A longa viagem de volta

Belas e malditas, as centenárias marias-fumaças querem ser mais que um retrato na parede: em Minas, elas se maquiam, resfolegam e continuam soltando fogo

Maria-fumaça de São João del-Rey © José Inacio Pereira

COMPARTILHE

Assim como grande parte dos meninos nascidos nos últimos anos na Grande São Paulo acredita que o Tietê, com suas águas lerdas e sujas, é um rio, muitas pessoas imaginam que o emaranhado de trilhos que avistam de dentro de carros e ônibus, rumo aos subúrbios ou cidades do interior, não passa de uma miragem. Numa cadência implacável, essas falsas impressões firmaram-se como fatos da vida real para a imensa maioria dos brasileiros que nos últimos quarenta anos saltaram dos trens para as estradas, criando um formidável desequilíbrio desconhecido na maioria dos países: 92% das viagens são feitas de ônibus e 75% das mercadorias brasileiras circulam em caminhões.

No entanto, assim como o Tietê se transforma num rio de verdade longe da Grande São Paulo, os trilhos podem também levar a viagens surpreendentes – só que rumo ao passado. Não foi sem motivo, por exemplo, que quatro anos atrás os moradores da histórica São João del-Rei, a quase duzentos quilômetros de Belo Horizonte, assistiram à chegada à cidade da comitiva do banqueiro inglês Leopold Rothschild. Durante dois dias, ele embarcou e desembarcou dos trenzinhos da centenária Estrada de Ferro Oeste de Minas. Fretava composições inteiras, de quatro vagões, e seguia até o fim da linha, doze quilômetros além, na igualmente histórica Tiradentes. Oito marias-fumaças, das dezessete guardadas no Museu Ferroviário de São João del-Rei, foram perfiladas no pátio da estação, para que o milionário, comovido, pudesse fotografá-las com suas caldeiras acesas. “Locomotivo muito boa, muito bom”, disse ele aos maquinistas e curiosos, antes de partir para algum lugar do mundo onde pudesse conviver com sua grande paixão – as locomotivas a vapor.

Trens, uma eterna paixão: filho de um funcionário da EF Leopoldina, de Juiz de Fora, Mayrink sempre teve ferro nas veias @ Arquivo pessoal

Que ninguém duvide: o banqueiro, cidadão do império onde não só os trens como também as marias-fumaças nasceram, em 1804 faz parte de uma incalculável multidão de adoradores, que no Brasil se abrigam numa Associação Brasileira de Preservação Ferroviária. Por incrível que pareça, ainda há aqui o que preservar. Num país que perdeu mais de 10 mil quilômetros de linhas nas últimas décadas, ficando reduzidas aos atuais e precários 29 mil quilômetros (a Argentina, três vezes menor, tem 36 mil e os Estados Unidos, aproximadamente 10% maior, cerca de 500 mil), o que sobrou vale ouro. Vale, pelo menos, o preço de um sonho.

Assim, não deve ter sido por acaso que o santuário das marias-fumaças brasileiras tenha se localizado em Minas Gerais, justamente entre alguns de seus mais belos e solenes tesouros arquitetônicos. Além da linha São João-Tiradentes, funciona desde o ano passado a ligação entre Ouro Preto e Mariana. Somadas, as duas têm apenas 31 quilômetros. Das janelas dos vagões de madeira, no entanto, é possível ficar cara a cara com paisagens recortadas de um passado que se supunha sepultado nos livros de história: pequenas minerações de ouro no fundo de despenhadeiros, montanhas carpetadas de verde e roxo onde um dia os primeiros mineiros foram cavar fortuna, pontes de ferro entrelaçado, grutas, moinhos de fubá, fornos de cimento, usinas abandonadas, a fazenda do Pombal (onde nasceu Tiradentes), janelas coloniais, vacas, araçás. Para muitos dos viajantes que ocupam cada um desses trens, a atração maior é sempre a própria composição que os leva. É um milagre que tenha sobrevivido.

