Do ponto de vista dos passageiros, um motorista de táxi não chega a ser uma pessoa. Ele é, antes de tudo, uma nuca. Com um pouco mais de atenção, pode ser uma voz, uma soma de gestos mecânicos, o avesso de uma figura humana cujos limites imprecisos se confundem entre pele e máquina. O motorista, também, vê um mundo pelo avesso. No seu espelho retrovisor, ele acompanha as conversas e queixas de seus passageiros sem delas tomar parte. São dois pontos de vista distorcidos, o do passageiro e o do motorista, que orientam o tempo todo a estranha e simultaneamente muito cotidiana história do filme que ganhou a Palma de Ouro em Cannes este ano.
O dia a dia de Taxi Driver, porém, só será reconhecido pelos passageiros e espectadores até um certo ponto – além dele, o que existe é paranoia. Travis Bickle (Robert De Niro), o motorista, tem todos os problemas que se podem adivinhar nesse tipo de profissão. É mal pago, solitário, insatisfeito, infeliz. Inveja, primeiro à distância, depois em aproximações fracassadas, os passageiros – especialmente passageiras – sentados no banco de trás. E nem de longe suspeita que a maior parte da carga que transporta – políticos corruptos, maridos rancorosos, marginais de maior ou menor calibre – é tão desprezível quanto o lixo acumulado nas esquinas por onde passa o seu táxi.
De Niro: a nova geração de atores americanos arregaça as mangas @IMDb
Luxo e decadência
As andanças de De Niro, ator de O poderoso chefão, parte II e de uma nova escola de cinema americana que se poderia chamar de “imobilismo expressivo”, dão conta dos abismos de depressão em que se precipita o motorista na sua quilometragem diária. No entanto, o diretor Martin Scorsese (Alice não mora mais aqui) e o roteirista Paul Schrader oferecem também a sua contribuição de estilo às corridas de Bickle. Os dois (como também De Niro) têm cerca de 30 anos de idade. E muitas vezes agem como se estivessem inventando cenas e situações que povoavam os melodramas policiais da década de 1930, quando não haviam nascido. Assim, mesmo sendo patente o aborrecimento do motorista pela vida que leva, Schrader coloca em sua boca: “Estou cheio da vida que levo”. Scorsese constantemente se deslumbra com o aparato de lentes e câmeras de filmar à sua disposição e capta imagens tão ou mais retorcidas que as conseguidas dentro do carro do motorista.
Esses desvios, é verdade, acabam sendo pequenos diante da acidentada e sangrenta trajetória do filme. Taxi Driver circula pelas avenidas e becos de Nova York – e do para-brisa os passageiros e espectadores podem ver o chique e o podre da cidade, em ângulos até hoje desconhecidos. A transformação do triste motorista em arsenal ambulante, equipado com todos os tipos de armas e disposto a dispará-las contra a multidão que sempre o ignorou, oferece a De Niro tudo que um ator precisa para expressar desespero com um mínimo de ginástica facial. Além disso, fornece ao filme o que ele tem de melhor, além das esplêndidas visões de uma Nova York encravada entre a luxúria e a decadência – uma pintura sensível das formas aberrantes a que a solidão pode chegar sem que ninguém, ali perto, se aperceba disso.