Paris entre dois séculos

Bela, rica e chique, a cidade das luzes saúda a Revolução, mas conserva a nobreza, mudando de fachada para chegar ainda mais sedutora às comemorações do tricentenário

Paris não perde a pose. Não é de hoje que a cidade de aparência tão igual através dos tempos se dá ao luxo de reformar-se continuamente ©Roger Viollet / Reprodução

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PARIS – Duzentos anos atrás, quando um bando de gatos-pingados comandados por um advogado sem clientes, Camille Desmoulins, tomou 32 mil armas na prefeitura de Paris, a palavra revolução nem existia nos dicionários: era apenas um derivado do verbo revolver, isto é, “a volta de um planeta (ou de uma estrela ao mesmo ponto de onde partiu”). Dois dias depois, um 14 de julho, eles foram se abastecer de pólvora na prisão da Bastilha, degolaram seu comandante, soltaram as sete pessoas que encontraram atrás das grades – dois loucos, quatro ladrões e um nobre tarado – e criaram um caso político linguístico tão grande que os dicionários tiveram de ser modificados. Essa é a história no seu começo.

A lenda nasceu em seguida e consolidou-se com o tempo. Os 3 milhões de turistas esperados em Paris até o fim do ano, em que de janeiro a dezembro se comemora, todos os dias, o bicentenário da Revolução Francesa, vão ter provas sem fim de que toda a festa – 6 mil eventos, espalhados pela França – ainda parece pouca para homenagear a data. Ninguém duvide: o que se vê em Paris hoje, por todos os lados, é o fabuloso espetáculo de uma cidade que se retorce de prazer ante a própria beleza, recobrindo de dourado suas cúpulas, plantando novas árvores, enfeitando com um colar de luzes a centenária torre Eiffel, transformando velhas estações ferroviárias, como a do Quai d’Orsay, em museu de arte moderna e, em suma, dando os primeiros retoques para a festa ainda mais extraordinária que será a do tricentenário da Revolução Francesa.

Pois é para lá que Paris caminha, com seus pés firmes num passado de glórias e as mãos voltadas para um futuro que chega todos os dias. A cidade é eterna, tanto quanto Roma. Assim como sobreviveu à Grande Peste do século XIV, às guerras religiosas do XVI, aos incêndios da Comuna de Paris em 1871, quando a maior parte dos arquivos da cidade foi destruída, ou à ocupação nazista nos anos 1940, Paris está sobrevivendo ao terremoto das comemorações do bicentenário. Nem mesmo durante a festa de seis dias e seis noites em meados de julho, quando 800 mil pessoas e 32 chefes de estado viram o desfile na avenida dos Champs-Élysées e em certas ruas não se podia nem andar a pé, deixou de haver vagas em hotéis (cerca de 2 mil). Com um pouco de paciência, é possível vencer as filas diante dos quatrocentos cinemas e cem teatros, bem como ninguém passa fome esperando na porta de qualquer um dos 12 mil cafés e restaurantes da cidade. Paris não precisa de bicentenários para viver cheia de gente de fora.

No entanto, foi o bicentenário o motivo deste ano atípico na cidade. Antigos visitantes, que havia tempos não punham os pés lá, se animaram a viajar em 1989 e muitos exclamaram: “Como isto aqui mudou!”. De fato, quem deixou de ir a Paris nos últimos cinco anos encontrou surpresas. E, aí sim, a Revolução se intrometeu. A já famosa pirâmide transparente colocada em frente ao Museu do Louvre e as três piramidezinhas ao seu lado, espécie de entrada privativa para anões, obras do arquiteto americano Ieoh Ming Pei, foram desaprovadas por 80% dos parisienses, mas construídas assim mesmo, decisão do presidente François Mitterrand, que por isso ganhou o apelido de Mitteramsés. O arco de La Défense, cubo de trezentas toneladas de cimento revestidas de mármore, projetado pelo arquiteto dinamarquês Johan Otto von Spreckelsen, é um complexo comercial que fica a nove quilômetros do já conceituado Arco do Triunfo e foi igualmente detestado pelos parisienses até o dia de sua inauguração, não por acaso o último dia 14 de julho. Abriga trezentas lojas e enormes prédios de grandes empresas, num cenário árido de cimento, tendo no topo a sede da Fundação dos Direitos do Homem e do Cidadão – criados, como se sabe, 42 dias depois que a Bastilha caiu. E a nova Ópera da Bastilha, na praça onde estava a prisão invadida, também abriu suas portas no dia 14 de julho, depois de sua construção ter sido boicotada durante anos pelo prefeito Jacques Chirac. Paris é assim. A história da cidade é a sua luta contra o poder central, geralmente perdida. Ali, ao contrário do resto da França, se vota quase sempre contra o governo federal do momento. Por isso, as diferenças na concepção dos festejos entre o prefeito Chirac, tido como direitista, e o presidente Mitterrand, dito esquerdista, são muitas. Mitterrand insistiu no tema da fraternidade, Chirac no do civismo. E não foi por acaso que nasceram justamente nessa Paris sem vocabulário político, duzentos anos atrás, as designações de esquerda e direita para separar até fisicamente as diferentes correntes políticas no Parlamento.

