédios. Essa nova vida pode trazer para eles consequências desastrosas. A Perimetral Norte (BR-210), feita no começo dos anos 1970, corta a área Yanomami em sua parte sudeste e levou para lá males até então desconhecidos, como sarampo, gripe, malária, tuberculose e doenças venéreas. Em 1977, o sarampo matou metade dos 68 índios da região do rio Catrimani; a população da área do rio Ajarani caiu de 102, em 1974, para 66, dez anos depois, e chegou a trinta no ano passado. No primeiro semestre de 1987, os dois médicos e o dentista que a CCPY mantinha na região, antes de serem expulsos, registraram 280 casos de gripe numa população de 320 pessoas, no posto de Surucucus. Hoje, há apenas um médico, José Pereira de Melo Neto, para cuidar de toda a região. Disse ele à repórter Eliana Lucena, de O Estado de S. Paulo: “Estou trabalhando aqui há oito anos e nunca vi uma situação como esta. É como se o governo brasileiro fizesse isso de propósito, esperando que os índios morram para entregar suas terras às mineradoras”.

Páginas da Revista Goodyear publicadas em 1989 © Reprodução

O governo, por certo, não faz isso de propósito, mas acabou cercado por tal quantidade de pressões que é como se fizesse. Uma dessas pressões é de natureza ideológica e pode ser resumida nas palavras do ministro do Exército, general Leônidas Pires Gonçalves, num depoimento que fez na Câmara no começo deste ano. “A cultura dos índios é baixíssima e não é respeitável”, afirmou o ministro. “Dos 220 mil índios que vivem no Brasil, apenas 30 mil podem ser considerados selvagens. Os 190 mil restantes são atores que usam jeans, máquinas Panasonic de vídeo e relógios Seiko no pulso.” É o próprio delegado da Funai em Roraima, Raimundo Nonato da Silva, quem diz: “Num país como o nosso, não se pode ignorar a existência de ouro só porque alguns índios passeiam sobre ele”. As demais pressões são as de sempre: levas de trabalhadores pobres invadem terras que não são suas em busca de riqueza. Existem hoje pelo menos 30 mil garimpeiros na região dos Yanomami – três para cada índio –, e o governador de Roraima, Romero Jucá (ex-presidente da Funai), diz que esse é um “fato consumado”, embora outro homem do governo, o ex-porta-voz presidencial Fernando César Mesquita, hoje presidente do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Renováveis), pense diferente: ele está brigando na Justiça para que os garimpeiros sejam expulsos, impressionado com o número de pistas de pouso clandestinas – 67 – abertas nos últimos meses. Calcula-se que 150 garimpeiros cheguem todos os dias à região. Neste ano, até maio, mais de trezentos corpos já haviam sido necropsiados no Instituto de Medicina Legal de Boa Vista e a maioria deles, mortos por homicídio, tinha ligações com o garimpo. Segundo a revista Veja, de agosto de 1987 a janeiro de 1989 pelo menos treze Yanomami foram mortos pelos garimpeiros e oito garimpeiros foram mortos pelos índios.

“Marcados para morrer”, por isso mesmo, é o subtítulo que Claudia Andujar deu aos milhares de fotos que tirou contando a história de um paraíso invadido por serpentes. Os Yanomami – o maior grupo tribal das Américas – vivem ainda hoje como viveram seus antepassados e são um dos únicos povos indígenas ainda na fase dos primeiros contatos com a sociedade civilizada. Acredita-se que a palavra “Yanomami” (também se chamam a si mesmos de Yanoman, Samurá e Yanaman) signifique “os escolhidos de Deus”. Diferentes dos demais índios brasileiros por serem mais baixos e magros, embora fortes, usam machados de pedra para trabalhar na mata, vivem da agricultura e da caça e viajam muito: seus solos são pobres, os recursos de caça limitados e assim, a cada quatro ou cinco anos, transferem suas malocas para novos locais na floresta, voltando ao ponto de origem anos ou décadas depois, com o antigo solo recuperado. Precisam de espaço, mas sua terra está encolhendo (em dois anos, de 1985 a 1987, 1,2 milhão de hectares lhes foram tirados por decreto do governo). Estão longe de ser os “bons selvagens”, qualidade que o senso comum geralmente atribui aos índios, segundo o etnólogo Napoleon A. Chagnon, da Universidade de Santa Bárbara, na Califórnia. Ele visitou doze tribos Yanomami durante 25 anos e descobriu que quase metade desses índios já matou alguém, e dois terços dos adultos perderam algum parente próximo vitimado por homicídio de motivação sexual – infidelidade, sedução, rapto de mulheres por grupos visitantes ou recusa em dar uma filha em casamento. Mas acreditam no céu, uma “terra superior”, igual à esta porém muito maior e livre de doenças, situada acima da Lua.

Claudia Andujar, que está jurada de morte pelos garimpeiros, não acredita no céu e no inferno. Acredita no que faz. Vivendo sozinha num apartamento de vigésimo andar em São Paulo, entre os grandes prédios da avenida Paulista, cercada de objetos indígenas, ela tem certeza de que usou muito bem o tempo de sua vida, mesmo tendo sacrificado durante anos prazeres como concertos ou a expansão do lado criativo de sua profissão em outro tipo de trabalho. Acha graça quando, a chamam de missionária. “De jeito nenhum”, diz. “Penso que tudo o que fiz valeu a pena, mas não me pergunte por quê. Eu me meti nisso e vou até o fim. E tenho esperança de que um dia os Yanomami conduzam seu próprio destino. Eu sei – e eles também – que jamais serei uma índia.”