Em 1974, quando a Rede Ferroviária Federal decidiu tirar de circulação o Vera Cruz, que desde 1950 ligava Belo Horizonte ao Rio e em cujos vagões sussurravam celebridades como Pedro Aleixo e Benedito Valadares, Milton Campos e Gustavo Capanema, o modesto Jornal de Minas gritou em manchete: “Perdemos o trem, não a esperança”. O fabuloso comboio, igual ao que liga todas as noites o Rio a São Paulo, feito de aço e com ar condicionado, fez sua última viagem lotado como sempre. Sucumbiu por motivos de segurança: nos oito meses anteriores ficara parado 42 dias, por causa da queda de pontes que não suportavam o peso das descomunais composições de quatro locomotivas e até cem vagões carregados de minério de ferro rumo a Volta Redonda e ao porto de Sepetiba, no estado do Rio. Voltou a circular dois anos atrás, duas vezes por semana, sempre cheio. É um trem para viajar, como qualquer outro. Os passageiros que procuram as marias-fumaças estão atrás de outra coisa.

E que coisa! Para soltar a fumaça do Trem dos Inconfidentes, que vai de Ouro Preto a Mariana, foi preciso em primeiro lugar um trabalho de arqueologia. A linha, em bitola métrica e curvas espantosas, continuava aberta ao transporte de carga entre Belo Horizonte e Ponte Nova (MG), mas os últimos passageiros foram vistos ali há mais de vinte anos. Até que cinco marias-fumaças largadas nos pátios da Rede em Belo Horizonte começaram a ser recuperadas. Mecânicos e maquinistas aposentados foram chamados de volta à ativa, pois ninguém na Rede sabia mais como acender as caldeiras e fazer andar as oitenta toneladas de aço construídas pela fábrica Baldwin, da Filadélfia, em 1927. O chefe da centenária estação de Ouro Preto (inaugurada em 1889), José Mattos, ferroviário há trinta anos, esfregou as mãos de alegria: “Queria que elas voltassem a circular todos os dias. A gente formava grandes trens com elas, no começo da minha carreira, para fazer os expressos de Bicas (MG) até Alto da Serra, em Petrópolis (RJ)”.

A partida de Ouro Preto se dá num clima de magia, entre fumaça preta, apitos cortantes e o rosto das pessoas nas calçadas, estupefatas, como se estivessem vendo um fantasma – e, de certa forma, estavam mesmo. Das quase mil locomotivas a vapor que circulavam no Brasil nos anos 1930 e 40, sobrevive hoje um número incerto, de não mais de duas dúzias (uma terceira linha, a E.F. Tereza Cristina, ainda se utiliza delas para o transporte de carvão em Santa Catarina). Essas máquinas não se aposentam por invalidez. Parecem resistir eternamente e, antes de ser encostadas, ainda doam órgãos para outras. Correriam a mais de cem quilômetros por hora, se as linhas aguentassem, mas, para descer dos 1.060 metros de Ouro Preto aos 700 de Mariana, a velha 1.424 puxa os quatro vagões de madeira, de bancos duros, a apenas vinte. Para os 240 passageiros que cabem nos vagões pouco importa viajar em pé ou sentado. A oportunidade é única e – nunca se sabe – volta e meia surgem boatos de que o trem vai ser desativado outra vez, como centenas de outros antes dele.

“Cuidar dessas máquinas é a mesma coisa que tomar conta da família”, diz Benedito José da Silva, 50 anos e 26 na profissão.

Esse perigo parece passar longe dos trenzinhos da E.F. Oeste de Minas. Últimos sobreviventes da bitola de 76 centímetros em todo o mundo, eles receberam o golpe de misericórdia em 1982, quando saíram de circulação os comboios que ligavam os 202 quilômetros entre Antônio Carlos e Aureliano Mourão. Era o que restava de quase setecentos quilômetros de linhas que desde 1881, quando foi inaugurada a estação de São João del-Rei, margeavam o Rio das Mortes e chegavam a Barra do Paraopeba, já no rio São Francisco. A morte dos derradeiros 202 quilômetros, no entanto, serviu para os trenzinhos como uma espécie de passaporte para a vida eterna. Dois anos depois, foi inaugurado o Museu Ferroviário, que engloba não apenas a estação de São João como também suas oficinas, a rotunda – um prédio redondo, tão bonito quanto as famosas igrejas da região e onde estão guardados máquinas e vagões antigos – e principalmente os doze preciosos quilômetros de linha. A prefeitura sanjoanense se orgulha: “Somos a única cidade do mundo a ter um museu assim, com uma parte estática e outra dinâmica”.