Mas Paris não mudou tanto assim, concluirão outros viajantes. Lá estão, um por um, os monumentos, casas e lugares que sobraram de 1789 – praças como a da Revolução, hoje rebatizada da Concórdia, ou restaurantes como Le Grand Véfour, fundado em 1760, no Palais Royal, onde o povaréu que foi à rua em 1789 não entrava e continuava não entrando, barrado por um luxuoso cenário e um menu de duzentos dólares por cabeça, só saboreado com hora marcada, mesmo que seja uma miniporção de caviar a cem dólares. O Le Procope, em Saint-Germain-des-Prés, fundado em 1686 e frequentado por todos os superstars da Revolução, como Danton e Robespierre, ou de fora, como Benjamin Franklin, estava para virar uma casa de hambúrgueres três anos atrás, quando a iminência das comemorações o salvou da morte. Ali, por um preço bem mais popular (cerca de 48 dólares, vinho incluído) e num ambiente estufado de lembranças revolucionárias, de retratos a mesas e cadeiras, pode-se pedir o Cardápio Revolucionário, que inclui, entre outras iguarias, tête de veau à Docteur Guillotin (cabeça de vitela à dr. Guillotin, numa homenagem ambígua ao inventor da guilhotina que cortou a cabeça de 13 mil pessoas, duzentos anos atrás). O Café de Foy, onde Camille Desmoulins bradou o imortal slogan “Às armas, cidadãos!”, continua no mesmo Palais Royal, também a preços que só a aristocracia pode pagar, assim como permanece de pé a casa onde morou Robespierre, o Incorruptível, outro grande astro revolucionário. O número 400 da Rue Saint-Honoré aloja hoje um bar de segunda que leva seu nome. Embora nos anos que se seguiram a 1789 mais de 1.400 ruas parisienses tenham trocado de nome, os lugares estão identificados e são apontados pelos guias aos turistas – e quase ninguém percebe que não existe em toda a Paris um único monumento ou rua com o nome justamente de Robespierre, o arquiteto do Terror que se seguiu de 1792 a 1794, executando 17 mil pessoas e seu próprio inspirador, que teve a cabeça cortada.

Arco do Triunfo, 1952 ©Robert Capa / Magnum Photos

Nesses lugares, como nos novos monumentos ou mesmo nos mais antigos, como o Palácio de Versalhes (residência da família real que passou por uma reforma de cinco anos e custou 70 milhões de dólares), o que os visitantes estão vendo, tocando, quase cheirando, são fragmentos de uma história multifacetada e aparentemente infinita: a Revolução de 1789. Mais de quatrocentos livros foram lançados só em 1989 para contar sua história, do Guia da Revolução Francesa, que mostra os lugares onde ela se passou, ao Dicionário Crítico da Revolução Francesa, de Louis Furet, que a explica, e Citizens: A Chronicle of the French Revolution, do inglês Simon Schama, que a demole – calhamaço de novecentas páginas a ser lançado no Brasil ainda este ano e no qual não sobra pedra sobre pedra, pois ali a Revolução é considerada atraso de vida. Compreende-se. Para muitos, a desvalorização da Revolução se deve aos fatos de a Bastilha estar quase vazia no dia em que foi tomada, os Direitos do Homem e do Cidadão (proclamados em 26 de agosto) terem sido pisoteados com o Terror nos anos seguintes, o feudalismo a que ela teria posto fim já não existir na prática e em 1804 o ditador Napoleão Bonaparte ter recolocado a família real no trono. Então, para quê? E mais: um júri montado na televisão francesa discutiu com advogados de defesa e acusação o processo do último rei, Luís XVI (guilhotinado em janeiro de 1793), e 55% dos telespectadores o absolveram (na realidade, o rei foi condenado à morte por 387 votos contra 334, na Convenção Nacional).

Os parisienses, que fugiram da cidade durante as comemorações, não puderam evitar que no resto do ano esse assunto viesse perturbá-los. O problema é que a maioria deles prefere se lembrar só das coisas boas da Revolução e esquecer de vez o seu lado sangrento. Embora os turistas sejam devidamente informados de que em tal praça fulano foi morto e em tal rua se deu tal massacre, os comerciantes foram desaconselhados a vender objetos como, por exemplo, um cortador de charutos em forma de guilhotina e velas de parafina representando a cabeça decepada de Maria Antonieta, a mulher do rei. Mesmo sem ter um partido próprio, calcula-se que 17% dos eleitores franceses sejam monarquistas e que o número de famílias nobres chegue a 3 mil. Portanto, não se acabou com a aristocracia. Os católicos integristas – eles são 500 mil na França – são contra a Revolução porque a consideram anticristã. Uma entidade nova, a Associação 15 de Agosto, vê na Revolução um complô maçônico-judaico, e outros vislumbram nela um trailer de todos os totalitarismos que vieram depois: as charretes que transportavam os corpos dos guilhotinados anunciariam os trens dos deportados da Segunda Guerra Mundial, os massacres do Terror anunciariam os de Munique (no nazismo) e os de Teerã (no Irã de hoje). E por aí afora. Mesmo a Bastilha, tida como símbolo da opressão da monarquia, não seria um lugar assim tão ruim. Há mesmo quem acredite que se vivia muito melhor na Bastilha de Luís XVI do que nas prisões do DOI-Codi na rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, no fim dos anos 1960 e começo dos 1970.

A Revolução, como se vê, presta-se para tudo – e não só para uma festança que atazanou a vida dos 9 milhões de parisienses. Esses parisienses, duzentos anos atrás, não passavam de 600 mil, e 100 mil deles eram indigentes. Naquela época, 236 em cada mil bebês morriam antes de fazer 1 ano (hoje morrem vinte), e 45% antes dos 10 anos. Havia casos espantosos de loucura e canibalismo. Trabalhava-se em Paris a média de dezoito horas por dia, e metade do salário diário era deixado nas padarias, que forneciam o pão para acompanhar a sopa, a grande refeição da família. Em 1730, na Rue Saint-Séverin, a multidão revoltada trucidou, queimando e esquartejando, centenas de gatos, que tinham retratos pintados nas paredes de seus donos e eram alimentados com aves assadas. Durante semanas os parisienses, que nos dias do Terror não conseguiriam voltar para casa sem manchas de sangue nos sapatos, depararam-se com gatos podres nos telhados ou espetados em lampiões de rua.

Duzentos anos depois da Revolução, que influenciou movimentos rebeldes como os de Simón Bolívar na América do Sul e a declaração da independência brasileira, muitos trabalhadores do Terceiro Mundo ganham menos de trinta dólares por mês e precisam de um segundo emprego para sustentar a família. Na Argentina, as pessoas brigam na rua por um pouco de comida, e em várias partes da África morre-se literalmente de fome. Muita gente acredita que os parisienses do Terceiro Estado, como eram chamados os que não pertenciam nem ao clero nem à nobreza, viviam melhor que as massas do Terceiro Mundo hoje. “No Brasil, cada presidente é um Luís”, acredita o ex-reitor da Universidade de Brasília Cristovam Buarque. O espetáculo assistido agora – de 3 bilhões de pessoas em 150 países contra 1 bilhão cada vez mais ricos em apenas quinze países – é tido por alguns especialistas como irreversível. Francis Blanchard, diretor do Bureau Internacional do Trabalho, enfatiza: “É uma ilusão acreditar que o desenvolvimento do Primeiro Mundo chegue um dia ao Terceiro”. Em suma, mesmo as revoluções mais generosas, como a Francesa, não são artigos de exportação. Mas ela unificou a França, até então uma colcha de retalhos incompreensível, transformando-a em nação. E procurou, até o limite do patético, impor os seus ideais de liberdade, igualdade e fraternidade. Em 1794, por exemplo, uma petição à Convenção Nacional tentou abolir o vous (vós) da conversação, justificando: “Em consequência, haverá menos orgulho, menos discriminação, menos reserva social, uma familiaridade mais aberta e, portanto, mais igualdade”. Não deu certo, é claro. E só tratar alguns parisienses de hoje por tu, em vez de vous, para ver o que acontece. Os parisienses continuam cheios de mesuras e ainda terminam as cartas, como há duzentos anos, com a imutável e quase interminável expressão: Veuillez agréer, Monsieur/Madame, l’expression de mes sentiments les plus respectuex et dévoués (ou: “Queira aceitar, sr./sra., a expressão dos meus mais respeitosos e devotados sentimentos”.