Na parte estática, numa área de 35 mil metros quadrados, está a salvo todo tipo de raridade: relógios, telégrafos, sinais, tornos, máquinas de furar, forjas, carros de linha e vagões que um dia foram especialmente construídos para abrigar “visitantes ilustres” – dotados de varanda, chuveiro e bidê. Na rotunda ficam as máquinas e o único exemplar existente no Brasil de um vagão funerário, construído em Passos (MG) nos anos 1920. Estão ali para ficar. Tanto que, numa madrugada de 1980, o vagão em que viajou dom Pedro II no dia da inauguração da estação – com saleta, poltronas de estofamento creme e ventilador – foi sorrateiramente levado para Belo Horizonte, junto com a locomotiva “São João del-Rey”, construída pela Baldwin em 1881, que o puxou. A cidade entrou em pé de guerra e dois meses depois máquina e vagão estavam de volta.

Explica-se. “Cuidar dessas máquinas é a mesma coisa que tomar conta da família”, diz Benedito José da Silva, 50 anos e 26 na profissão de ferroviário, há quatro na solitária função de atender e contar aos visitantes do museu um pouco da história das peças que estão ali. Além de alguns vagões, as 25 linhas da rotunda recolheram e conservam – pois todas elas funcionam – locomotivas desde a quase centenária número 55, de 1889, à jovem Vickers inglesa, de tração elétrica, datada de 1951. Benedito nunca vira um museu antes, pois trabalhava na via permanente, colocando e tirando trilhos. Ali, no meio do “coliseu” – como também é chamada a rotunda, por causa de suas formas que lembram os anfiteatros da Roma antiga –, ele passa o dia limpando as máquinas e dá aula aos curiosos. Uma das marias-fumaças foi cortada ao meio, no sentido longitudinal, e, descrevendo suas vísceras mecânicas, Benedito explica detalhadamente como ela funciona, ou funcionava. Benedito está agora ameaçado de voltar à via permanente. Se for, vai sentido: “Vou ficar com saudade dessas máquinas, mas ordem é ordem”.

Na parte dinâmica do museu, essa questão de “ordem é ordem” sempre foi respeitada. O comerciante Djalma Tarcísio de Assis, que é historiador nas horas de folga e está à procura de editor para o livro de trezentas laudas que escreveu sobre a E.F. Oeste de Minas, observa que, em cem anos de vida, apenas duas greves – pacíficas – aconteceram na ferrovia. A paixão dos ferroviários pela E.F.O.M. beirava o fanatismo, e isso talvez tenha algo a ver com o caráter “democrático” da ferrovia, que em boa parte foi financiada pelo povo: para a construção do primeiro trecho de 98 quilômetros, entre São João e Sítio (hoje Antônio Carlos), “até lavadeiras compraram ações”. Djalma nunca aceitou a tese de que a E.F.O.M. acabou porque dava prejuízo, nem mesmo quando a fábrica de cimento Barroso, sua principal cliente, reduziu drasticamente a produção, deixando os vagõezinhos vazios: “Essa ferrovia nunca foi deficitária, mesmo perdendo Barroso. Eu ouvi isso de um falecido engenheiro-residente”. As máquinas da E.F.O.M., constantemente fotografadas para álbuns estrangeiros sobre ferrovias, são festivamente maquiadas com uma estrela na frente e pintadas em vermelho e amarelo. Como dinossauros, foram condenadas à extinção, mas procuram se salvar de uma morte espiritual, da memória dos homens – esta sim, definitiva –, através da aparência. Todo filme brasileiro e novela de época recorrem a elas, que são únicas e se chamam “Januária”, “Marta Rocha”, “Geralda” ou “Andorinha”. Suas peças são quase todas originais e as que se desgastaram foram construídas lá mesmo, nas oficinas de São João del-Rei. A cidade tem mesmo do que se orgulhar.

Assim como se enganam os que pensam que o Tietê paulistano é um rio e os trilhos uma miragem, vão pegar o trem errado os viajantes que imaginam que as marias-fumaças os levarão simplesmente de Ouro Preto a Mariana ou de São João del-Rei a Tiradentes. Eles irão muito, muito mais longe, até o fim da linha, no ponto em que passado e presente correm lado a lado, como duas paralelas rumo ao infinito.