Por isso, muitos desconfiam que a Revolução não passou de um embuste. O jornalista Elio Gaspari, em Veja, diz que fizeram uma revolução contra o rei francês e acabaram colocando no trono um general estrangeiro para terminar a trapalhada com Luís XVII em Versalhes e que, portanto, teria saído mais barato deixar Luís XVI caçar em paz. Teria? O próprio Gaspari conclui: “A resposta está na turba. A corja, gentalha, ralé, chusma, choldra, patuleia, malta. Enfim, a escumalha que anda pelas cidades e às vezes as queima e saqueia. Ela jamais voltou a ser a mesma. Passou a chamar-se povo”.

“A Liberdade Guiando o Povo”, de Eugène Delacroix ©Reprodução

O povo de Paris, hoje, consome 142% a mais de calorias que o mínimo estipulado pela Organização Mundial da Saúde como patamar para o bem-estar dos cidadãos. Vive numa das três ou quatro cidades mais caras do mundo, capital de um país com o segundo maior parque de usinas nucleares (55, superado apenas pelos Estados Unidos), os trens mais rápidos (270 quilômetros por hora), 18% do mercado aeronáutico com as Indústrias Airbus (que sonham chegar a 30% antes do fim do século), armas nucleares que operam no ar, na terra e debaixo d’água (que só os Estados Unidos e a União Soviética possuem) e que está prestes a ser o primeiro a transformar seu sistema de telefonia de analógico para digital, transmitindo voz, fotografias e outros materiais numa só linha. Cerca de 4,4 milhões de parisienses usam em casa o Minitel, pelo qual se tem acesso a praticamente tudo, de compra de ingressos de teatro a reserva de passagens. É a capital de um país que vende para o Pentágono, o QG das Forças Armadas dos Estados Unidos, um programa de computador, o Ada, com o qual estão sendo fundidas num código comum as quatrocentas diferentes linguagens usadas em aplicações militares americanas.

Talvez por isso – por ser rica, bela e chique – é que Paris não perde a pose. Não é de hoje que essa cidade de aparência tão igual através dos tempos se dá ao luxo de reformar-se continuamente. Um dos filhos mais ilustres de lá, o poeta Charles Baudelaire (1821-1867), já havia notado em versos essa capacidade de mudança:

Cidade formigante, e que ao sonho se aviva
Em que o fantasma ao sol nos agarra o pescoço […]
Morta é a velha Paris (a forma da cidade muda bem mais que o coração de um infiel).

E, que, mesmo tendo sido palco da decapitação de tantas cabeças de sangue azul, não renunciou à nobreza. Foi um romano, o escritor Alberto Moravia, que descobriu a diferença entre as duas cidades igualmente eternas. Paris é maior do que Roma, mas não está aberta às massas como Roma. Isso porque Roma é a sede de uma instituição feita para as massas, a Igreja, enquanto em Paris se percebe sempre a presença de uma instituição fundada não sobre as massas, mas sobre as pessoas – a Corte. A corte dos reis, de Napoleão e dos diferentes presidentes da república, de De Gaulle a Mitterand, todos eles mais ou menos monarcas. Isso a Revolução não tirou de Paris. Noblesse oblige.